Patrimônio ambiental português está ameaçado
2007-01-19
Ao contrário do prometido na campanha eleitoral, os socialistas que governam Portugal se vêem obrigados quase diariamente a explicar as “exceções ambientais”, que admitem por “interesse nacional”. Uma política igual a de seus antecessores conservadores, e que sempre questionaram. No início de 2005, quando o Partido Socialista venceu as eleições, os ecologistas de todas as tendências políticas não esconderam sua satisfação, porque as rédeas do poder estavam nas mãos do secretário-geral, José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, um jovem engenheiro protagonista de grandes batalhas em defesa do ferido meio ambiente português.
A primeira prova da determinação de Sócrates foi dada em março de 2005, pouco depois de assumir o cargo, quando revogou decisões do governo anterior, primeiro liderado pelo hoje presidente da Comissão da União Européia, José Manuel Durão Barroso, e depois por Pedro Santana Lopes, que autorizavam o desmatamento para construção de complexos turísticos. Nessa oportunidade, Sócrates anulou a permissão para cotar árvores das quais se extrai a cortiça, cujo comércio mundial é controlado em 67% por Portugal. A autorização tinha sido dada para que fosse construído um centro turístico em Benavente, no norte do país.
A atitude firme de Sócrates foi, então, aplaudida unanimemente pelos mesmos ambientalistas que hoje questionam a proliferação de autorizações do mesmo governo para excluir boas parcelas da Reserva Ecológica Nacional (REN), sob o argumento de “interesse público” ou “interesse nacional”. Isabel de Castro, ex-deputado e dirigente do Partido Ecologista Verde (PEV), disse à IPS que é necessário “alertar para o perigo que corre nosso valioso patrimônio natural, ambiental, paisagístico e cultural, que com a cumplicidade ou omissão dos sucessivos governos está morrendo, sendo destruído a cada dia em nome do lucro imediato e fácil”.
Esta realidade “é bem visível na perda da biodiversidade, na fauna e na flora, no empobrecimento dos solos, com mais da metade do território nacional (de 92 mil quilômetros quadrados) ameaçada de desertificação e com um terço sofrendo grave erosão”, disse a ex-deputada. Isabel, que no ano passado renunciou ao seu mandato para dedicar-se totalmente ao ativismo ambiental, recordou à IPS que 80% do território português são de floresta, “da qual uma parte significativa é destruída por incêndios e reflorestamentos com espécies não autóctones, de crescimento rápido, como o eucalipto”.
Os sucessivos governos “permitiram sérios atentados à paisagem, uma desordem do território e o caos urbanístico”, acrescentou a ex-deputada do PEV, que deu como exemplo a “invasão do concreto no litoral, principalmente na Costa Vicentina”, uma área protegida da União Européia do sudoeste de Portugal. “Sob o pretexto de interesse público se acelera o processo de erosão em nosso litoral, se acelera o processo de erosão de nossa costa, com construções indevidas, urbanizações em zonas de risco à beira de barrancos ou destruindo cordões de dunas pela extração ilegal de areia”, acrescentou. Quase impunemente, ou pagando reduzidas multas, as indústrias “contaminaram mais da metade dos rios do país e disto não escapou nem mesmo o estuário do rio Tejo, uma das 10 maiores zonas úmidas do mundo”, denunciou a ex-deputada.
Apesar de a maior parte dos numerosos sistemas e áreas protegidas de Portugal “estarem integrados à Rede Européia Natura 2000, encontram-se degradados e ameaçados pela negligência, invasão de construções e as “pragas” dos clubes de iates”, concluiu a ativista. As declarações de interesse público de projetos turísticos privados para vencer obstáculos legais de ordem ambiental, segundo Ricardo García, jornalista especializado em ecologia do jornal Público, de Lisboa, mancham a imagem “verde” do governo.
“São vários os casos em que o atual governo recorreu a regimes de exceção previstos na legislação ambiental para sancionar projetos que considera de interesse nacional, sobretudo por se tratar de milionários investimentos que prometem milhares de empregos”, disse García em uma extensa reportagem de três páginas da edição de segunda-feira do Público.
Hélder Spinola, presidente da associação de ambientalistas Quercus, confessa que “o sentimento que temos é de desilusão”, porque, segundo explicou também ao Público, “quando constatamos que o governo age em bloco para viabilizar projetos em zonas sensíveis, perdemos grande parte da esperança depositada nessas pessoas”. Para permitir intervenções na REN, até o fim do ano passado o governo emitiu 247 resoluções declarando o “interesse público”, na maioria dos casos referentes a obras de utilidade social, tais como redes de água e esgoto, estradas e ferrovias.
Entretanto, a estas obras somam-se investimentos do setor privado, fustigados pelos ativistas que acusam o governo de ceder às pressões dos grandes interesses econômicos e de autorizar projetos considerados lesivos para o meio ambiente, razão pela qual mantêm processos em tribunais portugueses e perante instâncias da UE com sede em Bruxelas. O ministro do Meio Ambiente, Francisco Nunes Correia, contra-ataca: “O governo está seguindo o rumo certo”, afirmou em entrevista também ao Público, na qual assegura que, ao contrário do que falam, é o ambiente que exerce pressão sobre a economia.
“Rechaço totalmente a denúncia de que o ministério está sendo pressionado. Eu colocaria a questão ao contrário. É o ministério que está exercendo uma grande pressão sobre a economia e os investimentos para incluir preocupações ambientais em seus projetos”, enfatizou Correia. Diante da polêmica desatada com a ampla reportagem do principal jornal de Lisboa, o presidente da estatal Agência Portuguesa de Investimentos (API), Basílio Horta, destacou que a REN “não significa que nada pode ser construído”.
Nomeado para o cargo por Sócrates apesar de ter sido candidato conservador à presidência de Portugal, derrotado pelo socialista Mario Soares em 1986, o titular desta agência dedicada a captar investimentos estrangeiros assegura que “não há desenvolvimento sem meio ambiente, mas meio ambiente sem desenvolvimento econômico é desemprego”. Horta não reconhece nos ambientalistas “legitimidade para dar lições”, e adverte que se forem rejeitados “importantes investimentos, com impacto tecnológico e nas exportações, o que faremos no futuro? Reduziremos o país a termas?”, perguntou.
(Por Mario de Queiroz, IPS, 18/01/2007)
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