Com formação acadêmica em Engenharia Mecânica, na Universidade Federal da Bahia e Especialização em Política e Regulação da Indústria de Energia, além de mestre em Regulação da Indústria de Energia pela Universidade de Salvador (Unifacs), Aurélio de Andrade Souza afirma que
com seu trabalho, voltado para o aproveitamento de energias renováveis no meio rural, aprendeu a ter viés social.
Segundo ele, a melhor alternativa energética deverá obedecer a diversas características locais, dentre elas, a disponibilidade do recurso energético a custos reduzidos e compatíveis com a demanda de energia e suas aplicações. Souza representa no Brasil uma ONG internacional, a Winrock, sediada em Salvador, que atua em diversas frentes sempre
propondo às comunidades carentes ações criativas para melhor aproveitamento de energia e, conseqüentemente, para elevar a qualidade de vida. Após sua palestra no Centro de Recursos Ambientais (CRA) da Bahia, bastante aplaudida, ele concedeu entrevista à jornalista Nádya Argôlo, da Assessoria de Comunicação do CRA.
Nádya Argôlo - Há quanto tempo você trabalha com energias renováveis no meio rural e como foi o início de tudo?
Aurélio Souza - Trabalho profissionalmente com energias renováveis no meio rural há cerca de dez anos. Mas o contato com tecnologias renováveis e como elas podem melhorar a vida no campo começou há muito tempo, ainda quando criança, na fazenda de meus
avós.
NA - Como surgiu a oportunidade de você trabalhar em uma ONG, como a Winrock Internacional?
AS - Winrock International tinha montado seu escritório em Salvador em 1996, e estava se estruturando para implementar um projeto com recursos internacionais. Precisavam de um engenheiro para fazer os projetos de energia solar e outras tecnologias renováveis. Fiz
uma entrevista e fui selecionado como consultor. Isso foi em abril de 1998.
NA - Por que a Bahia foi o estado escolhido pela Winrock por sediar a ONG no Brasil?
AS - Foi uma decisão estratégica e em função dos recursos disponíveis na época. O programa, iniciado em 1996, focava bastante a eletrificação rural com energia solar, principalmente. A Bahia possuía o maior número de propriedades rurais sem acesso à energia elétrica do Brasil. Logo, pareceu lógico se instalar no Estado com maior desafio
pela frente.
NA - No Brasil, a Winrock coordena projetos nas áreas de energia renovável, eficiência energética e desenvolvimento de lideranças. Fale um pouco desses projetos.
AS - Os programas de energia renovável e eficiência energética são na verdade um só. O objetivo é bastante amplo e revisto anualmente, sempre após um ciclo de implementação e avaliação. Pretende-se a cada revisão, na maioria das vezes anual, adequar a implementação e traçar novas metas em função dos resultados alcançados e dos cenários
político, social, econômico e ambiental atualizado. Neste sentido, o programa de energia busca sempre identificar lacunas tecnológicas, políticas, sociais e financeiras que travam uma maior disseminação da utilização de energias renováveis. O mesmo ocorre com a eficiência energética, procurando, por meio de diversas ações, como de capacitação e treinamento, discussão e promoção de políticas públicas, projetos demonstrativos, entre outros, mostrar à sociedade que existem alternativas sustentáveis e que estas são viáveis em diversos nichos. Nosso foco é bastante voltado para prover soluções para uma parcela
da sociedade menos favorecida e mais carente. Já o programa de Desenvolvimento de Lideranças segue uma linha muito parecida, contudo, as ações deste programa visam a uma ação menos tecnológica e mais voltada às questões como combate ao trabalho infantil, ao tráfico de seres humanos, à redução da violência urbana, principalmente, quando as
vítimas são mulheres e crianças. Enfim, ação com viés mais social, mas sem esquecer as questões ambientais no entorno.
NA - O Programa de Desenvolvimento de Lideranças (LD) objetiva cultivar a cidadania em populações carentes, promover uma convivência sustentável com o meio ambiente e oferecer acesso à informação. Como essas ações são implementadas?
AS - Tanto o programa de LD quanto o de energia buscam fortalecer as instituições de base comunitárias, populações tradicionais, sociedade civil e setores público e privado, sempre objetivando desenvolvimento sustentável por meio de ações de educação e
capacitação, direcionada para uma convivência saudável com o meio ambiente. Muito destas ações são implementadas por atividades que fazem parte de projetos específicos, no caso do programa de LD, estas atividades buscam criar lideranças para atuarem de forma estruturada no combate a alguns problemas relacionados com a exploração de menores,
combate ao trabalho infantil, tráfico de seres humanos, questões de gênero dentre outros assuntos. Em suma, o foco é o fortalecimento do ser humano, provendo acesso à informação, educação e desenvolvendo a cidadania.
NA - A ONG Winrock sugere a criação de lideranças para atuarem como agentes de transformação das comunidades onde vivem. De que forma essas pessoas são envolvidas? Os resultados têm sido satisfatórios?
