Por Bernardo Kucinski*
Na semana passada, um juiz federal do Paraná acatou uma ação proposta
por três ONGs, e proibiu o licenciamento de uma espécie transgênica de
milho se não fosse convocada uma audiência pública (1). O licenciamento
foi pedido pela Bayer à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) há oito anos e contava com dez pareceres técnicos favoráveis e
apenas um contrário (2). A comissão já estava reunida em Brasília,
pronta para deliberar, quando chegou a notificação (3).
O juiz considerou que uma aprovação poderia provocar riscos
irreversíveis e, assim, concedeu uma liminar interrompendo o processo.
Ambientalistas comemoraram. Com mais essa vitória, já se completa um ano
sem o licenciamento de variedades comerciais de produtos geneticamente
modificados pela CTNBio (4).
Mesmo em minoria, os ambientalistas da CTNBio conseguem bloquear
praticamente todos os pedidos de licenciamento de produtos comerciais,
que exigem o quorum de dois terços (5). Conseguiram impor pelo poder de
veto o banimento dos transgênicos no Brasil, algo que nunca foi decidido
como política pública em lugar nenhum.
Em setembro, cientistas reunidos em Florianópolis enviaram um pedido ao
governo para modificar o quorum mínimo de aprovação. Esta semana,
conseguiram, não sem uma forte ajuda dos lobbies das multinacionais: por
ampla maioria, de 247 votos contra 103, os deputados aprovaram o
licenciamento de espécies comerciais pela CTNbio por maioria simples ?
metade dos votos mais um (ou seja, 14 votos).
Se passar pelo Senado e for sancionada pelo presidente, essa mudança
pode quebrar o impasse. Muitos cientistas membros efetivos da CTNBio já
nem iam mais às reuniões. Esse encontro que analisou o pedido do milho
foi a primeira em que compareceram 28 membros efetivos, o que daria para
aprovar, não fosse a liminar. Frustrados, os membros saíram brigando aos
berros, até no aeroporto de Brasília (6).
Duas semanas antes, a CTNBio havia rejeitado um pedido da
Schering-Plough de produção de uma vacina contra o mal de Aujeszky, que
afeta suínos e cavalos. Seria fabricada com a mesma tecnologia, chamada
recombinante, já usada para produzir vários tipos de vacinas para
crianças e insulina para diabéticos, a partir de bactérias geneticamente
modificadas. Eram precisos 18 votos para aprovar o pedido. Mas a votação
deu 17 a favor e 4 contra. Resultado: vacina proibida. Os ambientalistas
justificaram seu veto com uma tecnicalidade: a empresa não tinha o
certificado de qualidade ambiental, que é obrigatório (7).
Além do bloqueio às decisões na CTNBio, todo o processo de licenciamento
de pesquisas está se burocratizando, infernizando a vida dos cientistas
e obstruindo a atividade de pesquisa, como já ocorre em outras
atividades no Brasil. Hoje, para ampliar um pouco um laboratório que se
dedica a genética, é preciso abrir um processo na CTNbio e esperar pela
autorização (8). Para colher plantinhas ou insetos para pesquisa, é
preciso licença do Ibama. A licença não pode ser repassada aos
auxiliares do pesquisador. Algumas universidades já têm ?despachantes?
de pesquisa científica, para lidar com essa burocracia.
A SBPC pediu ao Ibama que relaxasse algumas regras, mas o Ibama foi
irredutível. Recentemente o órgão ambiental cassou a licença de um
pesquisador do Instituto Butantã, Carlos Jared, que trabalha nisso há 34
anos, porque ele tentou driblar a burocracia mandando uns vermes para um
parceiro de pesquisa na Alemanha, sem autorização (9).
O presidente da CTNBio, Walter Colli, acusa os ambientalistas de
obscurantismo e de criar falsas dicotomias entre transgênicos e produtos
naturais, entre pequena agricultura a agrobusiness. José Goldemberg,
cientista e também ambientalista, diz que apesar das boas intenções,
muitas vezes os ambientalistas carecem de preparo técnico e de ?uma
compreensão real do problema do desenvolvimento que o mundo atravessa
desde o início da era industrial? (10). Diz que ?os ambientalistas
extremados vivem longe da realidade, não admitindo, por exemplo que o
combate à pobreza exige energia. Que tem que ser gerada de alguma
forma?. Um dos maiores geneticistas, Francisco Salzano, acusa alguns
grupos de ?antitransgênicos? não só de ignorarem a ciência, mas também
de hostilizá-la. Equipara-os aos criacionistas, que se não aceitam a
teoria da evolução de Darwin (11).
