Me perdoe quem só vê paraísos em praias franjadas de coqueiros sombreando a areia macia, tocada apenas por pequenas ondas em lento vaivém, mas o planeta tem muitas outras belezas a oferecer. Encravado no extremo sul da Patagônia chilena, a quase três mil quilômetros da capital Santiago, o Parque Nacional Torres del Paine é um miríade de paisagens desconcertantes e um exemplo de organização, tudo tão distinto da realidade brasileira.
Criado em maio de 1959 e declarado Reserva da Biosfera pelas Nações Unidas em abril de 1978, o parque reúne em mais de 240 mil hectares valiosas paisagens da região onde a América Latina se estreita e começa a mergulhar nas águas congelantes entre o Atlântico e o Pacífico. A reserva atrai mais de 100 mil turistas nos meses quentes do ano, oito em cada dez de fora do Chile, principalmente pelos preços salgados para a realidade sul americana.
Isso faz com que a língua que menos se escute por lá seja o espanhol, ao contrário do alemão, inglês, francês e italiano. No verão, o parque se torna uma babel de gente cruzando por inúmeras trilhas, todas bem marcadas e sinalizadas. Pois, com o mochilão nas costas, alguns trocados e muita disposição, a reportagem de O Eco foi ver de perto porque Torres del Paine é reconhecido como um dos mais belos recantos do planeta.
A maioria dos visitantes usa Puerto Natales como ponto de partida para o parque, cidadezinha onde a água costuma congelar nos canos durante o inverno, deixando todos sem água por dias. A 25 quilômetros ao norte está a Cueva del Milodón. Foi lá, há mais de um século, que o colono alemão Hermann Eberhard encontrou restos de um estranho animal. O mistério foi esclarecido apenas em 1951: o fóssil pertencia a uma pré-histórica preguiça gigante, que chegava a 2,5 metros de altura e três toneladas.
Os 150 quilômetros até a área protegida estão quase totalmente asfaltados, e o acesso se dá por uma das três portarias controladas pela Corporação Nacional Florestal (Conaf). O órgão é ligado ao Ministério da Agricultura do Chile e foi criado em 1973, durante o governo de Salvador Allende. Ao pagar cerca de 50 reais pelo ingresso, cada turista deixa em uma ficha seus dados, tempo estimado de permanência e recebe um mapa com estradas, pontos turísticos, distâncias e tempos de cada caminhada, acampamentos, refúgios e hotéis. Depois, começa a aventura.
Leque de opções
Torres del Paine foi estruturado para vários tipos de turistas, tanto para os que querem mais conforto quanto para aqueles que enfrentam acampamentos com pouca ou nenhuma infra-estrutura. Dependendo de suas necessidades, prepare o bolso. Pernoites em acampamentos com armazém e chuveiro quente custam 15 reais, dormir em camas simples de refúgios de montanha não sai por menos de 65 reais e, se a opção for o luxo de hotéis de campo, será necessário desembolsar mais de 200 reais diariamente. Para quem optar pelo camping ou pernoites em refúgios do parque, uma dica: compre comida nos supermercados de Puerto Natales. Assim você economiza com os salgados preços das refeições dentro da área protegida.
Além de várias caminhadas de um dia, o parque oferece dois roteiros principais: o “W”, com 50 quilômetros, percorridos em média em quatro dias; e o “O” ou Circuito Completo, com mais de 120 quilômetros caminhados em até nove dias, em torno de todo o maciço montanhoso. Por ter melhor infra-estrutura e facilidade de acesso, as trilhas do “W” viram um “formigueiro” na alta temporada. São milhares de turistas sedentos para colocar os olhos nas Torres del Paine e nos Cuernos, majestosos monólitos de pura pedra que refletem a luz em várias cores.
Mas para aqueles que não dispensam os desafios de longas travessias, o Circuito Completo cai como uma luva. A caminhada normalmente começa em algum ponto do “W”, e pode ser realizada nos sentidos horário ou anti-horário. Por exemplo, partindo do Camping Las Torres contra os ponteiros do relógio, aventureiros de todo o mundo percorrem trilhas que levam a locais definidos para acampamentos selvagens ou estruturados, como o Coirón, Dickson, Los Perros, Grey e Italiano. Isso dá segurança ao trekking e ajuda a manter o local limpo e organizado.
Na jornada de muitos quilômetros, o parque encanta a todos com campos cobertos de infinitas margaridas, com rios e lagos multicoloridos pela água degelada, pelos animais e plantas que enchem os olhos tanto quanto os jardins naturais salpicados de flores. Graças ao clima quente e à corrida reprodutiva, os animais do Paine não ligam muito para os visitantes humanos e se deixam fotografar com certa facilidade.
