Há quase dois anos no comando da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e cotadíssimo para assumir a pasta do Meio Ambiente, em caso de saída da ministra Marina Silva, o engenheiro Jerson Kelman avisa que é preciso avançar sobre a Amazônia para garantir o abastecimento energético brasileiro no futuro. Ele rebate a tese de que isso pode acentuar a devastação de florestas e cobra mais responsabilidade do movimento ambientalista, sobretudo de organizações não-governamentais. "Não se deve defender a simples intocabilidade do meio ambiente."
"Teremos que escolher entre usar o potencial hidráulico da Amazônia ou optar maciçamente por energia nuclear", afirma Kelman, um professor universitário que ajudou a criar a Agência Nacional de Águas (ANA), no governo Fernando Henrique Cardoso, tornou-se célebre no setor elétrico pelo diagnóstico que fez do apagão de 2001 e conquistou a estrita confiança da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ainda quando ela comandava a pasta de Minas e Energia.
Pela primeira vez, Kelman defende publicamente a construção da usina nuclear de Angra 3 e diz que o assunto está "maduro" para uma decisão na próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), previsto para 30 de janeiro. "Com tantas incertezas para viabilizar o programa hidrelétrico de que o país necessita, não podemos abrir mão de nenhuma alternativa energética disponível", frisa.
Em meio a polêmicas com a Petrobras, pela decisão de retirar mais de 3 mil megawatts (MW) de usinas termelétricas do cálculo de energia assegurada no sistema interligado nacional, Kelman alfineta a estatal, mas afirma estar "esperançoso" e "confiante" de que, diagnosticado o problema de falta de gás para mover as térmicas, o país não enfrentará um déficit de energia em 2008.
Na quinta-feira passada (28/12), ao conceder esta entrevista, o diretor-geral da Aneel estava de mau humor. Naquele dia, uma reportagem publicada pelo Valor incluía declarações de Glenn Switkes, diretor do programa de América Latina da ONG International Rivers Network, que dizia, sobre a possibilidade de Kelman assumir o Ministério do Meio Ambiente, que "é como colocar o lobo para proteger os porquinhos". Antigo defensor de causas ambientais e do desenvolvimento sustentável, Kelman não é o que os agentes do setor elétrico chamariam de xiita, nem o que os ambientalistas qualificariam de devastador.
"Eu dediquei a minha vida à preservação e ao desenvolvimento dos rios. Sou professor de recursos hídricos há 35 anos. Vem um caboclo desse e diz que sou contra o meio ambiente? Puxa, eu ajudei a criar a ANA. Como vou receber essa crítica? Eu represento o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável", afirmou um contrariado Kelman.
Valor: A atuação das organizações não-governamentais ambientalistas tem prejudicado ações pró-desenvolvimento do governo?
Jerson Kelman: O que muitas ONGs propõem é uma estagnação insustentável, defendendo causas incompatíveis com o interesse brasileiro de promover crescimento com bem-estar e qualidade de vida. Existem organizações internacionais que têm como meta impedir a qualquer custo a construção de novas barragens, não importa quais sejam as conseqüências: desemprego, preservação da pobreza, queima de óleo diesel para mover usinas térmicas. Não tiro a legitimidade de alguém que pretende manter as cachoeiras do mundo intocáveis. Todas as causas têm seus defensores. Deve haver por aí alguma sociedade protetora das moscas. O ilegítimo é organizações desse tipo se apresentarem com uma representatividade que não têm, passarem por cima do legítimo direito de governos democraticamente eleitos de cumprirem seus programas de governo.
Valor: O sr. acha que a maioria das ONGs ambientalistas é assim?
Kelman: Há organizações que buscam o desenvolvimento sustentável e fazem trabalhos honestos e importantes. É o caso da WWF. Temos discordâncias, mas ela não tem uma postura de dizer "olha, aqui não se toca". Ou da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (da qual o próprio Kelman faz parte). No caso da energia elétrica, é preciso olhar a necessidade de expansão do parque gerador, sem condenar as próximas gerações a uma pior qualidade de vida. O que não se deve defender é a simples intocabilidade do meio ambiente. Conheci a International Rivers Network, por exemplo, em 1987, quando fui trabalhar um ano na Califórnia. Na época, perguntei a eles o que sugeriam para o Brasil. Sugeriam conservação de energia, produção eólica etc. Coisas que devem ser feitas, mas não resolvem o problema. O que eles querem é a manutenção da pobreza para manter os rios intocados - algo que não fizeram lá na Califórnia. A miséria das pessoas não os sensibiliza.
Valor: O planejamento energético elaborado pelo governo até 2030 indica que mais de 60% do potencial hidrelétrico ainda disponível no país está na Amazônia. Teremos que decidir se avançamos sobre a Região Norte para garantir o suprimento energético?
