Uma das principais leis que protegem o Pantanal está para ser modificada até
dia 21 de dezembro, ou no mais tardar início de janeiro, em benefício da
indústria do álcool. O objetivo é permitir a instalação de usinas
sucroalcooleiras na Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai (BAP), cuja planície
abriga o Pantanal. Desde 1982 a consolidação dessa indústria no Mato Grosso
do Sul é proibida pela Lei Estadual n° 328, mas a Assembléia Legislativa do
estado está empenhada em votar um projeto que propõe mudanças na lei ainda
este ano.
O seu autor é o deputado Dagoberto Nogueira Filho (PDT), que foi derrotado
ano passado por 17 votos contra quatro ao tentar liberar a construção de
pelo menos 15 usinas na bacia pantaneira. A proposta, considerada
inconstitucional pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da casa,
gerou protestos na época. Entre eles, a imolação do ambientalista Francisco
Anselmo Gomes de Barros, conhecido como Francelmo, que ateou fogo ao próprio
corpo.
Mas no mês passado, em novembro, o deputado Nogueira Filho, reeleito
deputado federal, propôs nova mudança na lei. Desta vez o projeto no152/06
de sua autoria solicita a supressão do artigo 4° da Lei n° 328/82, que
proíbe a ampliação das usinas já existentes na bacia ou instalação de novas.
O projeto entrou na pauta da Assembléia dia 21 de novembro com a intenção de
ampliar a produção de duas usinas que funcionam na BAP em Mato Grosso do
Sul, mas não foi votado porque Nogueira Filho estava ausente.Mesmo sem o
autor, a CCJ concluiu que o projeto é inconstitucional. À toa. Na última
quarta-feira, 13 dos 23 deputados estaduais presentes em sessão derrubaram o
parecer da CCJ. Ainda que, quando a comissão se pronunciou em novembro, a
maioria dos deputados concordou com a inconstitucionalidade do projeto por
contrariar uma resolução com poder de lei federal do Conselho Nacional do
Meio Ambiente (Conama).
Agora, o projeto de lei de Nogueira Filho pode ir para última votação. E há
esforços políticos para que isso aconteça ainda este ano. O presidente da
Fuconams (Associação Francisco Anselmo Para a Conservação da Natureza de
MS), Jorge Gonda, declarou estar decepcionado com os parlamentares que ano
passado votaram contra as usinas e agora a favor da ampliação. Um parecer
jurídico do Ministério do Meio Ambiente considerou que a ampliação das
usinas na Bacia do Alto Paraguai equivale à construção de novas indústrias,
em termos de impactos ambientais. “Há um ano, quando o Anselmo morreu, e
depois do primeiro projeto que instalaria usinas ter sido arquivado, alguns
repórteres me perguntaram se achava que estava descartada a implantação das usinas. Eu disse que era difícil dizer porque não sabíamos como os deputados
votariam; é difícil entender esses deputados”, desabafa.
Para o presidente da ONG Ecoa, Alessandro Menezes, se o projeto não for
aprovado até dia 21 de dezembro, há grandes chances de passar em 2007. O
governo do estado passa das mãos do PT para o PMDB e 11 deputados terminam
seus mandatos. O novo governador eleito de Mato Grosso do Sul, André
Puccinelli (PMDB) declarou inicialmente apoio às usinas na bacia pantaneira,
mas depois voltou atrás e disse que prefere não opinar sem antes ter estudos
técnicos. Os ambientalistas já pensam em mobilizar a imprensa e a sociedade,
acionar o Ministério Público e articular uma campanha internacional de
boicote ao álcool produzido na BAP.
O deputado-chave para a derrubada do parecer de inconstitucionalidade da CCJ
foi Pedro Teruel (PT), que mudou de opinião e se tornou favorável às usinas.
Segundo Teruel, a única barreira para considerar inconstitucional o projeto
de lei do deputado Dagoberto seria a resolução do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama) n°001/85. Mas na sua interpretação, a resolução não
menciona textualmente a palavra “ampliação”, apenas proibiria a “instalação”
de novas usinas.
Dentre os deputados que ainda mantêm posição contrária à ampliação ou
instalação de usinas de álcool na bacia pantaneira estão: Ary Rigo (PDT),
Celina Jallad (PMDB), Onevan de Matos (PDT), Pedro Kemp (PT) e Roberto Orro
(PDT).
Motivos
Por trás da justificativa do projeto para ampliar a produção de usinas já
existentes em MS no Alto Paraguai, uma investigação do jornal Correio do
Estado, de circulação estadual, revelou que tanto a usina Santa Olinda, em
Sidrolândia, como a Sonora, no município de mesmo nome, já estão operando
acima do permitido pela legislação. “A proposta de suprimir o artigo 4º, que
proíbe a ampliação, tem o objetivo de legalizar um ato ilegal cometido há
vários anos, segundo fontes oficiais do poder público”, revelou o jornal.
