Com 976 mil hectares e 16 anos de vida, a Reserva Extrativista Chico Mendes,
situada no leste do Acre, não vive exatamente do jeito que seu idealizador
imaginou. Em vez de sobreviverem sustentavelmente dos recursos da floresta,
os moradores ainda vivem o dilema entre a subsistência e a conservação da
natureza. Na realidade, as duas mil famílias que vivem na primeira reserva
extrativista do Brasil ainda não conseguiram dar o exemplo e continuam a
desmatá-la pouco a pouco, a cada ano.
De acordo com Francisco Kennedy de Souza, pesquisador da Universidade
Federal do Acre (UFAC), desde 2002 a pecuária representa 30% dos ganhos das
famílias. Antes disso, não superava os 13%. Mas os moradores dizem que
graças à valorização da castanha e do látex – e à providencial queda no
preço da arroba do boi em 2005 - eles estão deixando os rebanhos de lado.
Além do mais, eles estão ansiosos pela permissão de iniciarem outra
modalidade de exploração da floresta: a madeireira.
Esses são os mais recentes capítulos da conturbada trajetória da Reserva
Extrativista Chico Mendes. Durante os anos 80, na pequena cidade de Xapuri,
trabalhadores rurais organizaram-se em torno do líder sindical que, depois
de seu assassinato em 1988, tornou-se sinônimo de defesa do meio ambiente em
todo mundo. Eles defendiam que a floresta em pé era seu meio de vida,
portanto não queriam vê-la transformada em pasto. Com a morte de Chico
Mendes, a luta dos seringueiros tomou vulto e nasceu a primeira reserva
extrativista do Brasil; e do mundo, pois até aquele momento não existia esta
categoria de unidade de conservação. Desde então já se criaram outras 50
reservas em todo país.
O idealismo pereceu
Nessas quase duas décadas de vida da reserva, pesquisas revelaram que, ao
procurarem melhor renda, muitos extrativistas abraçaram os ideais de seus
antigos inimigos pecuaristas. Ou seja, ano após ano, observou-se o
crescimento de gado dentro da reserva. De acordo com levantamento de Kennedy
de Souza, em 1995, cerca de 40% das famílias possuíam gado. No ínicio dos
anos 2000, esse percentual já havia subido para 62%.
Isso levou a um aumento do desmatamento da reserva. O próprio Ibama,
responsável pela fiscalização da Chico Mendes, reconhece isso. “Eu sobrevoei
a reserva e fiquei apavorado com o que vi”, relata Anselmo Forneck, o
superintendente do Ibama no Acre. Porém, ele é o primeiro a relativizar sua
surpresa. Conta que o órgão federal está terminando um levantamento que
indica que “apenas” 4,2% da unidade de conservação estão desmatados. Não
devia causar surpresa a quem elaborou o plano de uso da Chico Mendes, uma
vez que ele admite que até 10% de seus quase 1 milhão de hectares sejam
derrubados, e que cada extrativista possa dedicar 5% de sua propriedade à
criação de gado. Para alguns, nem isso foi suficiente. “Há pessoas que já
extrapolaram, e muito, os 5% para pastos”, diz Ana Euler, coordenadora de
projetos comunitários da WWF-Brasil.
João Batista Ferreira da Silva tem 20 cabeças de boi na colocação Taquari,
sua propriedade no Seringal Floresta. Para ele, o gado significa segurança
na renda, e há ainda o leite, complemento essencial para quem tem sete
filhos. Embora veja vantagens no gado, diz que não pretende aumentar o
rebanho. Sua esperança é começar a explorar madeira, principalmente o breu,
dentro de suas áreas preservadas. O Floresta é um dos seringais que já têm
um plano de manejo pronto elaborado pelo governo estadual. “A tendência
agora é melhorar. O negócio da madeira tem futuro”, prevê João Batista, que
passou seus 33 anos vivendo na região da Resex Chico Mendes.
