Dizer que as atividades humanas contribuem fortemente com as mudanças climáticas não é novidade para ninguém, mas finalmente conquistou o grau de certeza há anos procurado, ao ser pronunciado pelos cientistas de maior prestígio no mundo durante a divulgação do relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês), na sexta-feira (2/2), em Paris. Se isso foi considerado um avanço básico, por outro lado esses mesmos cientistas levantaram, no relatório, uma perigosa incerteza: a de que não se sabe ainda em que medida as emissões provocadas pelos desmatamentos afetam o aquecimento global – o que pode ser o pretexto que muitos países desejam para continuarem relutantes em reduzir imediatamente suas taxas de desflorestamento.
De uma maneira geral, este primeiro volume consolida o conhecimento que se tinha sobre as alterações no sistema climático e dirime muitas incertezas. Enquanto no relatório anterior, de 2001, falava-se em 60% de certeza da causa antropogênica, nesta edição atribue-se a culpa ao homem com 90% de certeza. As bases para este argumento estão nos dados científicos que mostram que a concentração de carbono na atmosfera é maior nos últimos 650 mil anos. Além disso, registros de temperatura mostram que 11 dos 12 anos entre 1995 e 2007 bateram recordes de calor desde 1850. Nos últimos 50 anos, a temperatura subiu a um ritmo nunca visto: 0,13º C por década.
Além de olhar para o presente e para o passado, o relatório estima o que pode acontecer daqui para frente. Um dos principais pontos diz respeito a uma estimativa com 66% de chances de sucesso que a temperatura vá aumentar entre 2º C e 4,5º C, com maior probabilidade de que ocorra uma elevação de 3º C. O incremento deve ocorrer ao longo do século, sendo que há projeções seguras de que a temperatura subirá 0,1º C por década. Se mantido o atual cenário de concentração de gases estufa, a resposta do sistema climático, principalmente pela absorção do calor pelos oceanos, fará com que o ritmo do aquecimento seja duas vezes mais rápido depois de 2030 (0,2º C por década). Entre as certezas do documento há uma que diz que os oceanos absorvem 80% do calor do globo.
Caso essas estimativas se confirmem, haverá impactos significativos nas calotas polares, principalmente no Ártico, onde se espera que haja um desaparecimento quase completo do gelo até o fim do século. Os territórios mais afetados pelo aquecimento, diz o relatório do IPCC, serão os que estão mais ao norte e sul do planeta. Entretanto, é provável (66% de chance) que ocorra um aumento nas precipitações em todas as partes do globo, graças a uma capacidade maior de retenção de vapor na atmosfera. Algumas mundanças já são consideradas certas (100% de chance), como a de que até o final do século teremos noites e dias mais quentes.
A partir dessas constatações surgem muitas outras que certamente terão peso na diplomacia climática mundial. Entre elas, os cientistas do IPCC sustentam que o aumento na quantidade e intensidade dos ciclones tropicais, como os que têm açoitado os Estados Unidos, são consequência da elevação da temperatura dos mares. Nas palavras do relatório, a influência humana já pode ser “comprovada no aumento da temperatura dos oceanos e no comportamento dos ventos”. Mais do que isso, a influência dos gases emitidos por atividades humanas durará por até um milênio, que é o tempo necessário para o completo desaparecimento na atmosfera.
Passividade
No entanto, se as certezas poderão pressionar alguns países a tomarem medidas mais drásticas para combater o aquecimento, há incertezas que ainda podem manter outros na passividade. Entre as constatações do relatório está a de que a contribuição maior às mudanças climáticas vieram da emissão da queima de combustíveis fósseis. Isso não é nenhuma novidade, mas junto a esta certeza existe uma grande dúvida sobre qual a real contribuição do desmatamento nas emissões de gases estufa. A estimativa é de desde 1990 houve um crescimento de 1,6 bilhões de toneladas por ano, embora o próprio estudo observe que o dado não é confiável. Trata-se de uma incerteza que pode alimentar a relutância de países em desenvolvimento em assumirem compromissos no curto prazo de redução de emissões por desmatamento.
O coordenador do Programa de Planejamento Energético da Coppe/UFRJ e presidente do Fórum de Mudanças Climáticas, Luiz Pinguelli Rosa, explica que a incerteza que paira sobre as questões de desmatamento se deve a métodos menos eficientes de avaliação. Enquanto a queima de gasolina e outros combustíveis fósseis pode ser calculada por amostragem, não dá para ter a mesma precisão para medir emissões de incêndios florestais. Isso não que dizer, contudo, que o IPCC estaria relaxando a barra para as nações campeãs em desflorestamento, como é o caso do Brasil. “O governo brasileiro deveria ver a redução do desmatamento obtida até agora como uma tarefa incompleta e fazer muito mais”, recomenda.
Política e cenários
O relatório do IPCC divulgado nesta sexta-feira é só primeiro volume de três. As propostas para a adoção de tecnologias e para o combate ao aquecimento ficaram reservadas ao último caderno, que será lançado apenas em maio. Embora esta primeira divulgação contemple apenas evidências científicas, não está imune a influências políticas. Como mostraram diversas reportagens nos dias que antecederam a publicação da versão final, cientistas discutiram ardorosamente sobre cada termo a ser usado. A matéria do International Herald Tribune, por exemplo, conta que até o último minuto, pesquisadores enviavam emails com sugestões ao texto.
Quando são apresentados os cenários futuros neste primeiro documento ficam mais claras as questões políticas. Os pesquisadores desenharam quatro cenários sócio-economicos do planeta, denominados A1, A2, B1, B2. Grosso modo, os cenários do grupo A possuem uma tendência em que o crescimento econômico continua a liderar. As variações ocorrem de acordo com tecnologias e combustíveis usados. Os cenários B seriam um mundo que optou pelo desenvolvimento sustentável. As diferenças entre o 1 e 2 são as taxas de eficiência econômica e tecnológica, além do crescimento populacional.
Os cientistas afirmam que o cenário B1 , onde a população do mundo continua estável e a economia faz uma opção pelos setores de serviço e alta tecnologia, é o melhor possível para mitigar os impactos do aquecimento global. Nesta previsão, haveria um aumento de 1,8º C até a virada do século. Já o cenário A2 é considerado o pior, pois o modelo desenvolvimento seria apenas centrado nas necessidades regionais, preocupado com aumento da renda per capita. Neste caso, a temperatura se elevaria em 4º C.
Rosa, da Coppe, critica essa parte do relatório do IPCC. Segundo ele, esses cenários refletem exclusivamente visões de economistas e que têm uma ênfase muito grande na adoção de novas tecnologias. “São hipóteses ingênuas que não têm nada a ver com ciência.” Em sua opinião, falta aos cenários lidar com propostas de cortar o “consumo perdulário de energia” por nações mais ricas.
Elliot Diringer, diretor do Pew Center on Global Climate Change, uma das mais renomadas instituições de pesquisa em políticas climáticas, afirma que o relatório só está confirmando um amplo consenso científico e consegue dar o recado de que é preciso agir com urgência. “Para os países que já estão fazendo alguma coisa, vai haver um incentivo para fazerem mais. Para os que ainda não estão agindo, o documento retira qualquer desculpa para a demora e sustenta quão catastrófico será não fazer nada”, pontua.
(Por Gustavo Faleiros,
O Eco, 02/02/2007)