Num discurso inflamado dia 13 de dezembro, o deputado Roberto Orro (PDT)
considerou a proposta de Dagoberto como gananciosa, “prometendo empregos e
na verdade criando bóias-frias”. Orro solicitou punição para as duas usinas
que descumpriram com a lei. “Estas usinas cometaram ato ilícito e precisam
ser punidas.”
A persistência do deputado Dagoberto, que recebeu apoio de usineiros em sua
última campanha, também se deve, em parte, pela demanda para o aumento da
produtividade agrícola, garantia de abastecimento de alimentos, fibras,
energia, geração de emprego e renda para a região. “Ao possibilitarmos a
ampliação da capacidade instalada das usinas já existentes na Bacia do Alto
Paraguai, no estado de Mato Grosso do Sul, estaremos dando tratamento
isonômico aos empresários de nosso estado frente aos de Mato Grosso, que não
encontram qualquer impedimento equivalente em sua legislação estadual”,
justifica Dagoberto em seu projeto de lei.
O deputado também acrescenta que a cana-de-açúcar é a única vegetação que
concede mais créditos de carbono com o Protocolo de Kyoto. “Dá quatro
créditos porque seqüestra o carbono, produz álcool, que é energia renovável,
promove o biogás com o vinhoto e com a queima do bagaço e de suas folhas
gera energia elétrica”. Nogueira Filho também defende o plantio da
cana-de-açúcar nas cabeceiras dos rios, porque isto preservaria o meio
ambiente. “Se nós tivéssemos cana, ao invés de soja e pasto, talvez o rio
Taquari não estivesse assoreado como está”, argumenta.
Como surgiu a proibição
Considerada principal entrave ao desenvolvimento do setor sucroalcooleiro na
porção da Bacia localizada no Mato Grosso do Sul, a polêmica lei n° 328 foi
resultado da mobilização popular contra a construção de uma grande usina no
município de Miranda, que produziria 1,6 bilhão de litros de álcool por dia.
Na época (fim de 1970 e início de 1980), era o governo do presidente João
Batista Figueiredo, que pretendia implantar na região da Serra da Bodoquena
a maior usina sucroalcooleira do mundo. Em 1985, o Conama estendeu a
proteção para a região da Bacia do Alto Paraguai nos estados de MT e MS, com
a Resolução n°001/85, que proíbe a emissão de licenças ambientais para tais
empreendimentos, condicionadas à realização de um Zoneamento
Ecológico-Econômico para a Bacia – que representa uma área de 210 mil km2
compartilhada com o Brasil (70%), Bolívia e Paraguai. Na planície da Bacia,
entre os três países, está a maior área úmida continental de água doce do
planeta, o Pantanal (38,21% da BAP).
O danos que resíduos de agrotóxicos usados nas lavouras, desmatamentos e
perda de biodiversidade do Cerrado podem provocar a esse frágil ecossistema,
além dos impactos sociais de possíveis acidentes com vazamento de vinhoto
(resíduo final do processo de fabricação do açúcar que tem característica
tóxica), preocupam os ambientalistas. Os principais temores são a
contaminação de áreas de recarga do Aqüífero Guarani e acidentes com vinhoto
nos rios do Pantanal. A Promotoria de Meio Ambiente do Ministério Público
Estadual, que acompanha as discussões, também observa o crescimento da
indústria sucroalcooleira na Bacia do Paraná, e preocupa-se com a
fragilidade nos instrumentos de controle. Mais urgente, segundo o promotor
de Meio Ambiente Alexandre Raslan seria definir uma política de
desenvolvimento sustentável para o Mato Grosso do Sul.
Fórum de Defesa do Pantanal
O grupo formado no início dos anos 80 para protestar contra a construção da
Usina Bodoquena, no município pantaneiro de Miranda, voltou a se rearticular
em 2003, quando o governo do estado mostrou interesse em mudar a Lei n°
328/82. Em 2005, o fórum coordenou uma campanha contra as usinas de álcool
na bacia pantaneira e prepara para 2007 uma segunda fase, fortalecida com
apoio do Instituto Socioambiental (ISA), Fundação SOS Mata Atlântica e
Conservação Internacional do Brasil (CI). A idéia é dar amplitude
internacional para a campanha.
