Ele nasce tímido, silencioso, pequeno. Brota da terra protegido por uma das mais belas porções do que restou da Mata Atlântica gaúcha. A água cristalina que verte generosa segue seu curso por lajeados, pequenas cachoeiras e todo tipo de meandros até se lançar imponente em direção à planície, um salto com mais de 100 metros de altura.
Este cenário exclusivo para poucos que enfrentam escarpas íngremes e quase intransponíveis é o berço do rio dos Sinos, que em outubro do ano passado foi vítima do descaso ambiental brasileiro: 90 toneladas de peixes morreram sufocados em suas águas insalubres. A água que nasce pura e potável foi transformada pela sociedade em línguas enegrecidas por todo tipo de esgoto. A reportagem de O Eco enfrentou dois dias de caminhada no escaldante verão gaúcho, regada a mosquitos, mutucas e muita lama para ver de perto onde nasce o rio de apenas 196 quilômetros que virou manchete nacional por seus alarmantes níveis de poluição.
Suas principais fontes encontram-se dentro das terras indígenas Varzinha e Barra do Ouro, a 100 quilômetros de Porto Alegre, próximas aos municípios de Caraá, Maquiné e Santo Antônio da Patrulha. Administradas pela alquebrada Fundação Nacional do Índio (Funai), as duas áreas somam mais de três mil hectares, onde vivem 200 guaranis. Segundo o indigenista Francisco Witt, da Funai, as nascentes têm mais chance de preservação dentro das terras indígenas. “Por seu jeito de viver, os guaranis mantêm a vegetação e as fontes”, disse. “Há certa pressão de fazendeiros e vizinhos das reservas para desmatar e criar gado, mas a fiscalização e os próprios nativos não permitem”, garantiu. É preciso autorização para conhecer a região.
Depois de percorrer alguns quilômetros em meio à mata fechada, onde recebe água de pequenos afluentes, o rio dos Sinos despenca de mais de uma centena de metros. Sua maior cachoeira fica no município agrícola de Caraá, rodeada por um anfiteatro de rocha onde andarilhos se refrescam em sua queda gelada. Mas é justamente onde o rio revela grande parte de sua força e beleza que seus problemas começam, como conta o ambientalista Carlos Bartz Moreira, da Associação para a Proteção das Nascentes do Rio dos Sinos (Apenas). “A extração ilegal de bromélias, xaxim e palmito, o corte de matas ciliares, a falta de saneamento e os turistas que deixam latas de cerveja, embalagens e caixas de isopor preocupam. Mas preservar as nascentes é uma questão de honra, é meu objetivo de vida”, disse.
Início da degradação
Criada em 2002 para tentar conciliar o turismo e a agropecuária de pequeno porte com a preservação do manancial (alguns criadores de porcos lançam dejetos in natura nas águas), a associação tem lutado para obter recursos, mobilizar moradores e governos para criar uma área de proteção integral, como um parque municipal, estadual ou federal. “Isso ajudaria a preservar o rio, a controlar o turismo e dar educação ambiental aos colonos. Sem instrução, muitos são injustamente multados pela fiscalização”, ressaltou.
O Sinos segue seu curso, serpenteando pelas planícies. Por ter baixa declividade e correr lentamente, o rio dificilmente será barrado para geração de energia. Seus problemas históricos são a poluição por esgotos domésticos e industriais, destruição de banhados, lixo e captação descontrolada de água.. Essas mazelas se intensificam a partir da cidade de Taquara, onde crescem os aglomerados urbanos da bacia hidrográfica que tem 35 municípios e dois milhões de habitantes. Passando por Igrejinha, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Sapucaia e Canoas, já na região metropolitana de Porto Alegre, o Sinos recebe o abraço da morte com toneladas de poluentes lançados em afluentes como o Arroio Portão - um valão de tão poluído -- ou diretamente em seu leito.