Kelman: Sim. Teremos que escolher entre usar o potencial hidráulico da Amazônia ou optar maciçamente por energia nuclear, como fez a França - justamente depois que construiu todas as hidrelétricas que podia. Mas precisamos dissociar a idéia de utilização do potencial hidráulico da Amazônia à sua devastação. A tragédia amazônica está em um ciclo de três fases: madeireiras, gado e soja. O desenvolvimento do potencial hidráulico não tem nada a ver com essa tragédia. O percentual de florestas a ser desmatado para a construção de hidrelétricas é absolutamente insignificante. Tudo o que precisamos tirar de florestas para construir os reservatórios, nos próximos 20 anos, é talvez o equivalente a um mês de desflorestamento, no ritmo que observamos hoje.
Valor: O sr. nunca se pronunciou publicamente sobre a construção da usina de Angra 3. É favorável à retomada das obras?
Kelman: Hoje, com tantas incertezas para viabilizar o programa hidrelétrico de que o país necessita, não podemos abrir mão de nenhuma alternativa energética que esteja disponível. E Angra 3 já tem licença ambiental, não acrescenta nenhum risco ao que existe, vai ser construída no mesmo local onde existem outras centrais nucleares. Economicamente a energia nuclear tornou-se competitiva, não porque ficou mais barata, mas porque as outras fontes ficaram mais caras, seja pelo preço do gás, seja pelas dificuldades sociais e ambientais das novas hidrelétricas. Por isso, hoje sou favorável a Angra 3.
Valor: E favorável a uma decisão rápida, no dia 30 de janeiro, quando haverá a próxima reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)?
Kelman: Penso que o assunto está maduro e Angra 3 tem condições de receber um sinal verde.
Valor: A ministra Dilma Rousseff diz que Angra 3, sozinha, não faz verão. O sr. também apóia a construção de outras centrais nucleares?
Kelman: Ainda não tenho opinião formada sobre outras usinas nucleares. O Brasil usa menos de 30% do seu potencial hidráulico e deveria seguir o exemplo dos países desenvolvidos, que exploraram, em média, 70% das possibilidades. Nossa vocação é hidrelétrica: trata-se de uma energia renovável, mais barata e nós dominamos completamente a sua tecnologia.
Valor: Os ministros da área de infra-estrutura insistem em que a maior restrição às obras está no meio ambiente. A ministra Marina Silva lembra que o Ibama está batendo recorde no número de licenciamentos e que há vários milhares de megawatts liberados, sem que um único tijolo tenha sido colocado na sua construção. Quem está com a razão?
Kelman: É verdade que muitas usinas, apesar de terem licença ambiental, não saíram do papel. Elas enfrentam obstáculos de financiamento, controle societário e de UBP (taxa incidente sobre as usinas licitadas no antigo modelo do setor elétrico). Mas, disparado, o maior problema ainda é o ambiental e social. Isso não deve ser lido como morosidade do Ibama. Cada vez que se fala nas restrições ambientais, o ministério se sente ofendido e diz que o licenciamento está ágil. Na verdade, o problema vai muito além disso. Freqüentemente, a paralisação está em ações na Justiça.
Valor: Então, qual é o ponto a atacar?
Kelman: Os defensores do meio ambiente costumam apontar a necessidade de uma visão holística, que não tem sido muito buscada na prática. A primeira tarefa para construir uma agenda de desenvolvimento sustentável é olhar um conjunto de projetos e, dentro deles, escolher um subconjunto: empreendimentos que afetam sim o meio ambiente, que afetam sim os aspectos sociais, mas que são indispensáveis para atender as expectativas de crescimento do país e de melhoria da qualidade de vida da população. Para esses projetos, deve caber ao Ibama fazer os estudos de impacto ambiental.
Valor: Então a reforma da legislação ambiental deve ir além da regulamentação do artigo 23 da Constituição, que o governo anunciou recentemente?
Kelman: Claro. Assim como pênalti deve ser batido pelo presidente do clube, o EIA-Rima de empreendimentos estruturantes, em que o interesse público prevalece sobre o privado, deveria ser feito pelo próprio Ibama. O impacto social, de âmbito local, pode ser tratado por outro órgão do governo. Ao mesmo tempo, caberia aos ministérios do Planejamento e de Minas e Energia mostrar os aspectos positivos desses empreendimentos para o país. Dessa forma, teríamos um quadro amplo para o recebimento de uma chancela governamental ou mesmo do Congresso. Para esses projetos, não haveria a necessidade de licenciamento ambiental. A Constituição de 1988 exige a realização de estudos ambientais, não de licenciamento. A reforma na legislação ambiental deve olhar três aspectos: a definição de competências, o processo em si e a responsabilidade jurídica do licenciador. Não pode haver punição para o técnico que toma uma decisão de boa-fé. Hoje ele responde como pessoa física pelos pareceres que assinou.
Valor: No relatório Kelman de 2001, o sr. fez um diagnóstico de que a falta de planejamento foi uma das causas do apagão. Há semelhanças entre aquele diagnóstico e o alerta de racionamento que o sr. fez recentemente, na carta que enviou ao ministro Silas Rondeau?
