'Brasil como paraíso das águas é um mito'
2006-12-12
“A idéia de que o Brasil é o paraíso das águas é um mito que prejudica mais que ajuda”. A afirmação é do cientista político Valdemar de Araújo Filho, assessor da SNSA (Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental), ligada ao Ministério das Cidades). Ele é o debatedor desta semana do Fórum sobre o Relatório de Desenvolvimento Humano, do PNUD. Araújo Filho discutirá com os internautas as medidas que devem ser tomadas pelo país para assegurar que o Brasil cumpra a meta de saneamento prevista nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio: reduzir pela metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população sem acesso a esse serviço.
Araújo Filho afirma que um dos desafios para avançar no atendimento de água e esgoto no Brasil o mito de que o país tem água em abundância. Segundo ele, é possível que em pouco tempo algumas áreas sejam consideradas “regiões críticas em termos de disponibilidade hídrica”, o que já acontece com municípios localizados no Semi-Árido nordestino. “A disponibilidade hídrica do país varia no espaço e no tempo, mostrando um mapa de distribuição dos recursos hídricos extremamente desigual”, afirma ele em entrevista.
Em razão disso, defende, as políticas de manutenção e proteção dos mananciais devem ser prioridade dos governos. “[Isso inclui] além da definição de áreas de preservação, o princípio de que não se deve implantar rede coletora [de esgotos] sem estações de tratamento”, argumenta.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail à PrimaPagina.
O Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 aponta que, mantida a tendência atual, o Brasil provavelmente não alcançará o indicador relativo ao saneamento nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Em 14 anos (de 1990 a 2004), o percentual da população com saneamento adequado subiu 4 pontos percentuais, para 75%. Para atingir a meta em 2015 o país precisaria ampliar a cobertura em 10,5 pontos percentuais. O sr. acha que é possível reverter essa tendência e cumprir os Objetivos?
Valdemar Ferreira de Araújo Filho — Deve ser ressaltado que os dados do relatório revelam a dinâmica da década de 90 e só chegam até 2004. Nesse sentido, as tendências identificadas pelo relatório estão sendo revertidas pelos investimentos realizados pelo atual governo federal, que assumiu um outro padrão de financiamento em relação aos praticados na década de 90. Entre 2003 e 2006, a média anual de investimentos em saneamento foi de R$ 3,15 bilhões, sendo aplicados R$ 12,6 bilhões desde 2003. A maior parte desses recursos foi destinada aos serviços de esgotamento sanitário. Isso rompe definitivamente com o padrão de investimentos praticado durante o governo FHC [Fernando Henrique Cardoso], quando foram investidos R$ 13,5 bilhões, uma média anual de R$1,69 bilhão nos oito anos do período.
Os resultados desses investimentos já começam a ser capturados pela PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, que usa uma metodologia diferente da ONU]. No que se refere ao esgotamento sanitário, entre 2002 e 2005 a cobertura domiciliar por rede geral salta de 46,40% para 48,24%, um acréscimo de 3,5 milhões de novos domicílios ligados à rede. Agregando-se a alternativa da fossa séptica (1,1 milhões de novos domicílios), a cobertura domiciliar de esgotamento sanitário passa de 68,1% dos domicílios em 2002 para 69,66% em 2005. Em termos de incremento relativo, o crescimento dos serviços de esgotamento sanitário por rede coletora foi de 15,86%, e o de fossa séptica de 10,30%, portanto, superior ao incremento relativo domiciliar do período, que se situou em 11,55%. Obviamente que existe o problema do déficit acumulado durante as décadas precedentes, que em 2005 totalizava cerca de 16 milhões de domicílios sem esgotamento sanitário no país. Esse déficit se acumula principalmente nas zonas rurais, o maior contribuinte para o indicador, nas áreas metropolitanas das regiões Norte e Nordeste, nas periferias metropolitanas de todas as regiões do país, nos municípios de todo o país abaixo de 30 mil habitantes, além das cidades médias com forte expansão demográfica situadas em zonas de fronteira agrícola.
Quais são os principais desafios do país para que isso aconteça?
