A ausência ou a insuficiência de água potável mata dez vezes mais pessoas do que todos os conflitos armados, segundo o Conselho Mundial da Água. É nesse contexto que 70% dos 1,3 mil municípios do semi-árido brasileiro podem ter problemas de abastecimento de água até 2025, o que significa que uma população de mais de 30 milhões correm o risco de sofrer uma crise hídrica, caso o modelo de gestão e distribuição de água no semi-árido não seja alterado. Para sanar esse problema, seria necessário um investimento em obras da ordem de R$ 3,6 bilhões.
Esses dados fazem parte do Atlas Nordeste, um estudo realizado pela Agência Nacional de Águas (ANA), que analisou a demanda e a oferta de água na região do semi-árido brasileiro e o seu entorno, uma área que compreende os nove estados nordestinos e mais o norte de Minhas Gerais, com uma população de 34 milhões de pessoas; só no semi-árido são 28 milhões. Hoje, calcula-se que até 10 milhões não tenham acesso à água. Para 2025, é estimado que o semi-árido tenha um crescimento populacional que atinja a quantidade de 53,6 milhões de habitantes.
A pesquisa levou 18 meses para ser concluída e foram considerados os dados de municípios urbanos com mais de 5 mil habitantes. “O estudo procurou identificar onde está a água, seja ela superficial ou subterrânea; como e com que qualidade chega aos habitantes urbanos, e qual a melhor forma de abastecer as populações que contam com sistemas insatisfatórios, a menores custos”, afirma o diretor-presidente da ANA, José Machado.
O clima do semi-árido é conhecido pela sua escassa ocorrência de chuvas (400 a 600 milímetros por ano) e que se concentram em poucos meses do ano. “Quanto maior a escassez de água, maior é a necessidade de gestão para aproveitar o pouco que se tem. Uma região semi-árida é problemática em qualquer lugar do mundo”, explica João Gilberto Lotufo, superintendente de Planejamento de Recursos Hídricos da ANA. Ele avalia que, nos últimos anos, houve um aumento de qualidade da gestão da água por parte do governo e que há um esforço para que os efeitos da escassez hídrica sejam minimizados. “Se não for feito nada, uma porcentagem razoável da população do semi-árido vai sofrer”, afirma.
Atualmente, os municípios já enfrentam problemas de abastecimento. Cidades como Caruaru (PE) já têm racionamento de água. José Aldo menciona que o regime atual é de um dia com água para outros dez sem, e lembra que a situação já foi pior: para cada um dia com água, eram outros quinze sem.
Para José Aldo dos Santos, coordenador da Articulação do Semi-árido (ASA) em Pernambuco, além das características naturais da região, a oferta de água para a população é limitada devido a um crescimento populacional e urbano desenfreado e à política centralizadora de água em determinadas regiões, que privilegiou a construção de grandes açudes e o combate à seca.
Transposição
O Atlas Nordeste propõe a realização de cerca de 500 obras, capazes de melhorar a gestão e a distribuição de água entre os municípios da região. De acordo com o João Gilberto Lotufo, superintendente da ANA, são propostas de obras de variados tipos e dimensões a serem implantadas. O estudo apontou o estado de Pernambuco como tendo o abastecimento mais crítico e que, por isso, teria que receber mais investimentos, cerca de R$ 1,3 bilhão. Lotufo ressalta que as obras de soluções integradas, ou seja, aquelas que atendem a mais de um município, têm maior abrangência e, por isso, são mais eficazes.
“A transposição do São Francisco seria uma obra complementar a esses projetos”, afirma o superintendente da ANA. Ele explica que a o projeto de integração seria responsável por levar água para os principais reservatórios e, a partir disso, seria distribuída para os diferentes municípios através de um sistema de capilaridade.
José Aldo Santos, coordenador da ASA-PE, lembra que a transposição seria bem vinda se ela atendesse com prioridade o consumo humano, como foi determinado pelo Comitê de Bacia do São Francisco, mas ele afirma que, hoje, o projeto beneficia principalmente o agronegócio. “A transposição do São Francisco seria uma obra de complementação para levar água para o consumo humano e dessedentação animal. Mas, no momento, a transposição não tem sentido. Não há uma política adequada para o uso”, afirma João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.
“Não existe a solução salvadora do semi-árido. O que seria capaz de melhorar a condição de vida é um conjunto de alternativas, experiências e tecnologias, além de reeducar a população para o uso consciente da água”, afirma Aldo. O coordenador da ASA diz que é importante a integração de bacias que priorizam a água para o consumo humano e que é preciso potencializar os investimentos nisso. “Qualquer obra tem que ter um processo de mobilização e participação social. Só assim há entendimento sobre a sua finalidade”, enfatiza.
Suassuna explica que todos os Estados do semi-árido dispõem de recursos hídricos, que precisam ser gerenciados a partir de um planejamento. Para ele, a crise hídrica seria minimizada se houvesse mais sistemas interligados, dentro dos próprios Estados, que pudessem distribuir a água disponível para as cidades do seu interior e, a partir daí, seriam feitos sistemas interligados entre Estados.
Além de grandes obras hídricas, Santos lembra que é necessário aliar outras medidas, como a recuperação e a despoluição de rios, o saneamento básico e o armazenamento das águas das chuvas, por meio das cisternas, por exemplo. Barragens subterrâneas, poços, barreiros e caldeirões de pedra são outras medidas mencionadas pelo coordenador da ASA.
Para Lotufo, as cisternas são medidas paliativas, cujo alcance consegue resolver o problema familiar e, por isso, não são suficientes para garantir a segurança hídrica. Por outro lado, ele enfatiza o papel social das cisternas: “Elas são essenciais para o nordeste e evidenciam que as políticas só funcionam com a participação local”, observa. O Programa 1 Milhão de Cisternas, projeto coordenado pela ASA em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social, foi premiado pela ANA, no último dia 6, na categoria “Uso racional de recursos hídricos”.
Modelo de desenvolvimento
O Atlas Nordeste aponta que, do total da demanda de água, cerca de 55% a 60% é para irrigação. O consumo humano requer 27% a 32%, a indústria 8% e a dessedentação animal, de 4 a 5%. Suassuna lembra que essa forma de destinação da água não é exclusiva do nordeste, mas que, no mundo todo, ela segue essa distribuição.
Para o coordenador da ASA, hoje, o modelo econômico em curso é centralizador e desigual. “Ele inclui quem já está incluído. A água não pode estar sob domínio de apenas um setor”. Ele lembra que a exploração local vem sendo equivocada e tem trazido enormes prejuízos aos recursos naturais da região: “No Vale do Rio São Francisco, onde há grandes projetos de irrigação, 10% das áreas cultiváveis se tornaram salinizadas e já não servem mais para a agricultura”.
“É preciso discutir com a população o modelo de desenvolvimento que se quer para a região, porque esse é um assunto que aflige todo o país. Qualquer solução deve ser discutida com a comunidade para se chegar a um comum acordo, mas sempre no sentido de se valorizar o uso eficiente da água. Não podemos desperdiçar”, afirma Lotufo.
(Por Natália Suzuki,
Agência Carta Maior, 12/12/2006)