Os esgotos consomem o oxigênio e envenenam a água, sufocando os peixes. O problema já causou três mortandades desde outubro. A última, em dezembro passado, matou meio milhão de animais, por ironia no mesmo momento em que O Eco visitava as nascentes do Sinos. As tragédias são ainda mais graves porque ocorreram na piracema, quando muitas espécies sobem o rio para se reproduzir. Nesse trajeto, encontram uma barreira imunda e sem oxigênio.
Tentando respirar, os peixes saltam freneticamente para fora d´água. No fim, resta o silêncio e o cheiro fétido de milhares de corpos inertes. “Não dá para avaliar com precisão, mas certamente haverá impacto nos estoques de peixes. O lambari, por exemplo, está ameaçado de extinção no rio dos Sinos”, disse a bióloga Camila dos Anjos, do projeto Peixe Dourado, lançado em 2001 para estudar a qualidade das águas a partir da presença da espécie típica da região.
Com quase 20% da população gaúcha e uma das maiores concentrações de indústrias metal-mecânicas e coureiro-calçadistas do estado, a bacia do rio dos Sinos não suporta mais o lançamento de poluentes. Se isso continuar, os impactos serão não só ambientais, comprometerão ainda mais o desenvolvimento sócio-econômico regional. “Grande parte da poluição industrial é tratada, o maior problema são os esgotos”, avaliou Viviane Nabinger, secretária-executiva do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos (Comitesinos).
Resultado da falta de atenção ao alerta histórico de ambientalistas, ausência de planejamento e escassez de recursos, mais de 95% dos esgotos domésticos acabam nas águas que, rio abaixo, têm que ser tratadas com alto custo antes de encher os copos da população. São Leopoldo, onde o Serviço Municipal de Água e Esgotos (Semae) patrocina até equipe de vôlei, trata apenas 20% dos esgotos, um dos maiores índices da bacia, enquanto a vizinha Novo Hamburgo, cuida de irrisórios 2%. “Muitos moradores têm fossas, mas elas só funcionam se forem limpas anualmente. Novo Hamburgo está fazendo isso em alguns condomínios”, disse Nabinger.
Custo da limpeza
Cálculos oficiais mostram que seria necessário R$ 1,5 bilhão para coletar e tratar todo o esgoto na Bacia do Sinos. O problema é de onde sairá essa bagatela. A aprovação do novo marco legal para o saneamento pelo Congresso Nacional trouxe certo alento, mas deixou nos escaninhos da Justiça Federal a decisão sobre a quem cabe o tratamento de efluentes, se aos municípios ou ao estado ou a ambos. Enquanto isso, o esgoto continua indo para o rio.
Parlamentares gaúchos estão mobilizados para obter R$ 200 milhões a partir de emendas no Orçamento da União, mas tudo pode acontecer, inclusive nada. Recentemente, 13 prefeituras assinaram acordo para formar uma empresa que captará recursos estaduais e federais para tratar esgotos. O dinheiro seria administrado por um consórcio regional, cuja legislação deverá ser aprovada até março de 2007..
Apesar de ter o primeiro comitê do país, a Bacia do Sinos ainda carece de um braço executivo do Comitesinos, sua agência de Bacia. O órgão teria poderes para cobrar pelo uso da água e investir em coleta, tratamento de esgotos e educação ambiental, por exemplo. Mesmo sem agência, foi tentada uma cobrança adicional nas contas de água em São Leopoldo, que acabou barrada pelo Ministério Público por falta de legislação. Em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, uma lei municipal permitiu a formação de uma “poupança coletiva” para tratamento de esgotos..
Mas apenas dinheiro não será suficiente para resolver os problemas crônicos do rio dos Sinos, avisa Rafael Altenhofen, da ong União Protetora do Ambiente Natural (Upan). Segundo ele, sem compromisso ambiental e aplicação técnica dos recursos não haverá avanços reais. “Será preciso definir claramente os pontos críticos para uso das verbas, o que deverá ter acompanhamento público. Há conhecimento e tecnologia para resolver os problemas, mas ainda faltam recursos e a incorporação da variável ambiental nas políticas públicas”, disse.