Araújo Filho — O governo federal já vem assumindo várias medidas necessárias ao incremento da cobertura dos serviços de esgotamento. Podemos citar várias iniciativas que integram a estratégia de busca de melhoria nos padrões de atendimento dos serviços de saneamento. Primeiro, foi a mudança no padrão de investimentos praticado até 2002. Em segundo lugar, o direcionamento da maior parte dos recursos do FGTS [Fundo de Garantia por Tempo de Serviço] para a área de esgotamento sanitário, visto que os operadores preferem investir em abastecimento de água. Terceiro, o apoio à criação de consórcios regionais envolvendo conjuntos de municípios de uma mesma realidade socioeconômica e ambiental, de forma que os municípios possam criar sinergias e economias de escalas em prol da melhoria da qualidade dos serviços de saneamento básico. Quarto, o apoio técnico e institucional que o governo federal vem prestando aos operadores para o incremento da eficiência operacional e administrativa dos serviços. Finalmente, as regras relativas ao processo de controle social contempladas no marco regulatório do setor de saneamento, que se encontra em fase final de tramitação no Congresso Nacional, irão propiciar um grande estímulo para que os operadores invistam mais recursos em esgotamento sanitário. Por fim, também é necessário que se estabeleça um pacto entre a sociedade civil, titulares dos serviços, governos e operadores, no sentido de que os serviços de esgotamento sanitário se tornem uma prioridade permanente de todos os governos, em todas os níveis governamentais.
O relatório do PNUD indica, por outro lado, que o Brasil está muito perto de atingir as metas de acesso à água. Por que existe essa disparidade entre o atendimento de água e de esgoto?
Araújo Filho — Há três fatores básicos: o pacto federativo, o incentivo econômico, e a cultura política. Os titulares dos serviços de saneamento são os municípios, embora a maior parte deles (mais de 3.700) seja servido por concessionárias estaduais. Tanto estas quanto os operadores municipais não dispõem de um forte estímulo para investir em esgotamento, um serviço mais oneroso na sua implantação e menos rentável na sua operação: parte dos custos dos serviços de implantação e manutenção de esgotamento são cobertos pela lucratividade gerada pelos serviços de abastecimento de água. A União tem procurado estimular investimentos em esgotamento, direcionando a maior parte dos recursos do FGTS para essa área. Mas ela não pode intervir diretamente na política municipal de saneamento ou dos operadores que assumiram a concessão municipal. Além desses fatores, por uma questão de tradição cultural, e também por fatores relativos ao grau de informação social acerca dos problemas socioambientais provocados pela ausência de serviços de esgotamento, esses serviços geram menos dividendos e visibilidade política que os serviços de abastecimento de água. Assim, a União pode estimular uma mudança no quadro e vem tentando cumprir o seu papel, mas ela não pode forçar os demais entes federativos a investir nesses serviços. Essa mudança também depende de transformações na cultura política compartilhada pelos dirigentes públicos estaduais e municipais, processo que de fato já vem ocorrendo.
Se uma porcentagem significativa da população tem água, mas não tem esgoto, para onde está indo a água que elas consomem?
Araújo Filho — É óbvio, embora trágico, que grande parte dela volta, de forma degradada, para o entorno de onde foi retirada. Se há ausência de rede coletora ou de fossa séptica, as águas servidas jogadas nas valas e ruas se infiltram e contaminam os mananciais subterrâneos. Quando há valas a céu aberto que são orientadas para rios, lagoas e córregos próximos, essas águas residuárias irão contaminar os recursos hídricos do entorno próximo. Mas, mesmo quando há rede coletora mas não há estações de tratamento e a rede tem um rio ou lagoa como destino final, as conseqüências para o meio ambiente podem ser até mais graves. Pois o que era poluição difusa, espalhada por uma área de solo que poderia decantar parcialmente os poluentes, torna-se um foco de poluição concentrada, comprometendo ou mesmo tornando inutilizável a água do trecho de um rio que recebe esses efluentes. Esse quadro se torna mais grave em rios com baixa vazão, onde o poder de diluição dos poluentes é bastante reduzido. Esse é o exemplo hoje de grande parte do rio Piracicaba (SP) e de outros rios com baixa vazão média frente ao volume das descargas dos poluentes. Os esgotos domésticos são as maiores fontes de poluição concentrada dos recursos hídricos do país, e, se esse quadro não for revertido, grande parte dos mananciais superficiais e dos aqüíferos e lençóis subterrâneos estarão comprometidos em poucos anos.
E quais os efeitos para a saúde?
