Artigo: Ouro Verde do Oeste, depois do café
2007-01-18
Por Marcos Sá Correa*
Foi gafe chegar sem aviso à casa do catarinense Siegfried Gutmann. Na tarde alta, com o sol lá fora cozinhando a paisagem, o agricultor estava dormindo, depois de emendar a noite com o dia no baile da colônia. Sobre a mesa rústica da varanda, os mocassins de festa e as botinas de elástico continuavam misturados aos instrumentos agrícolas.
Dançar pela madrugada adentro nas quartas-feiras e nos sábados é um compromisso que ele leva tão a sério quanto as outras rotinas de pequeno proprietário rural em Ouro Verde do Oeste, no Paraná. Se o mundo dançasse mais e deitasse menos, diz ele, quando as palmas conseguem tirá-lo do sono, a natureza não estaria arcando agora com os custos da superprodução de seres humanos.
Ouvi-lo era recomendação da prefeita Cleunice Alves Cardoso. 'Tem pouca terra que produz como grande', explicou. Ouro Verde, a cidade, mal passou dos 6 mil habitantes. Deve o nome ao café, que sumiu sem deixar lembrança nas colinas tomadas pela soja. Era 'selva pura' na memória dos pioneiros que chegaram nos anos 60, como Siegfried e a prefeita.
A mineira Cleunice veio de Mutum, na Zona da Mata mineira, onde três anos seguidos de safras perdidas haviam quebrado a família de médios cafeicultores. Siegfried foi trazido 'ainda piá' em caçamba de caminhão, gastando 'dois dias e duas noites' na viagem, por trilhas rasgadas na floresta. Cleunice é professora de matemática. Na prefeitura, uma de suas funções é encontrar vocações econômicas para o município, que só tem 17 anos, mas está virando rapidamente terra de velhos, com hipertensão, diabete e outras doenças da terceira idade no topo de seus programas sociais. Quem é jovem deixa a cidade para trabalhar onde exista emprego.
Mas Siegfried, aos 64 anos, está na lista das soluções. Antes que acorde, dá para ouvir as engrenagens automáticas de seus dois aviários funcionando sozinhas, para alimentar na hora certa os quase 40 mil frangos da granja. Ele engorda aves em ritmo industrial para um abatedouro. Sobra-lhe espaço em seus poucos alqueires para criar gado de corte, manejando cerca de 70 cabeças em 14 piquetes, para que os pastos repousem onde os bois não entram. Ganha 'uns R$ 65 mil por ano, brutos'.
Não era assim quando Siegfried comprou a terra em 1996. Encontrou 'uma vertente inútil, com uma agüinha que não dava para nada'. Os bois do antigo proprietário zanzavam soltos no pasto abandonado, ajudando as enxurradas a cavarem barrancos de 3 metros de altura no terreno. Ele tapou os buracos, cercou o bebedouro, plantou árvores e baniu todas as culturas que exigem herbicidas, evitando que o veneno escorresse para o córrego. Dez anos depois, enfrentou uma estiagem de 125 dias. Faltou água nos vizinhos para criar frangos. Em seu terreno, 'a fonte jorrava'. Por quê? 'Porque o mato segura a chuva, a água entra no solo, em vez de escorrer pelo chão, e vai sair filtrada lá embaixo, limpinha', ele explica.
Foi um dos primeiros agricultores do município a participar de um programa para a recomposição de matas ciliares. Saldou sua dívida de colono com Ouro Verde, que conheceu quando ainda se fisgavam no Rio Paraná peixes tão grandes 'que era preciso juntar vários homens para carregá-los' e os ipês 'com 30 centímetros de diâmetro', que, rebarbados pelas serrarias, iam diretamente para o fogo. Siegfried diz que está fazendo isso pelos netos. 'Mesmo que eles nunca venham morar aqui.'
(O Estado de S. Paulo, 17/01/2007)
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