Artigo - A fonte ameaça secar: O movimento pela culinária responsável
2007-02-01
Por Marcelo Szpilman*
Não há dúvidas de que a carne de peixe é uma das melhores, em se tratando da
facilidade de digestão e valor nutritivo. Temos também diversas razões
gustativas para
apreciarmos as lagostas, camarões e mexilhões. Comê-los sempre foi um ato
natural e
nada antiecológico. No entanto, para que possamos continuar a consumi-los no
futuro
devemos pensar de forma responsável sobre este assunto. Os oceanos e sua
biodiversidade devem ser vistos como uma prioridade na questão da
preservação
ambiental.
Apesar de a pesca ser uma das mais antigas atividades desenvolvidas pelo
homem, parece
que todo esse tempo de prática ainda não foi suficiente para evitar que ela
seja
realizada de forma predatória. Levantamentos recentes indicam que hoje a
captura
indiscriminada mata e desperdiça entre 18 e 40 milhões de toneladas de
peixes,
tubarões, tartarugas e mamíferos marinhos todos os anos, o que representa
nada mais
nada menos do que um terço de toda a pesca mundial. É um crime contra a
natureza. Um
desperdício inaceitável que ameaça secar a fonte.
A destrutiva combinação sobrepesca-pesca predatória empreendida nas últimas
décadas
cobrará um alto preço muito em breve. Em muitos casos, o "futuro", um termo
bastante
usual nos discursos do passado, já chegou. Temos hoje diversas espécies
comerciais de
pescado ameaçadas de desaparecer. No Brasil, já são 145 espécies de peixes e
12 de
tubarões ameaçadas de extinção e 31 espécies de peixes e 6 de tubarão
sobrepescados.
Entre as espécies mais ameaçadas, temos o cação-anjo, a raia-viola, o mero,
o
peixe-serra e o surubim. Dentre os estoques de espécies tradicionais
sobrepescados em
nosso litoral estão a mangona, o tubarão-martelo, a sardinha, o pargo, a
cioba, a
tainha, a enchova, o namorado, a corvina, a garoupa, o cherne, a pescadinha,
os
camarões e as lagostas. E esses números só não são maiores devido à
histórica falta de
verba para pesquisas em nosso País.
A sobrepesca, que é a pesca feita de foma correta e legal, porém acima do
limite que
uma espécie tem de se auto-repor na natureza, e a pesca descontrolada são
problemas
graves, porém mais compreensíveis do ponto de vista histórico.
Tradicionalmente, a
captura do pescado comercial para a nossa própria alimentação vem sendo
empreendida há
séculos. No entanto, se já não chegou está chegando ao limite de exploração
para
algumas espécies. Da mesma forma que o homem percebeu, há milênios, que não
conseguiria sobreviver somente coletando e caçando o alimento que a natureza
lhe dava
e, por isso, passou a desenvolver a agricultura e a pecuária, temos que nos
conscientizar de que o mar, apesar de seu tamanho, não é um provedor com
recursos
inesgotáveis.
Os recursos pesqueiros, ao contrário de outros recursos naturais, podem ser
perfeitamente renováveis. O correto gerenciamento de seus estoques deve ser
visto como
importante ferramenta para o desenvolvimento sustentável do País. Nesse
sentido,
existem alguns instrumentos que já se mostraram eficientes. O defeso, que é
a
proibição da pesca na época de reprodução (desova) do animal, e a
maricultura, que se
constitui na produção controlada de espécies marinhas em áreas confinadas,
são, não só
soluções para a queda na captura de espécies comerciais, como também formas
de
preservação dos oceanos.
O exemplo da sardinha-verdadeira é bastante elucidativo. Peixe barato nos
anos 70 e
80, alimento farto nas mesas menos favorecidas, a média anual da pesca da
sardinha era
então de 200 mil toneladas (correspondia a 38% dos peixes pescados
anualmente no
Brasil). A partir da década de 80, teve início uma queda contínua nos totais
capturados. Prevendo que a captura estava além dos limites que permitiriam
garantir o
equilíbrio entre a atividade pesqueira e a conservação da espécie, a
legislação
brasileira passou a proteger a reprodução da sardinha através do defeso (de
novembro a
março e de julho a setembro). No ano mais crítico, em 1990, a captura
atingiu 32 mil
toneladas. Ainda que o defeso tenha contribuindo na recuperação dos
estoques, como
demonstra a captura da sardinha em 1997, que atingiu cerca de 118 mil
toneladas,
infelizmente a produção tem oscilado muito e a expectativa média atual é de
no máximo
30 a 50 mil toneladas/ano.