Araújo Filho — Em relação à saúde, as conseqüências são bem conhecidas: doenças como cólera, diarréia infantil, verminoses e tifo são causadas principalmente pela ausência de saneamento básico. Nos últimos anos, a mortalidade infantil tem se reduzido, já como expressão também da melhoria das condições gerais de saneamento básico. A taxa de mortalidade infantil neonatal declinou entre 2002 e 2004, com uma queda no risco do óbito infantil de 7,4%. Os óbitos infantis caíram 9,9% em dois anos. O componente pós-neonatal (entre 28 dias e um ano de idade) da mortalidade infantil, e que se relaciona intimamente com as condições sanitárias, foi o que mais contribuiu para a queda da taxa, com 8,8% de redução entre 2002 e 2004. A OMS [Organização Mundial da Saúde] calcula que, em média, para cada R$ 1 aplicado em saneamento, há uma economia de R$ 2 a 3 em gastos com saúde. Assim, investir em serviços de saneamento não representa apenas uma questão de cidadania e de prioridade ambiental, mas também é uma questão de racionalidade econômica.
O relatório do PNUD destaca que o Brasil é um dos países que tem mais água do que pode consumir, mas que ainda sim não conseguiu superar o desabastecimento nas regiões secas e entre a população de baixa renda. Por que isso acontece?
Araújo Filho — Há vários fatores para isso. Em algumas regiões, como o Norte e o Nordeste, os operadores estaduais e os governos municipais dispõem de menor capacidade técnica e financeira para operar e investir em serviços de saneamento. Mas, muitas vezes, o saneamento não é de fato uma prioridade política em muitos dos pequenos municípios do país. Gostaria de lembrar que o déficit de esgotamento sanitário por faixa populacional se concentra nos municípios com população abaixo de 30 mil habitantes, independentemente da região do Brasil. Nesses, a média de cobertura domiciliar por rede coletora em 2000 era de 29,11%. A solução adotada é a agregação da fossa séptica, quando a cobertura média sobe para 42,60%, considerando-se os valores daquele ano (Censo de 2000 do IBGE).
Um outro fator é que em algumas regiões, como o Nordeste, de fato não há mananciais suficientes e a captação muitas vezes se situa muito longe dos municípios beneficiários. Assim, o abastecimento ocorre de forma intermitente e onerando os serviços, reduzindo a qualidade do atendimento. Nesses locais, principalmente nos pequenos municípios mais pobres, o abastecimento só pode ser economicamente viável através do subsídio cruzado praticado pelas operadoras.
Finalmente, há um fator muito importante que é o mito disseminado acerca da disponibilidade de água. Na realidade, a idéia de que o Brasil é o paraíso das águas é um mito que prejudica mais que ajuda. Se observarmos a disponibilidade hídrica nas várias regiões hidrográficas do país, vamos perceber que a realidade nos períodos de seca é outra. Se utilizarmos o indicador “proporção da vazão de estiagem em relação à vazão média” dos rios de algumas regiões hidrográficas, que é a água de fato de que se pode dispor com segurança durante todo o ano, veremos que na região hidrográfica do Uruguai essa proporção é de 9,49%; na Atlântico Sul, de 14,95%; na Atlântico Leste, de 16, 96%; na Atlântico Nordeste Oriental, de 4,11%; e na Atlântico Nordeste Ocidental, de 12,23%. Ou seja, a disponibilidade hídrica do país varia no espaço e no tempo, mostrando um mapa de distribuição dos recursos hídricos extremamente desigual. Das 12 regiões hidrográficas nacionais, apenas três superam uma vazão de estiagem em relação à vazão média acima de 38% (Plano Nacional de Recursos Hídricos). Com esse perfil de distribuição dos recursos hídricos, uma das políticas prioritárias deve ser a proteção e a manutenção dos mananciais, incluindo, além da definição de áreas de preservação, o princípio de que não se deve implantar rede coletora sem estações de tratamento. A realidade é que em muito pouco tempo algumas regiões do Brasil estarão enquadradas como regiões críticas em termos de disponibilidade hídrica, categoria em que o semi-árido da região Nordeste já se enquadra há muito tempo.
Como isso pode ser revertido?
