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2006-12-18
O Ministério Público Federal no Pará vai encaminhar à Justiça até o dia 2 de janeiro de 2007 uma ação civil pública, elaborada com a Fundação Nacional do Índio (Funai), sobre a disputa entre a empresa de mineração Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e os índios Xikrin do Cateté e do Djudjekô.

O objetivo da ação é discutir a responsabilidade da mineradora em relação aos impactos causados às comunidades indígenas e a necessidade de transição do modelo atual de dependência dos Xikrin com a empresa para um outro que não reproduza relações de desigualdades.

“A nossa questão principal é chegar a um modelo de auto-sustentação, que consiste em sanar ou minimizar os danos já causados às comunidades indígenas pela CRVD”, afirma Ubiratan Cazetta, procurador do Ministério Público Federal no Pará. Segundo ele, é preciso que a responsabilidade da Vale sobre os impactos etno-ambientais seja identificada e que a empresa arque com a correção dos rumos. “A mineradora é a base da situação atual dos índios. Ela tem uma atividade econômica altamente lucrativa que gera impactos e, por isso, tem que haver divisão de lucros”, analisa.

Essa nova etapa judicial é parte do processo que levou a Justiça do Marabá (PA), no último dia 4, a determinar que a CVRD continue repassando os recursos financeiros, que foram suspensos pela empresa, em outubro deste ano, após os Xikrin paralisarem as atividades da mineradora. A CVRD afirmou que vai recorrer da decisão. Na época, os índios ocuparam instalações, reivindicando reajuste dos repasses. A CVRD, então, valeu-se de uma cláusula contratual, que dizia que os pagamentos seriam suspensos se as atividades mineradoras fossem paralisadas por causa de manifestações indígenas.

O embate entre os indígenas e a CVRD trouxe às vistas uma discussão de ordem antropológica. Em meio à forte dependência financeira que os Xikrin tem com a Vale e aos problemas de gestão de recursos, o que pouco se menciona é que o processo de aculturação sofrido pelas comunidades nas últimas cinco décadas foi responsável pela mudança de seus hábitos culturais e econômicos.

Os índios Xikrin tiveram os primeiros contatos com a sociedade branca em meados dos anos 50. De acordo Jorge Luis Ribeiro dos Santos, advogado da Associação Bép-Noi de Defesa do Povo Xikrin do Cateté, esses contatos eram conflituosos e resultavam em guerras e mortes, o que fez com que a população fosse reduzida a menos de 100 pessoas. Apenas na década de 60, a situação foi pacificada. Hoje, as duas comunidades Xikrin somam 900 indígenas.

No final dos anos 80, quando a CVRD começou a explorar os minérios na Serra dos Carajás, área onde vivem os Xikrin, foram firmados convênios para a realização de repasses financeiros, a fim de promover a infra-estrutura, saúde e educação dessas comunidades. Com o passar dos anos, Santos afirma que houve um processo de monetarização das aldeias.

“A Vale está na origem do consumo. Ela é o eixo central entre o índio e a sociedade branca. Há um consumismo nas aldeias, que é fruto de um impacto de uma determinada política”, afirma o procurador do Ministério Público, Ubiratan Cazetta. Segundo ele, a relação dos Xikrin com o dinheiro e o contato maior com os brancos foram intensificados a partir do Projeto Grande Carajás. Aos poucos, outros vínculos com os brancos também foram estabelecidos.

O advogado dos Xikrin acredita que a Vale não apenas está na origem do consumismo, mas também no incentivo desse processo. “Na concepção dos índios, há um sentido de troca: a Vale retira o nosso minério e, então, tem que nos pagar em troca. Eles querem consumir e isso gera inflação na comunidade, porque a população cresce e a demanda é sempre maior. O consumo gera consumo. E, de uma hora para a outra, a empresa diz que não vai ter mais”, explica Santos.

No entanto, Santos lembra que o conceito de consumismo dos brancos é incorporado de uma forma peculiar pelos indígenas a partir dos seus princípios culturais. “A concepção de consumismo dos Xikrin é diferente do sentido capitalista que conhecemos. Eles absorvem mercadorias dos povos com quem se relacionam em guerra ou em paz. E essa absorção de mercadorias proporciona uma aquisição de espaço e respeitabilidade política, que é medida a partir do quanto um indivíduo pode oferecer a seus subordinados. Os Xikrin atacavam outros povos e pegavam deles o que consideravam belo. Eles têm a tradição de absorver cultural e materialmente aquilo que os outros povos têm. Eles são um povo guerreiro, conquistador de mercados e de culturas”.

O contato com a Vale também resultou em aspectos bastante negativos: “As mudanças nas comunidades é geral e não foram apenas nos hábitos culturais e alimentares. A Vale tem grande culpa nisso. O alcoolismo cresceu assustadoramente. Os índios gastam dinheiro jogando em caça-níqueis”, afirma Enmar Araújo, assistente técnico da Diretoria de Assistência da Funai. Para ele, é preciso que haja um trabalho com os índios de capacitação e orientação para gerir o dinheiro. Contudo, o técnico da Funai afirma que a falta de estrutura e recursos da instituição impede que se faça um trabalho mais aprofundado.