Além disso, é preciso frear a destruição de banhados e reduzir o consumo e o desperdício e de água, em média de 40% na captação e distribuição. Enquanto em nível mundial recomenda-se o uso diário de até 200 litros para cada pessoa, os habitantes do Vale do Sinos consomem diariamente 297 litros. A situação é mais grave em capitais como Rio de Janeiro (450 litros/dia), São Paulo (350 litros/dia) e Belo Horizonte (300 litros/dia).
Saldo da exploração
Dos banhados que existiam na bacia no início do século passado, quase 60% foram destruídos. Restaram cerca de 170 km2. O restante foi devorado para a construção de cidades ou drenado para agricultura, principalmente de arroz. Embora ainda sejam vistos como criadores de mosquitos e áreas de pouca importância, os banhados controlam as águas das cheias e mantêm o nível dos rios nas secas, além de serem locais de reprodução de várias espécies. Eles fazem parte do sistema que mantém o rio vivo.
Em vez deles, na bacia existem quase cinco mil hectares com plantações de arroz, principalmente na parte média e baixa do rio, em municípios como Nova Santa Rita e Esteio. Há muito arroz clandestino plantado e sem outorga para bombeamento de grandes quantidades de água. Com o plantio da safra de verão, entre outubro e novembro, o rio passa a sofrer mais. Até hoje não foram feitos estudos sobre o lançamento de agrotóxicos por essas lavouras.
Desde a tragédia anunciada de outubro, os órgãos ambientais do estado e dos municípios têm tomado ações de curto prazo para tentar recuperar um pouco da vitalidade do rio. Mangueiras injetam oxigênio em pontos críticos, entre São Leopoldo e Esteio, como em um paciente na UTI. Mas com previsão de chuvas abaixo da média para este verão, novas mortandades e racionamento de água devem ocorrer.
Responsabilidade
De acordo com André Milanez, da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), foi intensificada a fiscalização contra a poluição clandestina do rio e portarias e resoluções foram publicadas para que novos licenciamentos tenham aval do Comitesinos a fim de elevar o nível de exigência do lançamento de efluentes e exigir que os municípios elaborem planos para coleta e tratamento de esgotos. “Essas são saídas a curto prazo. Também temos que rezar para que chova”, recomendou o técnico.
Suspeita de negligência por não ter fiscalizado corretamente empresas poluidoras, a Fepam será investigada pela Polícia Federal. Um dos algozes da mortandade ocorrida em outubro é a União dos Trabalhadores em Resíduos Especiais e Saneamento Ambiental (Utresa), empresa de Estância Velha que caridosamente recebe resíduos de 3,5 mil indústrias, inclusive de fora do Rio Grande do Sul. O dono, Luiz Ruppenthal, está foragido e os bens foram bloqueados pela Justiça.
Após a tragédia no Sinos, algumas empresas deixaram de enviar seus resíduos à Utresa. Conforme Jackson Müller, diretor-técnico da Fepam, a melhor hipótese é de que os poluentes estejam sendo acumulados pelas empresas ou sendo enviados a outros locais. Já existe movimento na região para que a Utresa passe a incinerar os resíduos que recebe, deixando de apenas acumulá-los, formando nova bomba-relógio.
Depois de cruzar a região metropolitana, o Sinos finalmente encontra o Delta do Jacuí, onde despeja toda a sua poluição junto à capital gaúcha. Dali em diante, suas águas misturam-se com as de outros mananciais formando o Lago Guaíba, para em seguida ganhar a Laguna dos Patos e encontrar o mar. É o curso incessante de águas que poderiam ser limpas, da nascente à foz, não fosse o descaso histórico. Apesar de tudo, os ambientalistas querem manter o otimismo de um dia verem o rio mais saudável. “O estado de preservação das nascentes do Sinos é um sinal de esperança de que há tempo para salvar o rio”, ressaltou Altenhofen, da Upan. Mas ele é curto.
(Por Aldem Bourscheit*,
OEco , 22/1/2007)
* Aldem Bourscheit é jornalista e trabalha como freelancer em Brasília.