Araújo Filho — Com a definição de um novo perfil federativo na política de saneamento básico, de forma que haja compromisso por parte dos entes locais e regionais com os investimentos em sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário, como vem estimulando a SNSA; com a consolidação de políticas ambientais e de recursos hídricos efetivas e integradas com a política de saneamento básico, iniciativa que os órgãos federais do setor já vêm assumindo; com a definição de circunscrições territoriais unificadas de planejamento para as políticas de recursos hídricos e de saneamento básico, de forma que se leve em consideração o recorte das bacias hidrográficas e a realidade socioeconômica das populações atendidas; com o incremento permanente dos investimentos em saneamento, inclusive vinculando parcelas mínimas dos orçamentos da União, Estados e municípios aos investimentos em saneamento básico; e a implantação de formas de controle social sobre as políticas municipais e estaduais de saneamento básico.
Constitucionalizar o direito ao saneamento seria uma alternativa para impulsionar a universalização do acesso à água e ao esgoto no Brasil?
Araújo Filho — Trata-se de uma idéia a se debater. Os usos da água e a disponibilidade de serviços de esgotamento incidem diretamente sobre as possibilidades de vida das pessoas. É importante que o saneamento tenha o mesmo tratamento que outras políticas, como as de saúde e educação. Agora, o problema da constitucionalização deve ser discutido dentro do contexto das suas implicações para a gestão da política de saneamento. O importante é que sejam assegurados recursos permanentes e em patamares satisfatórios, para que a universalização seja uma meta factível nos próximos 20 anos, como proposto pela SNSA.
O PNUD sugere no relatório a criação de um ministério dedicado exclusivamente à questão do saneamento. Isso garantiria uma maior atribuição de recursos e ajudaria a diminuir a fragmentação política no setor. O sr. acha que isso seria viável no Brasil? Solucionaria o problema?
Araújo Filho — Pessoalmente considero essa alternativa inadequada, pois acho que isso agravaria a fragmentação da política. O Ministério das Cidades vem cumprindo satisfatoriamente suas funções, apesar do pouco tempo de sua criação, em 2003. A existência de um Ministério não é garantia de recursos, e a história do país está cheia de exemplos desse tipo. Por outro lado, dentre os fatores que aprofundam os problemas de saneamento básico estão as formas de uso e ocupação do solo urbano, a ausência de planos diretores que orientem o processo de expansão urbana, a ausência de fiscalização e de um marco jurídico satisfatório para os assentamentos precários, além da ausência de um histórico de integração com políticas afins, exemplo da política de meio ambiente e de habitação. A política de saneamento não pode ser desvinculada dessas políticas porque ela recepciona os problemas sociais gerados nessas modalidades de intervenção. O Ministério das Cidades veio justamente suprir a lacuna de ausência de uma política integrada de desenvolvimento urbano. Fragmentar essa política e tratar o saneamento de forma isolada seria um erro histórico e um retrocesso conceitual.
O sr. avalia que o Brasil investe bem em saneamento?
Araújo Filho — Historicamente, os padrões de investimentos em saneamento sempre foram insatisfatórios. E a prova é o déficit acumulado de cerca de 9,5 milhões de domicílios sem rede de abastecimento e 16 milhões sem rede coletora ou fossa séptica, grande parte na área rural. Entre 1995 e 1998, a média anual de contratações com recursos do FGTS foi de R$ 680 milhões, e a partir do ano seguinte o processo de asfixia se aprofunda, chegando entre 1999 e 2002 à média anual de R$ 68 milhões. Os contratos com recursos do FGTS são importantes porque eles estão mais sujeitos ao processo de planejamento interno da política pelo órgão nacional gestor, visto que grande parte dos recursos não onerosos, oriundo do Orçamento Geral da União, já sai comprometido do processo de emenda de parlamentares. Entre 1995 e 2002, a média anual de contratações, considerando-se todas as fontes, onerosas e não onerosas, em valores atualizados, foi de R$ 1,69 bilhão, totalizando cerca de R$ 13,5 bilhões em oito anos. Entre 2003 e 2006 houve uma reversão no padrão de financiamento, quando foram contratados, em valores não atualizados, cerca de R$ 12,6 bilhões, uma média anual de R$ 3,15 bilhões. A partir de 2007, a expectativa dos agentes atuantes no setor é a de que o governo federal passe a investir cerca de R$ 9 bilhões anuais, um marco histórico no setor. Dessa forma, espera-se que em 20 anos os serviços de saneamento básico possam estar no limiar da universalização.
(Por Talita Bedinelli, PNUD Brasil, 11/12/2006)
http://www.pnud.org.br/saneamento/entrevistas/index.php?id01=2465&lay=san