Oceanos, a última fronteira: eles podem ser a chave da luta contra as doenças infecciosas
2007-02-15
Os oceanos podem ser a chave da luta contra as doenças infecciosas, e inclusive contra o câncer. Cientistas do Instituto Scripps de Oceanografia, na Universidade da Califórnia, buscam a receita nos abismos. Desde seu escritório com vista para o oceano Pacífico, William Fenical, diretor do Centro Scripps de Biotecnologia Marinha, dirige investigações capazes de descobrir mais três microorganismos em uma colher de chá cheia de água colhida em árvores em uma floresta. Fenical acredita que o trabalho de sua equipe pode salvar milhões de vidas.
A maioria das pessoas não consegue em associar avanços na medicina com os caracóis venenosos dos quais se extrai anestésicos ou de espinhosos caranguejos de ferradura de onde vem a insulina. Mas durante milhares de anos, a medicina convencional reconhece o poder de cura de substâncias que aparecem nos ambientes naturais. A descoberta da penicilina no mofo pelo bacteriologista escocês Alexander Fleming, em 1928, abriu uma revolução na medicina, com o desenvolvimento dos modernos antibióticos, que salvara centenas de milhões de vidas. A metade dos novos medicamentos não é desenvolvida de maneira sintética nos laboratórios, mas é derivada de compostos químicos descobertos na natureza.
Hoje existem no mercado cerca de 120 remédios criados dessa maneira. E é nesse plano que surge o problema: durante décadas, os cientistas estudaram uma estreita faixa de vida terrestre, mas deixaram de lado três quartos da superfície do planeta Terra, cobertos de água. A ação humana ocasiona perda de habitat oceânicos e também a perda de oportunidades de descobrir novos medicamentos. Cientistas da Scripps agora recorrerem ao mar em busca de compostos. “O oceano representa uma importante fronteira para a pesquisa biomédica. A grande quantidade de organismos geneticamente diversos encontrados no mar propiciam um potencial quase ilimitado para a descoberta de novos remédios”, disse Fenical à IPS.
Das 37 variedades de formas de vida, apenas 17 aparecem na terra. É no oceano onde existe a maior biodiversidade. Calcula-se que cerca de 10 milhões de organismos únicos – animais, plantas e bactérias – vivem no mar, e pode haver, inclusive, mil espécies vegetais e animais ocupando quase um metro cúbico de água. Nos últimos 20 anos, aproximadamente 12 mil novos compostos foram isolados de organismos marinhos para uma variedade de aplicações comerciais, desde pigmentos até cosméticos.
A diversidade dos compostos bioativos encontrados nos oceanos se deve, em parte, às elaboradas defesas e à extrema competição que se produzem entre os organismos pelo espaço e os recursos. Em anos recentes, Fenical e sua equipe de cientistas exploraram o solo oceânico em busca de compostos bioativos em águas territoriais norte-americanas e e investigaram recurso naturais que até agora ninguém reclamou. Equipados com uma espécie de colheres gigantes extraem do fundo do oceano lodo rico em nutrientes para identificar organismos microscópicos que contenham compostos químicos sobre os quais se possa basear a pesquisa em laboratório.
Dez anos de pesquisas começam a dar resultados. Após acumular um escondido tesouro de micróbios, os cientistas do Stripps identificaram dois compostos contra o câncer que estão em várias fases de experiências clinicas. Desde 2006, 30 molculas semelhantes derivadas de fontes marinhas estão em desenvolvimento clinico. Até agora, estas descobertas não dispararam uma febre do ouro liquido. Encontrar tratamento para uma doença entre milhões de organismos equivale a extrair uma pepita de ouro de uma montanha de escombros. Milhares de horas de trabalho de laboratório poderiam propiciar um composto químico com propriedades medicinais.
Colocados em pratos de Petri (pequenos pratos esterilizados usados para analisar as amostras), os espécimes são misturados com quantidades diminutas de agentes biológicos causadores de doenças. A reação é controlada e analisada, e os resultados tabulados por cientistas. O sistema rapidamente elimina falhas, o que permite aos pesquisadores concentrar sua atenção em compostos quimicamente ativos, com uma intervenção humana mínima. Está versão farmacológica do movimento de “regresso à natureza” indica uma mudança de enfoque em relação às correntes científicas predominantes.
Nos anos 80, muitos pesquisadores pensavam que a principal usina de novos remédios seriam os laboratórios biotecnológicos e de engenharia molecular. Mas até hoje os esforços para criar ou sintetizar geneticamente “medicamentos-maravilha” não tiveram os resultados previstos. “As companhias que fabricam medicamentos abandonaram a tentativa de fazer novas descobertas para desenvolver remédios”, afirmou Fenical. Este cientista busca micróbios em águas territoriais dos Estados Unidos. Por outro lado, outros pesquisadores do Norte rico procuram explorar os recursos naturais de países em desenvolvimento, sem que estas nações recebam algum benefício econômico significativo.
Porém, existe um debate legal sobre a extração de organismos do leito do mar em regiões fora de jurisdições nacionais. Numerosos cientistas e ativistas consideram que o material genético das profundezas do mar deveria ser considerado “patrimônio comum da humanidade” e, portanto, estar sujeito a um programa de ganhos compartilhados. Essa é, por exemplo, a postura da União Mundial para a Natureza (UICN), organização que reúne as atividades de 111 agências governamentais, mais de 800 organizações não-governamentais e cerca de 10 mil cientistas e especialistas de 181 países.
“Gostaríamos de chegar a uma solução prática que incentivasse a pesquisa e a inovação, mas reconhecemos que devem reger os princípios eqüitativos. Deverá haver alguma forma de compartilhar os ganhos”, disse Kristina Gjerde, especialista em políticas de alto mar da UICN. Fenical rebate o argumento de que Scripps se beneficia diretamente de sua pesquisa farmacológica. “Ganho US$ 90 mil por ano”, disse o cientista. Trata-se de um salário reduzido para profissionais dos Estados Unidos. Seu centro de estudos é tão austero que é preciso resgatar peças de computador do lixo para manter o equipamento em condições de uso, afirmou.
O Instituto Scripps foi fundado em 1902 como um laboratório independente de pesquisas biológicas, e integrou-se à Universidade da Califórnia em1912. desenvolve 200 programas de pesquisa com 1.600 pessoas, e desde sua criação não cresceu muito de tamanho. Sem considerar que se beneficia, Fenical acredita que existe um vasto potencial médico para os micróbios marinhos e avista novas oportunidades para a exploração da diversidade da vida marinha mediante a análise de seqüências de ADN (ácido desoxirribonucléico). Essas pesquisas poderiam levar, assegurou, a novos remédios contra o câncer.
(Por Enrique Gili, da IPS, 14/02/2007)
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