O assassinato, em 12 de fevereiro de 2005, da freira americana Dorothy Stang, há 30 anos naturalizada brasileira e residente em Anapu, no Pará, chocou o país e o mundo por sua brutalidade e expôs internacionalmente a realidade de um Estado onde lideranças sociais têm sido sistematicamente ameaçadas e mortas por latifundiários, madeireiros ilegais e grileiros.
Uma das idealizadoras, no sudoeste do Pará, dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDSs), concepção de assentamento de reforma agrária adequado ao ambiente amazônico, Stang foi morta a mando de fazendeiros por seu trabalho em defesa dos pequenos agricultores da região.
A repercussão do caso fez com que a Justiça do Pará, acusada de morosa e parcial por entidades de defesa dos direitos humanos, desta vez agisse com mais celeridade. Os assassinos da freira, Rayfran das Neves e Clodoaldo Carlos Batista, e Amair Feijoli, o intermediador, foram condenados e estão presos. Os mandantes, os fazendeiros Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, e Regivaldo Pereira Galvão, o Taradão, ainda aguardam julgamento, o primeiro em prisão preventiva, e o segundo em liberdade após concessão de habeas corpus pelo Superior Tribunal Federal.
A demora do julgamento dos fazendeiros, explica a advogada Rosilene do Socorro Silva, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), desta vez se deve principalmente à série de peças judiciais impetradas pelos fazendeiros dos acusados para estender o processo. Mas ele estaria andando.
PDSs
Enquanto a Justiça se ocupa dos assassinos de Dorothy, na região de Anapu, principalmente nos PDSs Virola Jatobá e Esperança, os assentados comemoraram avanços dos projetos propostos por ela, creditados, porém, muito mais ao processo de organização dos agricultores do que à intervenção do Estado.
Segundo a coordenadora regional da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Pará (Fetagri) em Altamira, Marta Suely da Silva, nos últimos anos houve um avanço importante na organização das famílias através do sindicato local e da Assefa (associação dos agricultores do município de Anapu), o que possibilitou, entre outros, uma parceria com o governo na qualificação profissional dos assentados.
“Também tivemos um avanço na parte produtiva para a subsistência das famílias, que inclui arroz, feijão, mandioca e cacau, entre outros. Por outro lado, já foi feito um plano de manejo para 180 hectares de floresta no Virola Jatobá, e estamos preparando outros 500 ha neste PDS e 500 ha no Esperança”, explica Marta.
Companheira e conterrânea de Dorothy, irmã Jane Dwyer, que mora em Anapu desde 1997, também comemora o engajamento das famílias no processo de organização. “A morte de Dorothy foi um baque, mas o povo está tomando a dianteira, está cobrando mais do poder público”, avalia.
Segundo a irmã Jane, a luta ainda é um fator fundamental no processo de desenvolvimento dos PDSs, uma vez que o Estado não tem conseguido atender a maior parte das demandas sociais nos assentamento. De acordo com a freira, ainda existe, por exemplo, uma grande quantidade de famílias não incluídas no processo de reforma agrária.
“O Esperança tem 180 famílias assentadas pelo Incra, e cerca de 100 à espera de um lote. O Virola Jatobá tem apenas 40 famílias assentadas, e cerca de 120 agregados, a espera de terra. Avalio que há espaço para no mínimo mais 300 famílias nos dois PDSs. O Incra tinha prometido um posto permanente em Anapu, que foi desativado após poucos meses. Por falta de procuradores do Incra, vários lotes estão em disputa na Justiça e seu destino não é decidido. O lote 55, onde Dorothy foi assassinada, por exemplo: várias vezes o Incra o declarou revertido para o PDS, mas até hoje [os fazendeiros] Bida e Taradão [mandantes da morte de Dorothy] têm gado lá. Há pouco, colocaram 10 quilômetros de cerca na área”, afirma a freira.
Para o procurador geral do Ministério Público Federal no Pará, Felício Pontes, que esteve em Anapu no domingo (11/02), os avanços da comunidade, como uma pequena fábrica de móveis “muito bonitos”, feitos com resto de madeira certificada, e o ânimo geral, é muito positivo. O que falta nos PDSs, avalia Pontes, é o que está sob responsabilidade do Incra, em especial a construção de estradas e a liberação dos créditos para habitação e fomento.
De acordo com o Incra, em 2004 o órgão investiu R$ 418 mil na abertura de 12 quilômetros de estradas vicinais no PDS Esperança, e em 2005 45 quilômetros de estradas vicinais receberam um investimento de R$ 1.480.820. Em 2006, foi celebrado um convênio entre o Incra e a Prefeitura Municipal de Anapu, no valor de R$ 1,3 milhão, com o objetivo de construir e recuperar 53,3 quilômetros de estradas vicinais em projetos de assentamento. O problema, reclamam os agricultores, é que as estradas foram muito mal feitas e neste período de chuva já estão intransitáveis.
Modelo
Em maio do ano passado, o MPF, através do procurador de Altamira, Marco Antonio Delfino, instaurou dois inquéritos civis para apurar a falta de estrutura do Incra e do Ibama para atender as necessidades dos assentamentos. Em visita aos PDSs em agosto e setembro, Delfino detectou um esquema de aliciamento de madeireiros com os assentados para a venda de toras. Sem possibilidades de escoar a madeira por falta de estradas, os assentados eram obrigados a vender a produção a preços irrisórios às empresas, de forma ilegal em sem autorização do Ibama.
"O poder privado está aliciando os trabalhadores com estradas, auxílio médico, dinheiro e comida. Em troca, eles se beneficiam da madeira. As pessoas do PDS Esperança estão apenas formalmente assentados", comentou ele à época.
Hoje, Delfino ainda analisa com ceticismo a situação dos PDSs, principalmente o Esperança. Segundo ele, falta ao Incra dinheiro e uma concepção de reforma agrária para a Amazônia que seja sustentável social e ambientalmente.
“O modelo de assentamento no Sul é muito diferente do que seria preciso na Amazônia. No Sul é assentar e possibilitar o início da produção, a infra-estrutura, principalmente as estradas, já existe. Aqui o que o Incra não quer reconhecer é que a reforma agrária tem contribuído muito para a devastação ambiental. Se se oferece crédito párea gado, as pessoas desmatam para colocar gado.
O Incra não deu assistência técnica para que as famílias saíssem deste modelo predador de produção. Hoje, no Esperança, tem duas fabriquinhas de farinha de mandioca e banana, um projeto muito tímido. Será que eles optarão por isso ao invés do desmatamento?”, questiona o procurador, que irá às áreas no inicio de março para avaliar a situação das famílias e da infra-estrutura sob responsabilidade do Incra.
Na avaliação geral, porém, ponto positivo para a luta dos assentados nos últimos dois anos é a diminuição da violência explicita contra os agricultores. Já não há mais outdoors ou propaganda aberta contra os PDSs, diz Marta Suely. E, segundo a irmã Jane, os PDSs tiveram infinitamente mais atenção do Estado do que os outros projetos de assentamento. Uma vitória da luta de Dorothy, certamente, mas pouco ainda diante dos desafios.
(Por Verena Glass,
Agência Carta Maior, 12/02/2007)