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2006-12-20
Com um presépio e uma grande árvore de Natal na estrada que leva à ponte binacional, moradores da cidade argentina de Gualeguaychú pretendem manter o bloqueio no caminho para o Uruguai até que desapareça a fábrica de celulose que está sendo construída do outro lado do rio limítrofe. “Não nos agrada, mas é nossa única saída”, disse um dos ativistas da Assembléia Ambiental Cidadã de Gualeguaychú ao interromper o trânsito de uma família argentina que regressava do Uruguai.

“Não há outra forma de impor nossa vontade. Se deixarmos livre a estrada para o Uruguai o conflito acaba”, disse outro membro dessa assembléia no acampamento improvisado em Arroyo Verde. “O bloqueio será levantado quando a planta partir”, afirmou, numa referência à fábrica de celulose que é construída pela firma finlandesa Botnia. Moradores desta cidade, a leste da província de Entre Ríos e cerca de 270 quilômetros ao norte de Buenos Aires, há 25 dias mantêm interrompido o tráfego de veículos no quilômetro 28 da estrada 136, a única via de acesso à ponte que cruza o Rio Uruguai até as proximidades da cidade uruguaia de Fray Bentos.

Só é permitida a passagem de automóveis e caminhões procedentes de estabelecimentos rurais próximos ao bloqueio. Os manifestantes também deixam cruzar a ponte muitos uruguaios que costumam fazer compras do lado argentino, mas somente a pé. Estes deixam seus carros junto ao bloqueio, cruzam a pé e tomam um táxi. Mais tarde voltarão com sacolas carregadas e recipientes cheios de combustível, em geral mais baratos do que em seu país devido à diferença de câmbio. “Pode ver que não somos tão malvados como dizem. Passam o tempo todo caminhando entre nós com suas sacolas sem que ninguém lhes diga nada nem encoste em seus carros”, disse à IPS Miguel Leme, se referindo às críticas recebidas pelos manifestantes.

Leme afirma que não é verdade que existam reações xenófobas, como indicam observadores de um ou outro país, embora admita que estão descontentes com os uruguaios, uns mais do que outros. “Imagine, todos temos parentes lá”, afirma outro interlocutor da IPS apontando para o Uruguai, cuja margem do rio que dá nome ao país se observa ao longe. “Meus avós vieram da Europa para o Uruguai, minha mãe se instalou, em seguida, em Gualeguaychú, onde nascemos”, conta Hugo Franco. Em seguida, todos querem contar o caso de um primo, de um irmão ou um avô residente ou procedente do outro lado do rio.

A causa do desencontro é a construção perto de Fray Bentos, capital do departamento uruguaio de Rio Negro, de uma fábrica que produzirá um milhão de toneladas anuais de pasta de celulose, que inclui uma chaminé de 120 metros de altura e um porto. Gualeguaychú fica a pouco mais de 20 quilômetros da obra. Do lado argentino temem que a água e o ar sejam contaminados pelo processo de obtenção da celulose a partir da madeira, para o qual são necessárias grandes quantidades de água e dióxido de cloro, produto que gera dioxinas, muito tóxico, persistente e com capacidade de se acumular em organismos animais.

Soda cáustica, oxigênio ou peróxido de oxigênio e hipoclorito de sódio são outros compostos que podem intervir na obtenção da pasta para fabricar o papel, e que tampouco são inócuos. A Botnia afirma que usará a tecnologia mais avançada para reduzir os riscos de danos ambientais, mas a Argentina exige estudos independentes e insiste que não recebeu toda a informação necessária do Uruguai. O governo de Néstor Kirchner se apresentou este ano no Tribunal Internacional de Justiça, na cidade holandesa de Haia, como reclamava a Assembléia, acusando Montevidéu de violar o Estatuto do Rio Uruguai, assinado pelos dois países em 1975 e que estabelece a aprovação conjunta de qualquer investimento que se faça às margens desse rio.

O Uruguai se defendeu, afirmando que Buenos Aires havia aceito a instalação da fábrica. A sentença, no entanto, deverá demorar dois ou três anos, e a empresa promete começar a produzir no segundo semestre de 2007. “Algumas vezes creio que a fábrica será inaugurada e nós continuaremos aqui”, confessa um morador cético. Ao começar a sessão da Assembléia Ambiental na estrada, na sexta-feira, já era noite e havia pouco mais de uma centena de pessoas. “Algumas vezes somos milhares, mas hoje, somos poucos, já que é difícil para as pessoas chegarem”, disse à IPS uma moradora sentada em sua cadeira de praia.

A primeira proposta é organizar uma colônia de verão em Arroyo Verde para entreter os filhos dos moradores que participarem do bloqueio em janeiro e fevereiro. Algumas mulheres não consideram a idéia boa por causa do forte sol de verão e pela falta de árvores, e os homens acreditam que não será possível financiar o transporte. Outra sugestão é para autorizar o bispo de Gualeguaychú, Jorge Lozano a atravessar a estrada. Esta foi aprovada. Também há um pedido de material para uma biblioteca no bloqueio. Outra sugestão fala em organizar uma ceia de natal no local, e também são analisados pedidos de autorização de trânsito de pessoas com problemas de saúde, que quase sempre chegam do lado uruguaio.