Na opinião de um dos principais opositores às usinas sucroalcooleiras na
Bacia do Alto Paraguai, o líder da bancada do PT na Assembléia Legislativa,
deputado Pedro Kemp, “é preciso questionar esse tipo de desenvolvimento
porque usina de álcool também significa trabalho em condições sub-humanas”.
Kemp considerou o projeto de lei do deputado Dagoberto “um insulto
apresentado menos de um ano após a mobilização da sociedade contra as usinas
no Pantanal”. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da
casa, deputado Onevan de Matos, é do mesmo partido (PDT) que o colega
Dagoberto, mas declara irritado: “não se admite a expansão das usinas já
existentes na bacia! Aliás, quando foi criada a lei 328/82, foi ressalvada a
existência e permanência destas usinas, mas sem que elas pudessem ampliar
suas atividades!”.
Outro membro do mesmo partido, o deputado Ary Rigo, também é contra o
projeto de Nogueira Filho e quer colocar em pauta no início de 2007 a
discussão sobre os impactos das usinas sucroalcooleiras na Bacia do Paraná e
as carvoarias ilegais que operam no estado. “Numa reportagem que li, apenas
um grupo empresarial quer plantar 200 mil hectares de cana-de-açúcar no
município de Naviraí, isto é extremamente preocupante porque a monocultura
da cana é tão prejudicial quanto um desastre com o vinhoto”, declara Rigo.
Um projeto de lei de sua autoria que tramita na assembléia tira créditos
fiscais de usinas sucroalcooleiras que se instalarem num raio de menos de 40
quilômetros de distância de outro empreendimento de mesma atividade. Rigo
também propõe limitar em 10% a área agricultável de cana-de-açúcar em MS e
realizar as queimadas do bagaço da cana 20 quilômetros afastada de cidades e
povoados.
As usinas na Bacia do Paraná
Com o crescimento da demanda pelo álcool no mundo e incentivos fiscais em
Mato Grosso do Sul através do programa MS Empreendedor, investir neste setor
ou arrendar pasto ou lavouras para plantio de cana-de-açúcar tornou-se
atrativo para muitos empresários e proprietários de terras. Enquanto é
proibida a instalação ou ampliação de usinas na Bacia do Alto Paraguai, na
outra bacia hidrográfica do estado, a do rio Paraná, 11 indústrias já
funcionam em 10 municípios, duas delas foram inauguradas em 2006. Segundo a
Secretaria de Estado de Produção e Turismo (Seprotur), as usinas plantam
mais de 146 mil hectares de cana-de-açúcar no estado, geram 16 mil empregos
diretos e 64 mil indiretos, além de terem investido mais de meio bilhão de
reais.
Dos 38 pedidos para obtenção de incentivos fiscais feitos ao Conselho de
Desenvolvimento Industrial do Estado (CDI), ligado à Seprotur, 16 já foram
aprovados. Se todas as 38 usinas forem construídas, a Secretaria de Produção
estima que a área de plantio de cana-de-açúcar passe de 146 mil para mais de
920 mil hectares. De opinião diferente à do deputado Dagoberto Nogueira
Filho (que já ocupou a gestão da Seprotur), o secretário de Produção e
Turismo, João Cavalléro, é contrário a instalação das usinas e de plantações
de cana-de-açúcar na bacia pantaneira. “Essa região tem baixa fertilidade do
solo, não tem logística para escoamento da produção e tais empreendimentos
trariam impactos ambientais negativos”, afirma, ressaltando que é necessário
desenvolver a região pantaneira “com atividades econômicas apropriadas, como
o turismo ecologicamente correto”. Ainda assim, o mato Grosso do Sul
estimula o aumento das áreas de plantio de cana-de-açúcar priorizando
recursos ou facilitando acesso ao Fundo Constitucional de Financiamento do
Centro-Oeste (FCO).
A União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Única) estima que a
produção da cana-de-açúcar aumentará cerca de 55% durante os próximos seis
anos no Brasil. A produção de álcool deve subir de 14 bilhões para 27
bilhões de litros neste período. Com a alta do petróleo e políticas de
países desenvolvidos que estimulam o uso de combustíveis alternativos, a
demanda por álcool deve crescer ainda mais para o nosso pais, que já é líder
mundial, junto aos Estados Unidos, na produção sucroalcooleira. Os
principais compradores do álcool brasileiro são Índia, Japão, Holanda,
Suécia e Estados Unidos, segundo o Instituto de Economia Agrícola.
Aproveitando a onda, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) injetou este ano R$ 1,5 bilhão em novas destilarias no Brasil,
financiando até 90% dos custos, e ajudando a implantar 98 novas usinas em
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Tocantins, Minas Gerais e São Paulo.
(Por Allison Ishy,
OEco, 14/12/2006)