Walter Colli acusa algumas ONGs de difundirem um ?terror infundado sobre
os transgênicos? (12). Acha que vai ser preciso mesmo audiências
públicas, não para esclarecer tecnicamente o assunto, mas para tentar
mudar a percepção pública sobre os transgênicos. Ou seja, os cientistas
já se sentem reféns dos ambientalistas. Gabriela Vuolo, do Greenpeace,
lamentou a votação da Câmara que reduz o quorum, dizendo que ?a maioria
dos eleitores não querem transgênicos no seu prato? (13). Além da clara
demonização dos transgênicos implícita nessa fala, como é que ela sabe
que a maioria é contra?
São três as questões fundamentais envolvidas nessa briga: a primeira é
sobre o estatuto da ciência no nosso país. Nas sociedades modernas, a
ciência há muito tempo é entendida como uma das suas principais e mais
permanentes forças produtivas, mas nós ainda tratamos a ciência como um
luxo e o cientista, como um aloprado, que busca o sucesso pessoal e se
vende às multinacionais em troca de financiamento de suas pesquisas. As
próprias multinacionais, que desde os anos 50 se constituíram nos
vetores da aplicação técnica dos avanços da ciência, são por nós
demonizadas (14).
O rebaixamento do estatuto da ciência é ainda mais grave neste momento,
porque atravessamos uma nova revolução cientifica, talvez da mesma
magnitude da revolução industrial do século XVIII, comandada justamente
pela engenharia genética e microfísica. Não são meros pedidos de
licenciamento que estamos obstruindo: é todo um novo paradigma, um
processo de descobertas e invenções que se alimentam umas nas outras (15).
A segunda grande questão é a do estatuto do saber cientifico. A
importância do método cientifico de aquisição de conhecimento, baseado
na experimentação e na dúvida, vai muito além dos aportes materiais
trazidos das descobertas da ciência. Seu triunfo sobre o saber dogmático
e obscurantista das religiões, em especial da Igreja Católica, foi
decisivo ao avanço da humanidade e do ser humano.
É verdade que depois de Hiroshima e das experimentações dos médicos
nazistas com seres humanos surgiu um novo campo de especulação
filosófica, a bioética, que condiciona a razão científica baseada
exclusivamente na busca da verdade a novos pressupostos morais. É
verdade também que os avanços da atual revolução tecnológica são tão
impressionantes especialmente no campo da genética, que já se propôs uma
moratória ética das pesquisas até que se desenvolva uma nova consciência
moral sobre as implicações das novas tecnologias. Nesse novo estatuto da
ciência, o homem deixa de ser o dominador da natureza para ser o ser seu
parceiro de destino. Sobreviveremos, apenas enquanto nosso ecossistema
for preservado.
Mas essa mudança no estatuto da ciência não retira o saber científico de
sua posição privilegiada no conjunto dos saberes. A razão deixa de ser
estritamente científica e passa a ser dialogada, mas sempre fundada no
conhecimento científico. Além disso, a bioética em oposição à ética de
Hipócrates, nasceu com vocação libertária. Os ambientalistas não usam
argumentos científicos e adotam postura totalmente restritiva.Valem-se
de um discurso demonizador dos transgênicos, quando a transgênia nada
mais é do que conseguir mais depressa uma mutação que as técnicas de
hibridação já vem fazendo há muitas décadas, sem nenhum dano à natureza,
mas muito mais devagar. A transgênia, por alterar apenas um ou alguns
dos códigos genéticos desejados, é, inclusive, menos suscetível de
atingir outras espécies do que a hibridação clássica (16). Mesmo a
cautelosa comissão de biossegurança da Grã Bretanha diz em seu último
relatório que uma revisão de todos os estudos não conseguiu demonstrar
que as variedades geneticamente modificadas ou mesmo os alimentos
produzidos a partir delas trazem riscos significativos à saúde humana (17).