Ao mesmo tempo em que o consumo cresceu nas comunidades, a caça e os cultivos de roças, antigas fontes de suprimentos, ficaram relegados a segundo plano. Além dessas atividades e dos repasses, os Xikrin contam com o dinheiro da aposentadoria dos mais velhos. Santos lamenta o fato de não ter se pensado um modelo econômico de auto-sustentabilidade para as comunidades e, para ele, o fim do repasse geraria um caos, uma vez que a Vale é a fonte de onde tiram recursos para alimentar o consumo. Além disso, há custos com estradas, combustíveis, medicamentos etc. “Sem o repasse, dificultaria bastante principalmente na área de saúde. Apesar de tudo, a Vale tem dado assistência nessa área. Os Xikrin são uma das comunidades mais imunizadas do Brasil”, conta o advogados dos indígenas.

“Quando as comunidades seguem costumes tradicionais, as necessidades (de consumo) são mínimas. Antigamente, os Xikrin não consumiam arroz e feijão. Como não têm atividade produtiva, eles também não têm meios de trocas com outras comunidades e, por isso, a demanda aumenta”, afirma Cazetta. Para o procurador do MPF, o que resta é buscar saídas para remediar uma situação ruim. “As roças começaram a diminuir e, por isso, é preciso comprar. Comprar se tornou mais fácil do que cultivar ou caçar”, diz Araújo. “É preciso saber trabalhar o impacto e identificar alternativas. Esse é um trabalho que deve ser feito com a Funai, a CVRD, antropólogos e as comunidades Xikrin”, afirma Cazetta.

A Companhia Vale do Rio Doce foi procurada pela Carta Maior, por meio de sua assessoria de imprensa, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

Gestão de recursos
Uma outra discussão levantada é a forma como são geridos os recursos que a CVRD tem repassado aos índios. Um jogo de empurra-empurra de responsabilidades surge entre a empresa e a Funai, enquanto o Ministério Público afirma que ambas têm encargos e compromissos com as comunidades indígenas.

Até 2001, a verba da mineradora era depositada na conta da Funai, responsável pelo seu gerenciamento. Enmar Araújo, assistente técnico da Diretoria de Assistência da Funai, explica que, na época, os recursos eram destinados na execução de cinco sub-projetos nas áreas de saúde, educação, atividade produtiva, proteção da terra e administração de convênios.

A partir de 2001, a Vale começou a repassar os recursos diretamente para as duas associações dos Xikrin e os próprios índios começaram a gerenciar o dinheiro. “A Funai perdeu toda autonomia de gerenciamento e passou apenas orientar os índios, que não acatavam mais as nossas recomendações”, conta Araújo, que diz não saber o motivo do porquê o repasse ser feito agora para as associações indígenas.

O técnico da Funai afirma que os projetos acabaram perdendo suas diretrizes e outras demandas surgiram, como transporte, novas habitações, festas culturais etc. Ele lembra que, atualmente, a ajuda para as famílias das comunidades é feita em espécie. “Há uma verba mensal que serve de ajuda de custo às famílias”.

Nesse processo, a CVRD culpa a Funai por não cumprir o seu papel como executora de políticas indígenas. “O que nós da Vale do Rio Doce estamos aguardando é qual é a política da Funai e o que eles vão fazer. Eles têm a responsabilidade. Nós não temos nenhuma intenção de virar as costas para a causa indígena. Agora, sem política não dá”, afirmou Roger Agnelli, diretor-presidente da mineradora, em coletiva no último dia 5.

A Funai rebate e diz que é impossível assumir uma responsabilidade sem os recursos necessários. Araújo afirma que há uma carência na estrutura da Funai e que não há corpo técnico que possa acompanhar as necessidades dos Xikrin. “Os índios não estão preparados e capacitados para gerenciar os recursos. Há dívidas no comércio, houve uma perda de controle. Os recursos se destinam para o consumo e não para o investimento na comunidade”. Alguns especialistas contrariam essa visão.

“A Funai tem muita burocracia. No passado, ela já tinha recursos e não se cumpriam as propostas por uma série de motivos, como demoras em licitações. Com a Funai também não funciona. O problema não está na forma do repasse, mas sim como e em que os recursos são usados” contraria Ubiratan Cazetta, procurador do Ministério Público Fedreal no Pará. Para ele, a forma de gestão ideal desses recursos ainda deve ser encontrada a partir do atual perfil e das necessidades das comunidades Xikrin e por meio de discussões com as comunidades, Funai e a CVRD.
(Por Natalia Suzuki, Agência Carta Maior, 16/12/2006)

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