Criar boi já não é tão vantajoso na visão dos extrativistas. Quem não tem
boa madeira em suas terras tem que comprar estacas para cerca. Tem ainda o
arame: “Um rolo hoje está o preço de um garrote”, reclamam alguns. E para
piorar há que se vacinar os animais. “Hoje quem tem quatro ou cinco cabeças
de boi está se desfazendo delas”, analisa Eugênio Florentino da Conceição,
da colocação Viriato, no seringal Sibéria. Mas ele mesmo não se desfez de
seus 50 animais, embora diga que não há mais planos para ampliar as
pastagens. “Com a castanha valorizada e a borracha em alta não vale mais a
pena derrubar”, diz.
A razão pela qual os extrativistas tenham voltado a confiar no potencial da
castanha e da borracha é que o governo estadual, ocupado pelo petista Jorge
Viana, finalmente começa a concretizar seus planos de industrializar os
produtos da floresta. Neste ano, as fábricas de castanha de Xapuri e
Brasíleia já processarão a safra, e até o fim do ano será inaugurada a
fábrica de camisinhas à base de látex extraído da reserva, na estrada que dá
acesso a Xapuri. Ali, um investimento de 30 milhões de reais feito pelo
estado vai garantir que 600 famílias possam atuar como fornecedoras de leite
de seringa. O leite é um produto mais vantajoso de se lidar: é menos
trabalhoso, pois não exige a defumação do látex para formação das bombonas
de borracha.
Desde 2000, vigora no Acre a Lei Chico Mendes, um dispositivo que permite ao
governo estadual subsidiar os extrativistas. Assim, um quilo do leite de
seringa está valendo 4,1 reais, sendo 20% do valor subsidiado pelo estado.
“As coisas aqui melhoraram 100%”, diz Francisco Maurício Rios, um
seringueiro de 67 anos que vive no Sibéria. Ele já não lida mais com a
criação de gado e, sem hesitar, saca a frase pronta: “O negócio é floresta
em pé”. A avaliação tem o respaldo das pesquisas de Kennedy de Souza, que
indicam que a renda dentro da Resex, após a entrada em vigor da lei, subiu
de 0,98 salário minímo para 1,3 salários mínimos. O gado, observa o
pesquisador, é uma falácia, pois leva ao desmatamento, diminuindo a área de
roçado e, portanto, reduzindo a economia gerada pela produção própria de
alimentos. “Quanto mais diversificada a produção, menor a chance de
desmatamento”, relaciona.
Aluguel de pasto
A melhoria das condições de vida dos seringueiros com os subsídios aos
produtos florestais faz a população da Chico Mendes não parar de crescer. A
reserva, que começou com cerca de 700 famílias, tem hoje aproximadamente
duas mil famílias. Há quem fale em três mil. “Todo dia tem gente vindo aqui
com pedido para viver na reserva extrativista”, conta Renato Ribeiro
Ferreira, que há dois anos está à frente da Associação dos Moradores e
Produtores da Reserva Extrativista Chico Mendes em Xapuri (Amoprex). Muitas
destas pessoas viviam no lado boliviano da fronteira e estão deixando o país
depois da eleição de Evo Morales. O problema, no entanto, são aqueles que
querem entrar na Chico Mendes para trabalhar como parceiros de fazendeiros
que estão do lado de fora da reserva.
Os chamados meeiros estão atuando principalmente nas redondezas do município
de Brasíleia. Tanto Kennedy de Souza, da UFAC, como Ferreira explicam que a
pressão que ocorre nesta região da Chico Mendes se deve à proximidade da
BR-317, a rodovia do Pacífico inaugurada há dois anos pelo governo federal.
Ali, os fazendeiros que estão no limite da legalidade usam os moradores da
área protegida para engordar seus bois. Um verdadeiro aluguel de pasto.
Sergio Lopes, gerente de Produção Familiar da Secretaria de Extrativismo do
governo acreano, apresenta uma visão direta do problema. Para ele, existe um
dilema para os extrativistas entre aderir ou não à filosofia dos
pecuaristas. “O pior opressor não está a nossa frente, está no nosso
coração”, ilustra, citando o dito de Leonardo Boff. “O boi está na
mentalidade destes produtores.”