O defeso demonstrou assim ser um importante instrumento de ordenamento e
conservação,
permitindo que a pesca continue a ser exercida de forma sustentável. Se no
começo os
pescadores comerciais reclamavam da medida, logo depois perceberam a
importância do
defeso para sua atividade e hoje o defendem com unhas e dentes. As lagostas
(de
janeiro a abril) e os camarões (de dezembro a fevereiro na região Norte e de
março a
maio nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul) também têm seus períodos de
defeso, mas
infelizmente a maioria dos peixes e tubarões, que também precisam de
proteção, não têm
seus períodos de defeso instituídos por lei. Sem falar, é claro, na proteção
ambiental
de suas áreas de desova e de berçário.
A noção de pesca predatória que temos hoje, feita de forma incorreta e
ilegal, como a
pesca com malha fina, arrastão de fundo ou bomba, pode mudar de acordo com
os
conceitos da sociedade e de seu tempo. O que hoje é legal amanhã pode não
ser. O que é
ilegal no Brasil pode não ser em Moçambique. Quem não se lembra do romântico
arrastão
de praia, muito comum até a década de 80 em quase todo o Brasil? Capturava
tudo em seu
caminho e o que não prestava ao comércio (grande parte) era deixado na areia
para
apodrecer. Felizmente, foi erradicado através de uma legislação mais rígida.
No
entanto, de acordo com o Ibama, órgão responsável pela fiscalização e
controle das
atividades pesqueiras no Brasil, ainda existe uma quantidade considerável de
pescadores trabalhando de forma incorreta e, conseqüentemente, predatória.
Mesmo
sabendo o quão deletéria pode ser a pesca predatória, também podemos de
certo modo
compreender que muitas vezes o pescador, sem qualquer outra alternativa, é
movido pela
fome de sua família.
Também não há mal algum em se comer um suculento filé de cação. Aliás,
come-se cação
ou tubarão (que é a mesma coisa) há centenas de anos. O problema passa a
ocorrer
quando o filé vem de espécies que hoje encontram-se ameaçadas de extinção no
mundo
todo, como a mangona e o tubarão-martelo. Mas o que é verdadeiramente um
absurdo
inadmissível é a "perseguição" de determinadas espécies de tubarão para a
extração de
partes de seu corpo para obter produtos que são supérfluos e os benefícios
apregoados
são duvidosos e sem nenhuma base científica comprovada. Movida pela ganância
humana, é
o pior tipo de pesca predatória.
Atualmente, existem dois grandes objetivos na pesca do tubarão. A
cartilagem,
transformada em cápsulas que os fabricantes apregoam como anti-tumorais, em
analogia
ao fato do tubarão ser imune ao câncer, e as nadadeiras (muitas vezes
extirpadas do
animal ainda vivo, que depois é devolvido ao mar para afundar e apodrecer),
utilizadas
para fazer sopa de barbatana de tubarão, tida como afrodisíaca e símbolo de
status na
China. Algo semelhante às inúmeras aberrações predatórias e criminosas que
vemos ao
redor do mundo, especialmente no Oriente, como a "crença" de que partes de
animais,
como o tigre e o urso, podem curar doenças. Não se pode ameaçar a existência
de uma
espécie animal ou vegetal em prol da "suposta" melhoria de nossa saúde.
Ainda mais
dispondo da tecnologia que temos hoje, capaz de produzir artificialmente as
substâncias comprovadamete benéficas.
Mas será que por reputarem uma irreal imagem de "devoradores de homens" os
tubarões
não merecem também ser preservados, como os golfinhos e tartarugas?
Atualmente, cerca
de 70 milhões de tubarões são capturados e mortos a cada ano em todos os
mares. Isso
representa uma monumental ameaça à sobrevivência dos tubarões. Nesse ritmo,
algumas
espécies serão extintas nos próximos anos. Deixar de vê-los como feras
assassinas e
ter a consciência de que eles exercem um papel crucial na manutenção da
saúde e
equilíbrio dos ecossistemas marinhos é um importante passo para uma mudança
de
atitude.
O movimento pela culinária responsável, lançado pelo Restaurante Carlota, é
um claro
exemplo dessa mudança de atitude. Devemos entender que muitos dos antigos
hábitos de
consumo não cabem mais nos tempos atuais. O planeta mudou. O clima mudou. O
mundo
mudou. Será que você ainda não percebeu? Ou só perceberá quando as sérias
conseqüências dos desequilíbrios nos oceanos baterem à sua porta?
(*) Marcelo Szpilman é biólogo e diretor do Instituto Ecológico Acqualung
(Envolverde, 31/01/2007)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=27311&edt=1