Gabriela Vuolo*
Uma pesquisa realizada em 2004 pelo Instituto Iser confirmou que 81,9% dos brasileiros acreditam que os transgênicos não deveriam ser liberados no meio ambiente, e que 70,6% da população não se sente motivada a comprar produtos feitos com ingredientes geneticamente modificados. Números semelhantes já tinham surgido em pesquisas anteriores realizadas pelo Ibope, mas, aparentemente, nossos deputados não conhecem essa realidade.
O que se viu na Câmara dos Deputados na semana passada é uma prova disso. Na verdade, os discursos feitos em plenária durante a votação da Medida Provisória (MP) 327 deixam uma impressão ainda mais sinistra. A de que ou os nossos deputados estão muitíssimo mal informados, ou há uma má vontade e intencional distorção da verdade para defender interesses de uma minoria.
A MP 327, assinada no final de outubro pelo Presidente Lula, diminui a distância mínima entre as áreas de plantio de transgênicos e as Unidades de Conservação (UCs). Olhando para trás, é fácil perceber que a medida provisória é uma verdadeira coleção de enganos. A diminuição da distância já era um problema por si só, pois traz o risco do maior uso de agrotóxicos, da contaminação genética e dos impactos dos agrotóxicos sobre a água e o solo muito mais perto de áreas de alto valor de conservação. Além disso, a medida abriu um precedente que fragiliza todas as áreas protegidas, já que agora outras atividades impactantes passam a ter um álibi para serem autorizadas cada vez mais perto das UCs.
Mas, mais do que isso, a MP deu a chance que os ruralistas precisavam para reabrir a discussão a respeito das regras brasileiras de biossegurança.
Quando a medida provisória foi encaminhada à Câmara dos Deputados, a bancada ruralista não perdeu tempo e aproveitou para pendurar na votação o seu "pacote de maldades". O texto original da MP já era ruim, mas o deputado Paulo Pimenta, relator do projeto de lei de conversão (e também o petista mais ruralista que a Câmara dos Deputados já viu), conseguiu deixá-lo ainda pior ao acatar duas das 19 emendas propostas.
Uma das emendas – que autoriza o uso do algodão transgênico plantado ilegalmente – é uma simples repetição do que aconteceu com a soja da Monsanto em 2003. Primeiro, planta-se a variedade transgênica ilegalmente. Depois, sem qualquer avaliação de impacto sobre a saúde humana ou o meio ambiente, legaliza-se o plantio ilegal. E assim, a política do fato consumado continua sendo usada pelas multinacionais como um atalho para o lucro e a cobrança de royalties.
A outra emenda – tão grave quanto – modifica a Lei de Biossegurança, aprovada no início de 2005 depois de meses de discussão. Ao diminuir o número de votos necessários na CTNBio para liberações comerciais de 18 para 14, os deputados mostraram seu completo descaso com as questões ambientais e a opinião da maioria dos seus eleitores.
Mostraram que estão a serviço do lobby transgênico, e não a serviço da maioria dos brasileiros. Usaram uma fala do presidente Lula para justificar o voto favorável à diminuição do quorum. Ao acusar ambientalistas, índios e o Ministério Público de travar o desenvolvimento do país, Lula deixou claro que o agronegócio é prioridade nacional – mesmo que isso signifique passar por cima das questões ambientais. E deu, assim, uma boa justificativa para a bancada ruralista esquecer que a biossegurança deve vir em primeiro lugar.
Também teve parlamentar que justificou a diminuição do quorum alegando uma falsa paralisia na CTNBio e um infundado prejuízo para a pesquisa e o desenvolvimento científico brasileiros. No entanto, esses parlamentares se esqueceram – ou preferiram não divulgar – que só em 2006 a Comissão deliberou sobre 430 processos e concedeu autorização para cerca de 30 campos experimentais com transgênicos por mês. Assim, o quorum de 2/3 de forma alguma representa prejuízo para a pesquisa em biotecnologia no Brasil, já que só se aplica a liberações comerciais.
A exemplo do Congresso, matérias de maior repercussão sobre a sociedade dependem de quorum qualificado para serem aprovadas. Portanto, a exigência de quorum mínimo de 2/3 de votos favoráveis para liberações comerciais apenas assegura uma participação mais expressiva dos representantes, além de representar maior legitimidade, consistência e segurança das decisões tomadas.
Outra distorção descabida é dizer que os ambientalistas estão transformando os transgênicos na verdadeira face do diabo. Em primeiro lugar, é preciso acabar com o mito de que ambientalistas não podem ser cientistas, e vice-versa. Essas duas características não são excludentes, e separar os membros da CTNBio em duas classes distintas – ambientalistas ou cientistas – é um preconceito com aqueles que, mesmo com seu título de doutor, tem o cuidado de admitir ter dúvidas e de agir com precaução.
Em segundo lugar, é preciso esclarecer que a maior parte dos ambientalistas não se opõe à transgenia per se. O problema é justamente a liberação indiscriminada dos transgênicos no meio ambiente, sem os devidos cuidados e avaliações de risco (como foi feito com o algodão e a soja da Monsanto).
Se os ambientalistas quisessem mesmo demonizar os transgênicos, não teriam porque propor e defender a realização de audiências públicas. Seria muito mais fácil simplesmente dizer que são contra e ponto. Mas não é esse o caso. A discussão é fundamental – mas ela precisa ser feita com todos os setores da sociedade que seriam diretamente atingidos por uma eventual liberação. A CTNBio não pode se fechar a um diálogo com a sociedade e muito menos se transformar em um mero carimbador de processos de liberação de transgênicos.
Porém, como nossos ilustres deputados não atentaram para nenhuma dessas questões – e os que atentaram foram vencidos pela bancada ruralista e pelo lobby da biotecnologia –, caberá agora ao Senado e ao presidente Lula resguardar a biossegurança brasileira. Essa será a prova de fogo para o governo mostrar qual é a sua verdadeira postura frente à questão dos transgênicos.
*Coordenadora da campanha de engenharia genética do Greenpeace Brasil.
(
Agência Carta Maior, 24/12/2006)