Que rio é esse que asfixia cem toneladas de peixe em dois meses? Para entender melhor o
Sinos, uma equipe de reportagem de Zero Hora decidiu navegar pelo rio desde o ponto onde
ainda está limpo até a chegada dele, moribundo, ao Jacuí. Com integrantes do Instituto
Martim Pescador, organização ambiental da região, os repórteres percorreram 105 quilômetros
em dois barcos.
A expedição, realizada na quarta-feira passada, documentou o conflito permanente entre a
natureza e a poluição causada pelos esgotos doméstico e industrial e pela erosão das
margens. O Sinos está enfermo, e sua doença é uma ameaça à maior concentração populacional
do Rio Grande do Sul.
Em muitos momentos, a jornada dos repórteres pareceu uma visita ao leito de morte de um
rio. A equipe também constatou que, apesar da agressão intensa, ainda é possível salvá-lo.
Para isso, é preciso agir rápido: o tempo encurta a cada tonelada de esgoto despejada nas
águas. E são muitas.
O Sinos nasce límpido em Caraá, na Serra do Mar, de onde desce por 195 quilômetros até a
foz no Rio Jacuí, na Praia de Paquetá, em Canoas. A equipe navegou pela metade final, de
Taquara até a cidade vizinha a Porto Alegre. É o trecho onde o Sinos alterna pontos com
feições de esgoto a céu aberto e outros com aparência de lixão.
Para vencer essa centena de quilômetros, o usual é gastar oito horas. Graças à chuva da
véspera, que encheu os afluentes e aumentou o volume da água, a expedição de ZH pôde ser
feita em cinco horas.
No trajeto, a equipe passou por 72 caíques de pescadores, 12 dragas (duas estavam
extraindo areia), oito barcos transportando areia e 15 bombas sugando água para lavouras
de arroz.
A população ribeirinha reclama que a maior parte do lixo é constituída de garrafas
plásticas e artigos domésticos jogados nos arroios que cruzam as cidades e acabam boiando
no Sinos. É verdade. Tanto que elas estão provocando o nascimento de um novo ofício: o de
catador de lixo em rio. ZH cruzou por um deles: Itamar Storck, 35 anos, ganhava a vida
como pescador, mas os cardumes escassearam e deram lugar a outro tipo de amontoado: o de
garrafas plásticas.
A podridão se espalha pela Bacia do Guaíba
O trecho mais poluído é o metropolitano, entre a ponte da BR-116 Norte, em São Leopoldo, e
a comunidade rural de Pesqueiro, em Sapucaia do Sul. Ali o lixo flutuante se junta ao
fedor da putrefação dos peixes vitimados pela falta de oxigênio. Às centenas de garças
brancas que voam em busca dos animais mortos juntam-se os urubus atraídos pelo cheiro da
carniça.
Pelo menos 15 toneladas de peixe sucumbiram naquela área no fim de semana passado. Foi a
segunda grande mortandade em dois meses. A primeira, de cerca 85 toneladas, alarmou a
sociedade. O governo chegou a decretar situação de emergência na bacia do Sinos e do
Gravataí, depois de constatar índice zero de oxigênio em alguns pontos. Quem percorre o
rio compreende que esses desastres ambientais são previsíveis, não acidentais.
Próximo à foz parece que o Sinos reviveu. Mas é um engano. Trata-se apenas do aumento do
volume de água causado pela entrada do Rio Jacuí. A poluição não é notada. Mas está ali e
se alastra para os outros mananciais da Bacia do Guaíba.
Nas próximas duas páginas, participe de uma expedição que retrata o cotidiano de um rio
asfixiado pela poluição e maltratado pelo descaso.
A tripulação
No barco Vitória
Repórter Carlos Wagner
Marinheiro João Marino Monaco - Tem 73 anos, transportou cargas no rio entre 1945 e 1960
Engenheiro Plínio Cerutti Júnior, o piloto da embarcação - Com 46 anos, dedica-se aos
esportes náuticos e à preservação do Sinos
No Lisandra
Repórter fotográfico Júlio Cordeiro
Ambientalista Henrique Prieto - Tem 68 anos, desceu o rio a remo nos anos 60 e é fundador
do Martim Pescador
Inspetor de segurança João Batista Chaves, o piloto - Com 50 anos, é conhecedor das fontes
de poluição do Sinos e da história dos arroios afluentes
No ponto de partida, existe vida
Pouco depois do raiar da quarta-feira, os barcos Vitória e Lisandra são lançados nas
límpidas águas do Passo do Mundo Novo -, em Taquara. Ali começa a expedição da equipe de
Zero Hora acompanhada de quatro integrantes do Instituto Martim Pescador, organização
ambiental com sede em São Leopoldo.
O plano era navegar em direção à Praia de Paquetá, em Canoas, na Região Metropolitana. Até
ali, onde o Sinos deságua no Jacuí, seriam 105 quilômetros. Para examinar melhor o trecho
inicial, a equipe navegou no sentido contrário, por 10 minutos, em direção à nascente,
localizada a 90 quilômetros, na Serra do Mar.
O primeiro cenário da expedição é de margens sólidas, mata farta e embelezada por ingás e
salsos. Os grossos troncos das árvores atestam que elas estão ali há muitos anos. Os
cantos de diferentes espécies se misturam. Um adolescente de 15 anos, de pele clara e
bochechas avermelhadas, pesca a bordo de um caíque. Depois de vangloriar-se de sua
habilidade, o garoto demonstra medo ao ser descoberto usando uma rede estendida de um lado
ao outro do rio, prática proibida por ser época de piracema, quando os peixes sobem o
Sinos para reproduzir-se.
- Vocês são da fiscalização? - pergunta o garoto ao grupo.