Mesmo entre as lideranças da reserva extrativista existe uma divisão sobre a
ampliação dos pastos. Ferreira, o presidente da Amoprex , morador do
Seringal Rio Branco, avalia que “quase todas as famílias” criam algumas
poucas cabeças, mas existem “umas 10 pessoas” que têm “mais de 100 cabeças
de gado”. A briga dele é com os diretores da Cooperativa Agroextrativista de
Xapuri, a CAEX, que é responsável por comercializar os produtos da Chico
Mendes. No ano passado, Ferreira denunciou o vice-presidente Sebastião Diogo
ao Ibama por estar desmatando para formar pastos.
Omissão
A denúncia contra o dirigente da CAEX não foi a primeira que a Amoprex
encaminhou ao Ibama. Ribeiro reclama que os pedidos de fiscalização ao órgão
federal nunca são atendidos. Quem vive na Reserva Extrativista Chico Mendes
conta que raramente se vê um funcionário do Ibama por lá. Em Xapuri, onde
vivem 700 das duas mil famílias, há apenas um funcionário, e sem um posto
fixo para trabalhar. Alguns relatam que é mais comum ver o fiscal no bar do
que na mata. O posto do Ibama mais próximo fica a 70 quilômetros, em
Brasíleia.
Ainda que todos os extrativistas desistam de criar gado lá dentro, não é
difícil perceber que a omissão do poder público federal continuará a
empurrar as pessoas para a degradação da floresta. Além da falta de
fiscalização do Ibama, não existe qualquer forma de ajuda técnica para que
os extrativistas deixem de utilizar o fogo e abrir novas áreas para fazer a
sua roça.
Todos os anos, a maioria dos moradores faz como José Gaudério: junta os
familiares para realizar de “três a quatro tarefas”. Ou seja, derrubar cerca
de 1 hectare de mata para queimá-la e depois plantar o milho, o arroz, a
mandioca. Não parece algo saudável para a floresta e nem para o homem.
Portanto, se o governo estadual um dia cortar os subsídios da borracha, o
que farão os extrativistas? Raimundão, o primo e companheiro de luta de
Chico Mendes, que ainda hoje é uma liderança em Xapuri, afirma que o
problema está na mão da CAEX. “Ela tem que se articular, tem que fechar
contratos comerciais.” A CAEX tem dirigentes que hoje são acusados de manter
vastas áreas de pasto dentro da reserva. “Tem que trocar a diretoria, mudar
tudo, renovar, eu defendo isso”, completa Raimundão.
Para o primo de Chico Mendes, as coisas já foram muito piores. Ele faz
questão de apresentar um extrativista que saiu, mas resolveu voltar. Antônio
Diogo da Silva e sua família deixaram a região desanimados nos anos 80.
Foram viver na capital Rio Branco e se arrependeram. “Eu não sirvo para
viver na cidade”, diz ele. De volta a Xapuri, Antônio decidiu trabalhar de
meeiro no Sibéria, mas também não deu certo. Com a ajuda de Raimundão,
voltou para dentro da reserva e hoje vive no Seringal Rio Branco. Ele diz
que não quer saber de madeira, porque desconfia que destrói a floresta.
Quanto ao gado, não quer passar das nove cabeças. Ele está satisfeito com a
borracha e a castanha.
Ana Euler, do WWF-Brasil, pondera que as coisas podem não estar perfeitas
dentro da Chico Mendes, mas ela acredita que a situação estaria pior se a
reserva não existisse. Basta olhar, afirma, o que está acontecendo nas
reservas extrativistas de Rondônia, onde há muita degradação promovida por
planos de manejo fajutos e as pessoas estão vendendo suas colocações de
seringa. “A gente vê que depois de 15 anos de luta na Chico Mendes, as
pessoas acreditam que pode dar certo. Mas elas perderam a perseverança, e se
alguma coisa der errado, elas vão achar uma maneira de se virar”, argumenta
a ambientalista. Se virar, neste caso, pode significar floresta no chão.
(Por Gustavo Faleiros,
OEco, 09/12/2006)