AS - Um dos maiores desafios dos programas que desenvolvemos é a inserção dos beneficiários diretos dos projetos, ou seja, as pessoas que residem nas comunidades foco das ações. Por questões mais diversas, as populações tradicionais, principalmente as localizadas em comunidades mais afastadas, foram ficando à margem do desenvolvimento socioeconômico. Reverter este quadro requer um envolvimento
bastante sincero com as comunidades e suas lideranças no sentido de desenvolver confiança entre as partes. Este processo, no entanto, é longo e cheio de armadilhas sociais e políticas. Os resultados que estamos obtendo estão muito satisfatórios, pois temos tido o prazer e a sorte de trabalhar com comunidades com o mínimo de organização comunitária, o que facilita muito se atingir os resultados esperados.
NA - Sabemos que o Winrock desenvolve projetos de erradicação do trabalho infantil, combate ao tráfico de mulheres, capacitação de pessoas, gênero e energia, além de implementar ações no âmbito do Projeto Alvorada. Como vocês dão conta de tudo isso? Como é a equipe de trabalho? Fale um pouco sobre o Projeto Alvorada.
AS - Bem, estes projetos são bem representativos da área de LD. E bastante complexos também, pois envolvem parceiros nacionais e internacionais. Na questão do combate ao trabalho infantil, nós coordenamos ações por meio de um comitê em diversos países
da América Latina. Posso afirmar, com toda certeza, de que nada do que fazemos, fazemos sozinhos. Sempre buscamos parcerias para somar e dividir. De fato, é impossível criar programas com ações em diversos lugares sem as parcerias locais. Essa é a grande chave para multiplicar esforços. A equipe é composta por diversos profissionais com foco multidisciplinar: engenheiros, administradores, sociólogos,
dentre outros profissionais na área social. Além disso, a Winrock International está presente em mais de 70 países, e existe uma rede de cooperação e troca de informação entre as pessoas destes diversos países, somados aos mais de mil consultores contratados mundo afora para complementar as atividades em curso ou ajudar a desenvolver outras.
O Projeto Alvorada foi implementado em parceria com o Governo do Estado da Bahia e Governo Federal entre 2001 e 2002 e visava criar estruturas locais, em diversos municípios baianos, que permitissem à população carente acessar informação acerca dos projetos sociais dos governos e municípios: Alfabetização Solidária, Bolsa-Escola, Programa Saúde da Família e Água na Escola, dentre outros. Além de permitir que esta população tivesse acesso a informações através de terminais de Internet gratuitos. Na época, mais de 300 pessoas se envolveram na implementação deste projeto.
NA - Como o Brasil, e particularmente a Bahia, podem buscar novas alternativas de energia?
AS - Bem, vou procurar ser bem objetivo, pois este assunto, por si só, é bastante amplo e daria margem a diversas considerações. No entanto, acredito que o Brasil hoje requer maiores investimentos na geração de energia, principalmente, as de fontes renováveis. Dentre a principal fonte de energia brasileira podemos citar a biomassa. É composta desde plantas oleaginosas para produção de olhos vegetais, e conseqüentemente, a produção de biodiesel, à gaseificação de biomassa (madeira em
geral), até a cogeração com bagaço de cana de açúcar, produção de gás de aterros sanitários, dentre outras. No Nordeste, possuímos um dos maiores potenciais eólicos do mundo, com ventos muito bons para produção de energia elétrica, diga-se de passagem, nesta região os ventos ocorrem num regime totalmente complementar ao do ciclo hidrológico da nossa principal fonte de energia, a hidráulica. A própria energia hidráulica, largamente utilizada no Brasil, ainda encontra grande possibilidade de expansão por meio de pequenas centrais hidroelétricas, inclusive na Bahia. Há também um grande potencial de energia solar para geração de energia, principalmente para aquecimento de água. No Brasil, o consumo per capita de coletores solares para produção de água quente é menor que na Áustria, que não tem muito sol durante vários meses no ano. Aliás, em termos de energia solar, o pior lugar no Brasil para energia solar é o Sul, que possui 30% a mais de energia solar incidente que o melhor lugar na Alemanha, líder mundial nesta área. Qualquer que seja a busca de alternativas energéticas, ela deve levar em consideração as mudanças climáticas, causadas pelos gases de efeito estufa, principalmente o
metano e o dióxido de carbono. Este último é lançado na atmosfera em grande quantidade pela indústria de energia fóssil (petróleo, carvão, gás natural, dentre outros). Por fim, a Bahia, com sua tradição agrícola, pode entrar forte neste segmento de biocombustiveis (álcool, biodiesel, biogás e resíduos agropecuários em geral) para gerar energia, emprego e renda. No caso da energia solar para aquecimento de água, estamos muito aquém do que podemos aplicar aqui. É necessária política pública com
melhores definições para alavancar estas tecnologias. A Bahia possui potencial eólico em diversas localidades, no entanto, são necessários investimentos bem maiores para viabilizar, mas não impossíveis.
