Lutando para salvar sua Amazônia, marcado para morrer
2007-01-03
No início do ano passado, Tarcísio Feitosa da Silva, diretor da Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica, ganhou uma distinção dúbia aqui em uma das regiões mais repletas de conflito da Amazônia. Após a freira americana Dorothy Stang ter sido morta a tiros em uma estrada da floresta, ele passou a ocupar seu lugar na lista de pessoas marcadas para morrer mantida por madeireiros, fazendeiros, garimpeiros e especuladores de terras.
Isto, é claro, é uma forma de reconhecimento que Feitosa, 35 anos, e sua família prefeririam não desfrutar. Mas testemunha a eficácia de seu trabalho em prol das tribos indígenas, dos colonos e dos moradores de rio para preservar o que resta da floresta tropical ameaçada.
Juntamente com outros grupos religiosos e comunitários, a entidade comandada por Feitosa tem contestado títulos falsos de propriedade de terras, denunciado corte ilegal de madeira e organizado os agricultores pobres a resistir a invasões de terra. Recentemente, tais esforços foram recompensados com um decreto do governo estabelecendo um sistema de reservas naturais que, se implementado, forçará muitos fazendeiros ricos e madeireiros a abandonarem terras que atualmente controlam, sem compensação.
"Nós escolhemos uma opção que nesta região parece radical, a de manter a floresta em pé", disse Feitosa. "Isto abalou interesses poderosos que em todas as demais partes da Amazônia conseguiram derrubar a floresta."
O próprio Feitosa é um produto puro da Amazônia, nascido e criado nesta cidade de fronteira de 77 mil habitantes, no encontro da Rodovia Transamazônica com o Rio Xingu. Sua mãe é filha de um seringueiro, enquanto seu pai, originalmente um pescador de caranguejo, veio para cá como meeiro por volta de 1970, quando a rodovia estava sendo construída.
"Parte de minha origem está na floresta e outra parte está na água", disse Feitosa. "Eu recebi ofertas para ir para toda parte, mas sempre insisti em viver e trabalhar aqui."
A mãe de Feitosa já foi freira e posteriormente trabalhou em uma clínica médica daqui voltada aos pobres. Foi dela, ele acredita, que herdou sua vocação para o serviço social.
"Minha mãe sempre disse que você não deve se preocupar apenas consigo mesmo, mas que precisa se preocupar com a sociedade", ele disse. "Minha mãe sempre foi ligada aos movimentos comunitários e da Igreja, de forma que acho que tal gene veio dela."
Ela também transmitiu para ele, o mais velho de três filhos, sua fé religiosa. Apesar de nunca ter pensado em se tornar um padre "porque não queria passar seis anos em um seminário", Feitosa se descreve como dedicado à idéia de viver "uma vida cristã, segundo os princípios cristãos, como um cidadão cristão" e à própria Igreja.
"Para mim, minha fé é algo essencial", ele explicou. "As pessoas dizem que sou um verdadeiro freqüentador de igreja. Eu fui coroinha na minha paróquia por muito tempo, e costumava prestar atenção nas palavras dos padres que celebravam a missa. Mas eu realmente entendia aquela frase que vem antes da comunhão, aquela sobre 'eis o mistério da fé'."
Mas certo dia, enquanto visitava uma aldeia indígena, em um episódio que Feitosa descreveu como um momento de virada em sua vida, ele foi convidado por seus anfitriões a caçar na floresta. Os caçadores mataram um cervo, o esfolaram e levaram a carne à aldeia.
"Eu estava super feliz, achando que meu grupo receberia a melhor parte", ele lembrou. "Mas então uma velha veio e cortou as coxas, então veio outra velha, e outra e outra. No final, depois que todas as costelas também foram tiradas, tudo o que restou para nós, que fizemos um grande sacrifício, foi um pedacinho de carne.
"Minha primeira reação foi, como uma coisa destas podia acontecer? Eu passei o dia todo sem comer, caminhei sei lá quantos quilômetros na selva e ajudei a carregar o cervo nos ombros. Mas então entendi que o que está na mesa visa ser compartilhado, e este é o mistério da fé. De forma que acho que foi a primeira verdadeira Eucaristia que experimentei."
Feitosa divide a história de sua região nativa em dois períodos: antes da construção da Rodovia Transamazônica e depois. Ele se recorda de nadar e pescar na infância em áreas que foram desmatadas e desenvolvidas, e nota pesarosamente que atualmente é preciso viajar para longe para encontrar selva realmente intocada.
"As pessoas que vieram para cá depois da abertura da estrada viam a floresta como um obstáculo ao desenvolvimento", ele disse, acrescentando: "Ninguém pensava em biodiversidade, ninguém pensava no potencial que a floresta em si oferecia; a regra era destruir".
A situação piorou, ele argumenta, nos anos 90. Ele começou a trabalhar na Comissão Pastoral da Terra naquela época, e começou a confrontar aqueles que viam a Amazônia como fonte de lucro rápido.
"Os madeireiros primeiro exploravam as terras dos índios e depois o interior em busca de mogno", ele se recordou. "Havia momentos de verdadeira tensão, porque havia muitas invasões e eram empresas muito, muito grandes, que passam por cima de você."
Neste ano, Feitosa ganhou o Prêmio Ambiental Goldman, que é acompanhado de uma quantia em dinheiro de US$ 125 mil, grande parte dos quais ele planeja usar no trabalho com as comunidades da floresta. A menção notou que o Estado natal de Feitosa, o Pará, atualmente é "uma das regiões mais sem lei e ambientalmente ameaçadas da Amazônia".
Ainda assim, disse Feitosa, "se quiserem fazê-lo, elas vão conseguir. Não dá para impedi-los. Eu preciso confiar em Deus".
Stang também confiava em Deus e isto, no final, não foi suficiente para protegê-la. "Ela provocou a ira de muita gente ao descobrir todas aquelas irregularidades e causou estragos a muitos grandes interesses", ele reconheceu. Ele também já irritou estes mesmos interesses? "Talvez sim", ele respondeu, "mas eles terão que partir. A floresta precisa ser mantida viva para benefício de todos, não apenas de uns poucos especuladores."
"Eu vou à missa todo domingo às seis e meia da tarde", ele acrescentou dando de ombros. "Se alguém quiser me matar, eles já conheçam a rota."
(Por Larry Rohter, Tradução de George El Khouri Andolfato, The New York Times, 02/01/2007)
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/nytimes/2007/01/02/ult574u7205.jhtm