- Não. Mas você está agindo errado - alerta o ambientalista Prieto.
Os barcos dão meia volta e descem rumo à foz. Nos minutos seguintes, a primeira
transformação do rio. O Paranhana vomita no Sinos uma água barrenta e carregada de
garrafas de plásticos, pedaços de móveis e outros tipos de lixo. Na véspera, havia chovido
muito na região desse rio, inchado pelos afluentes que cortam cidades industriais enquanto
desce a Serra a caminho do Sinos.
Na próxima uma hora e meia de navegação, entulhos ofendem a natureza exuberante que os
rodeia. Parte deles fica presa aos galhos das margens. Sacolas de supermercado se enroscam
nas flores dos ingás. Apesar de sujo, o rio está vivo. No meio da sujeira, peixes pequenos
nadam com vigor contra a correnteza, sinal da abundância de oxigênio na água. Essa vitalidade consagrou a Volta da Eva, localidade de Campo Bom cuja fama de ser
generosa com pescadores vem dos tempos da colonização alemã.
Para respirar, o rio recebe ajuda mecânica
Depois de navegar pela Volta da Eva -, a expedição encontra Itamar Storck, 35 anos, catador
de lixo das águas. Descendente de uma família de pescadores de dourado, espécie em
extinção no Sinos, Storck encosta o seu caíque no Vitória, um dos barcos da expedição, e
começa a falar sobre o seu ofício. Ele se deu conta de que o melhor lugar para pegar
plástico e outros materiais recicláveis é o rio, principalmente depois de chuva forte. E
acrescenta:
- Sou pescador. Mas, quando não se pode pescar por ser a piracema, como é o caso de agora,
eu e a turma juntamos o lixo do rio. No final, o ganho é quase o mesma coisa.
Nas proximidades do Arroio Pampa, em Novo Hamburgo, a mata ciliar foi substituída por
eucaliptos, árvore exótica que causa sérios danos à barranca. Deixa à mostra enormes
raízes. Quando o terreno desmorona, a árvore cai na água. A erosão das margens também
ocorre devido às dragas - conhecidas pelos ribeirinhos como chupões, por remover areia do
fundo do rio.
No trecho também se notam "as línguas pretas", esgotos domésticos. O Arroio Preto, a
espinha de um conjunto de afluentes onde são despejados esgotos industriais e domésticos,
joga no Sinos uma água fedorenta e azulada. Adiante, na margem direita, o menino Douglas
Jerônimo dos Santos banha o cavalo Maroto. Diz não temer a poluição porque o rio está
cheio, e a correnteza carrega a sujeira.
Mais poucos minutos de navegação, chega-se à estação de captação de água destinada a
abastecer São Leopoldo. Um equipamento lança um jato para cima. Chamado de aerador,
facilita a circulação do oxigênio na água. Assim, ela se mantém viva, em vez de se
converter em um cemitério de peixes.
Um território dos urubus
Em marcha lenta, os barcos da expedição cruzam por debaixo do esqueleto de uma ponte
ferroviária, que anuncia o início do trecho mais poluído do rio, entre a ponte da BR-116
Norte, em São Leopoldo, e o Pesqueiro, comunidade rural em Sapucaia do Sul.
A marca registrada desse trecho é o cheiro forte provocado pela putrefação de peixes.
Quanto mais os barcos avançam em direção à foz - onde o Sinos deságua no Jacuí e, dali,
chega ao Guaíba -, mais aparecem nas margens o que os ribeirinhos chamam de "matadores do
rio", centenas de boca de esgoto industriais. A sentença dada pelos moradores oculta o
principal causador da poluição.
A maior parte dos peixes mortos está em saídas de esgotos domésticos, como o Canal João
Corrêa, que corta São Leopoldo, e despeja uma água azulada e fedorenta no Sinos.
- Para quem olha de longe pode parecer que há muita vida no rio porque está cheio de
garças voado. Mas é um engano. Elas estão aqui por causa dos peixes mortos - observa
Cerutti, o piloto do Vitória.
Também urubus são atraídos pelo odor de carniça. É estranho ver urubus e as garças
disputando comida. O lugar foi transformado em um matadouro.
Na foz do Arroio Portão -, local emblemático onde, em outubro, avolumaram-se 85 toneladas
de peixes mortos e, no fim de semana passado, outras 15 toneladas, a expedição cruza por
um barco de policiais do Batalhão Ambiental da Brigada Militar, vindo no sentido contrário.
O oficial no comando acena e segue o seu caminho em busca de informações para dimensionar
o tamanho da mortandade mais recente.
O Lisandra, pilotado por Chaves, tenta navegar no Arroio Portão, mas não consegue porque o
leito está raso. O movimento é suficiente para fazer a água azulada exalar um fedor
nauseante. O cheiro é dos menores problemas do arroio, envenenado por alta concentração de
cromo.
Da foz do Portão, os moradores ribeirinhos costumam se manter o mais longe possível,
devido ao fedor. A expedição segue viagem. Navega mais seis quilômetros até o Pesqueiro -,
onde uma bóia de contenção estendida de um lado ao outro do rio impede que os peixes
mortos se espalhem.
Adiante, o Sinos ganha fôlego. Fica largo, fundo e sem poluição aparente, graças à
contribuição das águas do Jacuí. Parece que o problema da poluição acabou. É ilusão. O
lixo é jogado das margens pelo deslocamento da água provocado pelo imenso trânsito de
barcos carregando areia.
A próxima parada, a uma hora de navegação, é a última, a Praia de Paquetá -, em Canoas.
Ali o Sinos completa o seu ciclo, como se fosse uma artéria que injetasse sangue
contaminado na Bacia do Guaíba.
(Por Carlos Wagner,
Zero Hora, 24 e 25/12/2006)