Kelman: A semelhança com aquele momento existe. Na época, as termelétricas não foram construídas pela ausência de contratos de longo prazo. O erro foi imaginar que, por uma determinação governamental, os empresários iam construir térmicas sem ter contratos de 500 MWh de longo prazo. Agora, o problema também se refere às térmicas, mas é um pouco diferente: elas têm contrato. O que falta é gás.
Valor: E por que, afinal, tem faltado gás às usinas térmicas?
Kelman: Houve uma confusão da Petrobras. Ela confundiu conceitos. O diretor de Gás e Energia, Ildo Sauer, tem dito repetidas vezes que não tem sentido obrigar uma usina térmica a gerar energia se ela não tem um contrato de venda. Esse é um conceito válido em quase todas as áreas da economia. Não se pode obrigar a fábrica de cadeiras a produzi-las se ela não tem para quem vender. Mas no setor elétrico é diferente.
Valor: Por quê?
Kelman: Quando uma usina recebe autorização para conectar-se ao sistema interligado, há uma série de implicações. Essa usina inibe o surgimento de outras, induz a localização da rede de transmissão, afetou toda a expansão do parque gerador. Uma autorização, sob o ponto de vista legal, se traduz na obrigação de ficar à disposição do sistema interligado. Ou seja, quando a usina recebe essa autorização, ela se subordina ao comando do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico). Por outro lado, há o direito de vender a energia. Qual é o drama de compreensão do Ildo Sauer e da Petrobras, como instituição? É não perceber que a autorização recebida para funcionar como usinas térmicas impunha essa obrigação de estar à disposição do ONS, não importa se venderam a energia em contratos de longo prazo ou não.
Valor: Há perspectivas de a questão ser resolvida?
Kelman: Como o gás anda insuficiente, não há mágica no curto prazo. Trata-se de criar mecanismos econômicos que permitam a realocação de gás ou mecanismos mandatórios. O melhor é apostar no econômico. Por que houve uma explosão do consumo de gás na indústria? Porque estava barato. É preciso fazer com que fique mais atraente, para a indústria usar óleo combustível. Isso não causa nenhum problema estratégico para o Brasil, que exporta óleo combustível. Talvez seja um problema para a Petrobras, que ganha mais assim. Se ela baixar o preço do óleo combustível, pode lucrar menos, porque hoje está vendendo pelos valores do mercado internacional, mas melhora as condições de honrar os compromissos de fornecimento de gás às termelétricas. Esses contratos não podem ser rasgados.
Valor: A Aneel vai retirar 3.600 MW da capacidade do sistema elétrico. Isso pode levar a um novo apagão?
Kelman: O Custo Marginal de Operação (CMO) não vai sofrer grande impacto, dado que os reservatórios estão cheios. O impacto não será relevante, mesmo para preço. Tudo indica que o problema de abastecimento de gás estará resolvido até 2009. O risco era desconhecermos o perigo. Agora, que a questão foi diagnosticada, estou mais esperançoso e confiante com relação ao abastecimento em 2008. Se houver um cronograma confiável de aumento do suprimento de gás, não há nenhuma razão para pegar essa fotografia barbada, com olheiras de 2006 e dizer que esse cara continuará feio para o resto da vida. Esse novo cronograma pode ser objeto de um termo de ajustamento de conduta, proposto pelo Ministério de Minas e Energia, assegurando que elas terão capacidade de produzir energia. O que importa é não ter um cronograma apenas tentativo, acreditar que o sujeito vai entrar na academia, malhar e ficar bonitão. Por isso, a Aneel e os agentes térmicos - essencialmente a Petrobras - vão negociar esse termo em janeiro. Com esse cronograma crível, será possível construir um cenário melhor, retirando as térmicas por menos tempo.
Valor: A Aneel começará, em 2007, o segundo ciclo de revisão tarifária das 64 distribuidoras do país. No primeiro ciclo, a conta para os consumidores foi de R$ 11 bilhões. Os reajustes e revisões tarifárias em 2007 serão pesados ou ficarão bem comportados?
Kelman: O consumidor paga três componentes na sua conta de luz: a energia gerada e o custo da transmissão, que tendem a aumentar, porque as novas usinas são mais caras e construídas em locais mais distantes; impostos e encargos, em que a tendência histórica é de elevação, mas há uma crescente consciência nacional de que o país não suporta mais crescimento da carga tributária; a terceira parcela, inferior a 30% do que o consumidor paga, vai para as distribuidoras. Essa parte da distribuidora tende a ficar estável. No primeiro ciclo de revisões, o componente das concessionárias cresceu porque muitas empresas foram privatizadas sem que antes tivesse sido feito algo básico: o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. O primeiro ciclo corrigiu desequilíbrios. As revisões do segundo ciclo vão ser mais leves, com transições muito mais suaves, na percepção do consumidor.
(Por Daniel Rittner,
Valor Econômico, 03/01/2007)