NA - É verdade que o Brasil já lidera a corrida mundial de combustíveis? De que maneira?
AS - Falei um pouco acima sobre este ponto, mas acredito que esteja falando de biocombustiveis. Sim, nós estamos bem posicionados nesta corrida. O carro chefe é o programa de álcool lançado na década de 70 por conta da crise do petróleo. De lá para cá entramos em períodos de menor preocupação com tais questões, mas que foram retomadas no início desta década com o famoso “apagão”. De maneira que geramos bastante energia de origem renovável, cerca de 45% do total consumida no Brasil, e produzimos muito combustível renovável, destaques para o álcool e agora o programa do biodiesel, que está crescendo bastante. A tendência é
crescer, pois o Brasil possui tudo que é preciso: terra, água e sol.
NA - O Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa) ainda enfrenta obstáculos para cumprir a promessa de ajudar na diversificação na matriz energética. Como está a Bahia em relação aos outros estados?
AS - A Bahia estava com alguns projetos cadastrados no Proinfa para geração de energia eólica. Por questões técnicas e políticas estes projetos não saíram. O Proinfa prevê a geração de energia a partir de três fontes de energia: eólica, biomassa e hidráulica. O Estado possui potencial energético nas áreas mas nenhum projeto foi oficialmente anunciado nestas frentes ainda. De modo que a Bahia está atrás neste aspecto.
NA - Uma das usinas de biodiesel que será construída pela Petrobras terá sede em Candeias, na Bahia. Sabemos que além de não emitir CO2 e ser renovável, o biodiesel se destaca como uma alternativa energética no Brasil, principalmente pela capacidade da produção agrícola. Dê sua opinião sobre o assunto.
AS - Este tem sido um assunto amplamente discutido na sociedade, com diversas vertentes a se considerar, e nem sempre se chega a um consenso. Pensando no biodiesel como um programa que tem um grande potencial para geração de renda no meio rural, ele é um programa muito interessante e importante para o Brasil, principalmente para o Nordeste. Por outro lado, ainda existem dificuldades tecnológicas que impedem pequenos produtores, ou associações e cooperativas, de
participarem da cadeia produtiva do biodiesel, restando a estes o trabalho puramente de plantar a oleaginosa e, no máximo, extrair o óleo vegetal. Obviamente se bem organizados é possível se vencer estas barreiras e aproveitar ainda os incentivos governamentais para programas desta natureza. Uma vez pronto o biodiesel, o mesmo é misturado ao diesel de petróleo numa proporção de 2% do volume. Esta pequena porcentagem representa uma economia monumental na balança comercial, pois reduz demanda de diesel importado. Neste sentido, e pensando no mercado internacional de biodiesel, o Brasil deve abraçar este programa de forma a torná-lo uma referência mundial de distribuição de renda e de
geração de energia limpa.
NA - Conte para nós um projeto exitoso em termos de energia desenvolvido em uma comunidade pobre no interior da Bahia.
AS - No ano passado participamos de uma competição do Banco Mundial para captar recursos para implementar um projeto que pudesse atender a demanda do edital de promover desenvolvimento num meio ambiente mais saudável. O projeto aprovado consistia numa transição de uma agricultura tradicional, com uso de pesticidas, para uma agricultura mais saudável, orgânica, a conexão destes pequenos produtores com o mercado, além da agregação de valor à produção para aumentar renda. Agregação feita com energia solar para desidratar frutas e verduras.
Todo este projeto se desenvolveu na região de Juazeiro e tinha como plataforma institucional algumas escolas municipais selecionadas e ONGs locais. Desta forma, procuramos introduzir conceitos de agroecologia e produção orgânica com atividade extracurricular (com a intenção de, no futuro, passar a ser uma atividade curricular nas zonas rurais). A componente de energia renovável foi aplicada na desidratação da produção, como fator agregador de valor e segurança alimentar, e na possibilidade de utilização da energia solar para micropropriedades - irrigação da produção, onde não existe acesso à energia elétrica. Foi facilitado também o acesso dos produtores mobilizados ao processo de
certificação orgânica, garantindo maior penetração de mercado e exportação. As vertentes do projeto foram: acesso à informação para produção orgânica, transformação de produto para agregar valor com energia renovável e acesso ao mercado e à certificação. Um ano depois, cerca de 40 toneladas de produtos orgânicos já foram comercializados,
cinco escolas possuem suas hortas pedagógicas instaladas, cerca de 50 produtores em certificação, além de vários outros resultados. Vale ressaltar que a energia, por si só, não resolve nada, mas associada a um serviço energético, neste caso, desidratação e irrigação, faz toda a diferença.
(
CRA/Bahia, 13/12/2006)