A transformação das deliberações da CTNBio em quedas de braço entre
ambientalistas e cientistas viola os princípios fundamentais do método
científico e da razão dialogada. Para o debate político e estratégico
sobre os transgênicos existe o Fórum de Ministros. O Brasil deveria se
especializar em não transgênicos? Deveria denunciar os acordos que
permitem às multinacionais patentear sementes? Tudo isso são decisões
políticas de outro nível. À CTNBio compete licenciar produtos e pedidos
de pesquisas segundo pareceres técnicos, debatidos conforme a razão
dialogada.
A terceira e mais importante questão é a democrática: é correto uma ONG
arregimentar alguns moradores para quebrar uma audiência pública,
impedindo assim que possa ser lavrada a ata, como ocorreu em três das
sete audiências sobre o projeto do São Francisco, paralisando-o por
meses? (18) Ou conseguir liminares a partir de questiúnculas técnicas,
sustando todo um projeto que já obteve licenciamento ambiental e foi
proposto ou endossado por um governo democraticamente eleito? É
democrático ignorar as agências reguladoras que estudaram os projetos,
fizeram as exigências que tinham que fazer e só depois os aprovaram?
Quem paga por todos esses atrasos, pergunta Leila Oda, da Fiocruz (19)?
Quem paga por todas essas obstruções? Quem paga pelas cinco liminares
contra o Projeto do S. Francisco, que só foram derrubadas pelo Supremo
dias atrás? Quem paga pela redução da razão dialogada baseada no
conhecimento cientifico a uma razão sectária que nega o conhecimento
científico, pergunto eu?
Notas
(1) As três são: Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (IDEC),
Terra de Direitos . Assessoria Projetos em Agricultura Alternativa.
(2) O juiz chama-se Nicolau Konkel Júnior. Trata-se de uma variedade
LIberty Link resistente ao herbicida glufosinato de amônia, conf Folha
de S. Paulo, 15/12/06.
(3) As três são: Instituto Nacional de Defesa do Consumidor (IDEC),
Terra de Direitos . Assessoria Projetos em Agricultura Alternativa.
(4) Conf. os especialistas Marcos Sawaya Jank e Rodrigo C. ª Lima, em O
Estado de S. Paulo, 20/12/06. Em oito anos de funcionamento, a antiga
CTNbio, que tinha outra composição, aprovou apenas duas espécies
geneticamente modificadas: soja e algodão. Mesmo assim, porque não era
necessária maioria de dois terços, como agora.
(5) Este ano a CTNBio aprovou 420 processos de pesquisas com
transgênicos, dos quais 125 envolvendo pesquisas de campo. Mas nenhum
processo de exploração comercial.Conf. Agencia do MCT.
(6) Segundo relato da agência do MCT de 10/10/06.
(7) Segundo informação verbal ao autor, de Sérgio Leitão, do Greenpeace.
(8) Conf. Leila Oda, pesquisadora da Fiocruz, In: Folha do Meio
Ambiente, out/nov 2006.i
(9) Conf. O Estado de S. Paulo, 22/12/06.
(10) Em O Estado de S.Paulo, 19/12/06.
(11) Conf. entrevista à revista da FAPESP, Pesquisa N. 6, Outubro 2006.
(12) Agência Brasil, 15/12/06.
(13) Estado de S. Paulo, 21/12/061.
(14) Inclusive, confesso, parcialmente por mim, no meu livrinho ?O que
são as multinacionais?, Brasiliense, 1996. 14ª edição.
(15) Paradigma no sentido concebido por Thomas Kuhn, de um rompimento
dos padrões convencionais de pesquisa a abertura de toda uma nova frente
de trabalho científico a partir de uma grande descoberta fundamental, no
caso a dos códigos genéticos e a possibilidade de sua manipulação.
(16) Conf. Francisco Salzano,. Em Pesquisa, N. 128, de outubro de 2006.
(17) Relatório do Nuffield Council of on Bioethics: The use of
genetically modified crops in developing countries, 2004.
(18) Se não se consegue fechar a ata. A audiência é dada como não
realizada e o processos de licenciamento pára.
(19) Conf. Folha do Meio Ambiente, out/nov 2006.
* Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é editor-associado da Carta Maior
(
Agência Carta Maior, 22/12/2006)