Nas últimas décadas, reservatórios hidrelétricos expulsaram milhares de
famílias de suas terras. Investir em conservação de energia e atender melhor
os atingidos são algumas das demandas de ambientalistas e movimentos
sociais.
A construção de barragens para geração de energia hidrelétrica, prática hoje
disseminada por todas as regiões do país, é uma típica situação em que
migração e alterações ambientais possuem ligação íntima no Brasil.
Principalmente a partir da década de 70, enormes quantidades de populações
rurais vêm sendo compulsoriamente deslocadas dos locais de onde vivem devido
a projetos do gênero. Obras que, ao criarem enormes lagos artificiais,
transformam radicalmente o meio ambiente na região atingida, e muitas vezes
colocam comunidades inteiras embaixo d’água. Uma revolução na vida não só
daqueles que tem suas casas e terras inundadas, mas de todas as relações
econômicas e sociais do entorno afetado.
Não há estimativas oficiais quanto ao total de pessoas atingidas por
barragens no Brasil. Mas de acordo com o Movimento dos Atingidos por
Barragens (MAB), hoje presente em 15 estados brasileiros, esse número chega
a um milhão de indivíduos, dos quais cerca de 70% nunca teria recebido
nenhum tipo de compensação, seja em forma de projetos de reassentamento ou
de indenização financeira. Para Ricardo Montagner, membro da coordenação
nacional do MAB, o número de afetados pode crescer consideravelmente em
pouco tempo, levando-se em conta novos projetos previstos pelo governo
federal. “Calculamos que cerca de 100 mil famílias devem ser atingidas nos
próximos três ou quatro anos”, revela.
Para assegurar o crescimento da economia, o Ministério de Minas e Energia
(MME) prevê a implementação de 85 novos projetos hidrelétricos no país até
2015, incluindo grandes usinas na região amazônica. A meta é questionada
pela Agenda Elétrica Sustentável 2020, estudo encomendado pela WWF-Brasil
(sigla em inglês do Fundo Mundial para a Natureza) à Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp) e lançado em setembro de 2006. Segundo o documento, em
2020 haveria uma redução de até 38% na demanda esperada de energia elétrica
caso fossem adotadas medidas de eficiência energética: isso levaria a uma
redução em sete vezes da área inundada para a construção de reservatórios.
Visando alcançar esse objetivo, as prioridades seriam a redução do
desperdício – de acordo com o estudo, por exemplo, cerca de 17% da energia
se perde na transmissão e na distribuição – e o aumento da participação de
novas fontes renováveis.
Perspectivas como essa, no entanto, estão longe de ser unanimidade. “A
eficiência energética é importante e deve ser buscada, mas acreditar que é
possível crescer sem construir novas usinas é uma utopia que levará o país
ao não-desenvolvimento”, afirmou Maurício Tomalsquim, presidente da Empresa
de Pesquisa Energética do MME (EPE-MME) durante o lançamento da Agenda.
“Estudos como esse são perigosos para o país. Nós não podemos iludir a
população brasileira.”
No mundo todo, o Banco Mundial afirma haver entre 40 e 80 milhões de pessoas
que já foram deslocadas por conta de empreendimentos hidrelétricos. “Para se
ter uma idéia, o maior movimento migratório já registrado na história da
humanidade foi de 20 milhões de pessoas, entre 1880 e 1920, feito por
imigrantes europeus que se dirigiram aos EUA”, destaca Carlos Vainer,
pesquisador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ). Para ele, o território
brasileiro ocupa uma posição bastante expressiva no cenário internacional
dos atingidos por barragens. “Isso está ligado, em grande medida, à migração
das atividades de grande impacto ambiental e alto consumo de energia para os
países periféricos”, diz. “Os mais afetados são as populações indígenas e as
comunidades tradicionais, isso é um fato mundial.”
Atualmente, cerca de um quarto da energia brasileira é consumida pela
indústria de eletrointensivos – alumínio, ferro-gusa, papel e celulose –,
num modelo de desenvolvimento questionado por Vainer. “Estamos destruindo o
nosso território para produzir energia para exportação, para atividades
concentradoras de renda e que não atendem aos interesses da maioria da
sociedade brasileira”, diz o pesquisador. A relativa baixa participação das
eletrointensivas no PIB nacional e na geração de empregos, levando-se em
conta o alto consumo de energia, são duas das principais críticas
enfrentadas pelo setor.
Energia limpa?
No Brasil, cerca de 90% da eletricidade gerada é de origem hídrica. A defesa
dessa matriz deve-se, em grande parte, ao fato de as hidrelétricas serem
comumente classificadas como uma de fonte de ‘energia limpa’. Na teoria,
isso significaria que elas não poluem a atmosfera, ao contrário, por
exemplo, das usinas termelétricas, baseadas no uso de combustíveis fósseis
como carvão e gás natural. Tal status, no entanto, não pode ser considerado
verdade absoluta.
Há algumas décadas já é sabido que a decomposição de matéria orgânica no
fundo dos reservatórios gera gases como o metano, um dos principais vilões
do aquecimento global. Em 2002, o Instituto Alberto Luiz Coimbra de
Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe) realizou um inventário
envolvendo dez das maiores hidrelétricas brasileiras, com o objetivo de
medir o nível dessas emissões.
Em relação à potencia gerada, a maioria delas realmente apresentou índices
de emissão de gases do efeito estufa bem menores do que os de termelétricas
equivalentes. Duas delas, no entanto – a Hidrelétrica de Samuel (RO) e a de
Três Marias (MG) –, saíram perdendo nessa comparação hipotética. Segundo o
estudo da Coppe, evitar projetos com baixa potência em relação à área
alagada e desmatar os reservatórios antes da inundação – algo nem sempre
feito por razões econômicas – são dois caminhos para evitar esses
resultados.
(Por André Campos, da
Repórter Brasil, 28/12/2006)