A pressão de fazendeiros para que os índios Kadiwéu arrendem suas terras localizadas no Mato Grosso do Sul segue preocupando o governo federal. Em dezembro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou, no Diário Oficial da União, a Instrução Normativa (IN) nº 8 que anulou, a partir de 1º janeiro deste ano, todos os contratos de arrendamento entre fazendeiros e índios da Terra Indígena (TI) Kadiwéu.
A Funai pretende rever todos os contratos e regulamentar a prática de parceria pecuária de acordo com a legislação - o arrendamento propriamente dito é proibido por lei – para garantir que os benefícios resultantes da atividade econômica sejam estendidos a toda população indígena da TI, estimada em 1.600 indivíduos e organizada em cinco aldeias.
A Instrução Normativa estabelece o prazo de 90 dias para que os fazendeiros deixem a TI Kadiwéu – a maior área indígena do Mato Grosso do Sul, com quase 540 mil hectares – e firmem termos de compromisso para se adequar à futura regulamentação da atividade. Os ocupantes não-índios que não respeitarem a determinação do órgão federal poderão ser retirados à força e ter bens e animais apreendidos. A Funai considera arrendamento as atividades pecuárias que implicam cessão, posse ou ocupação do território Kadiwéu por não-índios.
De acordo com funcionários da Funai em Bonito (MS), município próximo à TI, atualmente 100% da área indígena está convertida em fazendas para a criação de gado. Seriam mais de 145 fazendas dentro da TI, abrigando quase 100 mil cabeças. Uma das preocupações da Funai em regularizar a situação na TI também decorre da possibilidade de o órgão vir a ser responsabilizado pelo Ministério Público Federal na Justiça pelos arrendamentos.
Prática antiga
Ainda que proibido pela Constituição Federal, o arrendamento é uma prática antiga e disseminada em Terras Indígenas de todo o país e um dos maiores desafios para a gestão das TIs em todo o território nacional. O arrendamento, muitas vezes, é travestido de "parceria pecuária" ou "parceria agrícola", entre índios e fazendeiros, para permanecer no terreno da legalidade. A diferença é que no arrendamento os índios transmitem a terceiros a posse da terra - ainda que temporariamente - para que os arrendatários desenvolvam suas atividades e paguem aos índios pela cessão dos pastos. Isso é proibido e é o que a Funai tenta extinguir da TI Kadiwéu. As terras indígenas são bens da União de posse permanente e usufruto exclusivo dos povos indígenas.
No caso das parcerias, contudo, a terra permanece na posse dos índios, que recebem o gado de terceiros, mas ficam responsáveis pela atividade econômica. O que se divide, então, não é a terra, mas o lucro pela venda dos animais e seus produtos. Na prática, porém, ambas as modalidades se misturam e se confundem, muito em função da falta de aptidão da maioria das etnias indígenas para a pecuária. A exceção ocorre exatamente com os índios Kadiwéu, conhecidos como "índios cavaleiros", e que sempre demonstraram familiaridade com a criação de animais de grande porte.
Em verbete publicado em 1999 na Enciclopédia Povos Indígenas no Brasil, a antropóloga Mônica Thereza Soares Pechina, da Universidade de Brasília, afirma que os criadores de gado do Mato Grosso do Sul começaram a invadir a área indígena Kadiwéu em meados do século passado. Tinham inclusive autorização do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o órgão federal à época responsável pela política indigenista do governo brasileiro. No começo dos anos sessenta, mais de 60 contratos de parceria pecuária haviam sido efetivados entre os índios e fazendeiros.
Contratos “maquiados”
Muitos dos contratos, entretanto, maquiavam o arrendamento de parte do território Kadiwéu. A antropóloga diz que "esta ocupação alterou significativamente a utilização pelos índios de seu território. No início da década de 1990, eram 89 as fazendas arrendadas no interior da Terra Indígena Kadiwéu, as quais se estendiam pelo território quase que na sua inteireza, de forma a ficarem os índios espremidos nas suas aldeias." A especialista afirma também que, além do número de cabeças de gado sempre excederem ao combinado nos contratos, a quantidade de animais provocou o esgotamento dos recursos naturais do território.
Até o final dos anos oitenta o pagamento das taxas e a gestão dos contratos de parceria eram geridos pela própria Funai, quando passaram a ser controlados diretamente pela Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu (ACIRK). A verba do aluguel das terras consistia, então, na principal renda das comunidades indígenas. No começo dos anos noventa o governo federal iniciou um processo de despejo dos fazendeiros arrendatários que obteve relativo sucesso e redundou na consolidação da autonomia indígena no território.
Os problemas, entretanto, não cessaram, conforme prova a nova investida da Funai por meio da publicação da Instrução Normativa nº 8. "A necessidade da garantia da sua subsistência, hoje ainda mais difícil na ausência da renda, por um lado, e a forte pressão que sofrem de ex-arrendatários e de arrendatários recalcitrantes, por outro, mostram a gravidade do quadro", escreve Pechina. "Para a consolidação de uma nova situação que venha de fato a atender os seus mais legítimos interesses, os Kadiwéu precisam contar com uma estrutura que a viabilize e concretize. Os Kadiwéu anseiam tornarem-se pequenos criadores mediante um projeto auto-sustentável. Para tanto, necessitam de gado e de apoio técnico condizente. Necessitam, enfim, de efetivo apoio, sobretudo governamental".
Diante desta situação, a Funai garante na própria IN que vai instituir Grupo de Trabalho “com a finalidade de implantar o projeto de parceria pecuária e oferecer alternativas econômicas ao povo indígena Kadiwéu, com base em um modelo de contrato de parceria que atenda e respeite os ditames constitucionais e a Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973, o Estatuto do Índio.”
O Grupo de Trabalho será composto por representantes da Funai e da comunidade indígena Kadiwéu. O Ministério Público Federal será convidado a participar do Grupo de Trabalho, que deverá ouvir e consultar a comunidade indígena Kadiwéu e apresentar suas conclusões até o final de fevereiro.
(Por Bruno Weis,
Instituto Socioambiental, 05/01/2007)