Somente depois disso surgem idéias sobre a medida de força. Andrés Rivas sugere que o bloqueio seja uma moeda de troca para que se desmantele as fábrica de celulose. Todos votam e aplaudem. Jorge Fritzler propõe instalar uma sirene para ser acionada todas as noites em frente ao rio e atrapalhar a fábrica. Ninguém fala da gestão da Espanha para tentar uma solução ao conflito, nem dos problemas que o bloqueio da estrada provoca, principalmente na temporada de verão, que está começando, quando dezenas de milhares de argentinos viajam para o Uruguai de férias, muitos usando esta e as duas únicas pontes binacionais existentes.

Tampouco a ameaça do Uruguai de não participar em janeiro da cúpula do Mercosul, que os dois países integram junto com Brasil, Paraguai e Venezuela, por se sentir prejudicado com os bloqueios, afirmando que violam acordos do bloco. Nessa mesma hora, em Brasília, a questão provocava uma dura discussão no Conselho do Mercosul. Entre os moradores de Gualeguaychú há apenas uma certeza, de seguir com o protesto até a desativação da fábrica. Quando consultado se pensaram em outros caminhos para atingir esse objetivo, Martín Alazard, um dos integrantes da Assembléia, responde que sim: “bloquear também as outras duas pontes”, que ficam mais ao norte.

A Assembléia nasceu em 2002 pela preocupação com o projeto de instalaçâo em Fray Bentos de, na oportunidade, duas fábricas de celulose. A outra, da companhia espanhola Ence, finalmente será construída, possivelmente no departamento de Colonia, no Rio da Prata. Desde então foi somando apoio de ambientalistas e ativistas de outras províncias argentinas contrários ao investimento de indústrias consideradas contaminadoras. Na medida em que fracassaram as soluções políticas, sua forma de protesto se radicalizou.

Gustavo Rivollier, moderador na reunião de Arroyo Verde, explicou à IPS que a Assembléia é financiada com doações de empresas, comércios e cidadãos de Gualeguaychú, bem como com a venda de gorros e bottons onde se lê “Não às papeleras”, Mas também há outras contribuições e até subsídios estatais. No começo do ano, duas organizações não-governamentais norte-americanas, as quais Rivollier não pôde identificar, cederam alguns fundos. O mesmo fez o governo de Entre Ríos, que diz estar contra os bloqueios, com subsídio de 20 mil pesos (US$ 6.500) para transporte.

“Não foi para o bloqueio, mas para os ônibus que nos levaram a uma marcha na Praça de Maio, em Buenos Aires”, realizada na terça-feira passada, disse Rivollier, admitindo, entretanto, que a Assembléia “tem muitas contradições”. As pessoas “criticam o governo, mas aceitam o subsídio”, disse. As organizações ambientalistas nacionais apóiam suas reclamações, mas se distanciam da prática de bloquear estradas. “É óbvio que o morador afetado tem direito de dizer NÃO a uma fábrica, mas nós temos que dar uma visão mais ampla ao problema”, disse à IPS Juan Carlos Villalonga, diretor do Greepeace. "O papel é necessário, mas deve-se conseguir uma forma de produção mais limpa, em menor escala, e situá-la onde não cause tanto impacto", afirmou.

“Para nós, a ação direta implica travar a entrada de materiais para a Botnia, mas, não deter o tráfego por uma estrada”, afirmou. De todo modo, recordou que os moradores são considerados se fazem bloqueios. “Houve relatórios, reuniões e mobilizações com dezenas de milhares de pessoas, mas nada move a agulha com o bloqueio da estrada”, argumentou. A respeito do Centro de Direitos Humanos e Meio Ambiente, a organização que brindou advogados ao governo de Entre Rios e à Assembléia para defender sua posição, seu papel de desenhou uma vez que sua diretora, Romina Picolotti, foi designada secretária nacional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

O marido de Picolotti, Jorge Teillant, ficou à frente do Centro e mantém contatos com a Assembléia, mas devido a ida de sua diretora para o governo, perdeu credibilidade. “A gestão deles foi importante para tentar frear (sem sucesso) os créditos (do Banco Mundial) para a Botnia, mas agora não temos muito contato”, explicou Rivollier. O governo Kirchner não apóia diretamente a Assembléia, mas tampouco faz algo para impedir os bloqueios. Outras vozes ambientalistas, que preferem o anonimato, dizem que o presidente argentino se equivoca ao assumir como próprio o discurso dos moradores de Gualeguaychú, porque assim deixa de lado sua responsabilidade de dialogar e encontrar uma solução política para o problema.

“O governo nunca abriu o debate a outro setor que não seja o dos moradores, que é o mais radical, e por isso perde na reclamação. Além disso, usa dois pesos e duas medidas para outros investimentos contaminantes que chegam à Argentina”, disse uma fonte ambientalista. O certo é que no bloqueio do acesso à ponte, onde se concentram os moradores mais decididos, a vontade de permanecer é sólida, enquanto a construção da fábrica não for suspensa e o governo do presidente uruguaio, Tabaré Vázquez, reitera que nada fará que seja mudada.
(Por Marcela Valente, IPS, 19/12/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=25949&edt=1

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