A área protegida abriga mais de uma centena de aves, como condores, patos selvagens, cisnes, garças, papagaios e pica-paus, além de 25 mamíferos, como gambás, veados, raposas, guanacos e pumas. As florestas impressionam, têm resistentes arbustos e árvores que podem ultrapassar os 30 metros. No chão, muitos galhos e troncos, daí o temor dos chilenos com incêndios florestais. No parque há várias áreas em recuperação e uma campanha constante para que novas tragédias sejam evitadas.
Um dos locais mais impressionantes da unidade de conservação é o Glacial Grey. Trata-se de uma extremidade do Campo de Gelo Sul, colossal massa de gelo que só perde em tamanho para a Groenlândia e para a Antártica. Esse registro vivo da última glaciação da Terra é mantido pela umidade trazida pelos ventos do Pacífico que, aprisionada pelas montanhas andinas, forma mais e mais gelo. Mas mesmo essa obra prima não está livre de ameaças globais.
A maioria das geleiras patagônicas, tanto no Chile quanto na Argentina, está perdendo massa nas últimas décadas, algumas até 100 metros por ano, e não só pelo gelo que acaba nos copos de uísque servido em barcos turísticos. O vilão pode ser o aquecimento global, que tem influência humana cada vez mais inquestionável, de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês). Mas além de montanhas, muito gelo e paisagens de cair o queixo, outra presença constante na reserva chilena é o vento. Senhor absoluto no Verão, pode soprar como uma brisa leve ou como verdadeiro tufão, quase derrubando desavisados turistas. Em certos momentos, a ventania pode passar dos 100 km/h (clique aqui para ver o vídeo do açoite do vento que nosso repórter enfrentou).
A Patagônia
Desde que o navegador Fernão de Magalhães cruzou o estreito ao sul da América hoje batizado com seu nome, em 1521, e exclamou “El patagon!” ao ver os grandes pés enrolados com peles de um nativo Ona, a Patagônia passou a ser palco da cobiça mundial. Muitas vezes torta e infundada, diga-se de passagem. Para lá acorreram sonhadores sempre em busca do “El Dorado”, exploradores, naturalistas como Charles Darwin, bandoleiros como Butch Cassidy, Sundance Kid e Ethel Place, além de colonos de muitas raças dispostos a viver epopéias regadas a sangue e vento em infinitos pampas semi-áridos e aos pés de montanhas geladas. Por não observar as práticas indígenas, a realidade natural da região e tentar levar àquelas paragens modelos agropecuários inadequados, muitos colonos perderam fortunas e a vida nos rigorosos invernos.
Essas práticas e os disparates de muitos governantes fizeram com que à Patagônia fosse dominada pelo subdesenvolvimento e por gigantescos latifúndios para criação de ovelhas. Elas chegaram ao continente depois de rápida passagem pelas Malvinas, e foram o estopim de grandes impactos ambientais provocados pelo desmatamento e do extermínio da população nativa que corria livre pelos campos e conhecia como ninguém a melhor maneira de sobreviver em paragens tão inóspitas.
Em seu imperdível Barridos por el Viento – Historias de la Patagonia desconocida (Editorial Guadal), o historiador argentino Roberto Hosne, afirma que o excessivo número de ovelhas deixou suas marcas na região. Segundo ele, em 1970 uma ovelha se alimentava com o pasto de dois hectares; já em 2000, eram necessários mais de sete hectares, tudo graças ao avanço da desertificação.
Além de ter sido salpicada principalmente por colonos europeus e norte-americanos em sua colonização, a Patagônia vem sofrendo nas últimas décadas uma nova invasão, graças à desvalorização das moedas sul americanas. Não bastasse o imenso afluxo de turistas estrangeiros à região, não raro os preços são afixados em dólares ou euros. E imensas extensões de terras estão nas mãos do capital externo.
São donos de estâncias na região o dono da CNN, Ted Turner, o empresário norte-americano Charles Lewis, sócio de Silvester Stallone e Arnold Schwarzenegger na cadeia de restaurantes Planet Hollywood, a família Benetton e muitos outros. Essa concentração de terras tem gerado conflitos com os poucos indígenas que restam, espalhado cercas e capangas pela Patagônia e levantando suspeitas sobre a conduta de funcionários públicos e governantes. Nada muito diferente do Brasil, onde a sociedade ainda não entende o valor de uma floresta em pé ou de um rio limpo e, por isso, tolera os sucessivos desgovernos e assiste piamente à dilapidação programada do patrimônio nacional.
(Por Aldem Bourscheit,
O Eco , 30/01/2007)