União retoma 29 ilhas no Rio
2006-12-05
O pescador Moacir Francisco do Nascimento, de 77 anos, não precisou fincar uma placa de 'Propriedade Particular' na areia da Praia do Coelho para provar que é dono de parte da Ilha do Sandri, na Baía da Ilha Grande, em Angra dos Reis, onde nasceu e criou os seis filhos. Ao contrário de outros proprietários de ilhas na região de Angra e Paraty, no Rio, admite a possibilidade de receber uma indenização para deixar o lugar. Mas avisa que não sai por menos de R$ 250 mil. 'Deus deixou o céu, a terra e o mar. A terra é de quem ocupa. Isso aqui é posse imperial, ninguém derruba.'
Dezesseis anos após a criação da Estação Ecológica de Tamoios, nas Baías da Ilha Grande e de Paraty, o governo federal decidiu retomar as 29 ilhas da reserva - oito delas com construções. Pela primeira vez é feito um trabalho conjunto de regularização fundiária com a participação do Ministério Público Federal (MPF), da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
O pescador diz que, se receber o dinheiro, entrega 'a chave' em 90 dias e atravessa o mar - a praia fica em frente ao continente, com vista para as usinas nucleares de Angra. ' Estou pagando penitência tomando conta do Sandri. Senão, isso estava lotado de gente de dinheiro', declarou. Ele afirmou já ter enfrentado cinco pistoleiros que queriam tomar a ilha e vendê-la. 'Entraram em casa, mas não tremi.' Moacir mora na ilha com a mulher, Maria de Fátima, e aluga quartos, principalmente no verão. 'Quero trabalhar com a pureza e a verdade.'
A estação foi criada pelo decreto 98.864, de 23 de janeiro de 1990, com dois objetivos: preservação da natureza e realização de pesquisas científicas. A visitação pública é proibida, exceto com objetivo educacional. A área da estação, que abrange um quilômetro do entorno marinho das 29 ilhas, é considerada de proteção integral. De acordo com a legislação, áreas particulares incluídas nos seus limites serão desapropriadas, com pagamento de indenização aos moradores que chegaram ao local antes de 1990, como seu Moacir. O pescador avalia, porém, que 'o abacaxi ainda tem umas sete camadas de casca para tirar'.
Dinheiro da usina
O plano de manejo da estação foi elaborado este ano, com dinheiro de compensação ambiental decorrente da construção da usina nuclear Angra 2. O primeiro passo é a regularização fundiária. A chefe da estação ecológica, Sylvia Chada, diz que não vai arrumar confusão com todos de uma só vez. Pretende começar pelas ilhas que não têm registro de ocupação na SPU. 'São 14 ilhas, que terão a situação definida até fevereiro', declarou o gerente da SPU no Rio, Paulo Simões.
O problema é que, mesmo sem inscrição na SPU, houve transações de compra e venda registradas em cartórios. 'Existe um comércio milionário de ilhas na região. Gente que ganha muito dinheiro e depois o dono não pode fazer nada', declarou Sylvia. 'Mesmo nos casos em que houve boa fé, não vamos indenizar transação sem base legal.'
Especulação
A Ilha do Sandri, onde mora seu Moacir, é onde ocorre hoje a maior especulação imobiliária, segundo Sylvia. Na praia que fica ao lado de onde ele vive, uma placa avisa: 'Propriedade Particular: Entrada Proibida.' O desenho da cabeça de um cachorro indica que é melhor não sair do barco. Mais adiante, há a estrutura abandonada de um hotel-cassino, construído há mais de 20 anos, onde o Ibama pretende instalar uma base de pesquisa.
Segundo a lenda difundida por seu Moacir, o dono era Pablo Escobar. O pescador Jorge de Oliveira Porto, de 46 anos, mora lá. 'Aqui é tranqüilo. No verão, muita gente acampa na praia.' Em uma casa de três andares na Ilha dos Ganchos, na baía de Paraty, o Ibama pretende montar uma base de fiscalização - além do hotel-cassino, será a única construção mantida na futura estação. A vegetação nativa da Ilha dos Ganchos foi descaracterizada e, segundo o Ibama, árvores foram derrubadas para a construção de um campo de futebol e de uma piscina com água do mar.
A reportagem acompanhou na semana passada uma vistoria que flagrou o embarque de madeira no cais de Tarituba para o Ilhote Grande, entregue em uma obra que foi embargada. No caminho, aves em extinção como o trinta-réis voavam sobre o Rochedo de São Pedro.
Na Ilha Tucum de Dentro, dois operários carregavam material de construção supostamente para a reforma do píer. O dono é o italiano Antonio Aiazzi, de Florença. 'Em quatro anos, ele só veio sete ou oito vezes', informou o caseiro Rodrigo Santinato.
'Estamos averiguando a situação de cada ilha, agora nos cartórios. A intenção é retomar a posse de todas', declarou o procurador da República em Angra, André Dias, que coordena o trabalho.
Segundo bióloga, fiscal do Ibama corre risco de vida
A bióloga marinha Adriana Nascimento Gomes, de 39 anos, chegou à Estação Ecológica de Tamoios há um mês, transferida pelo Ibama do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos, na Bahia, após ser ameaçada de morte por combater a pesca ilegal. 'Ser fiscal do Ibama é uma profissão de risco. História de fiscal morto é comum', afirmou Adriana. Ela conta que há uma recomendação para que toda operação de fiscalização seja feita com o apoio da polícia - com a recente abertura de uma delegacia da Polícia Federal (PF) em Angra dos Reis isso será possível.
Este ano, a PF prendeu 22 servidores do Ibama no Rio, um quarto do total de fiscais no Estado, sob acusação de fraudes na liberação de licenças ambientais. Entre os presos, um analista ambiental e o chefe do escritório em Angra - metade do efetivo do Ibama no município. 'A idéia é zerar aquela equipe e começar 2007 com gente recém-concursada ou transferida', afirmou a engenheira agrônoma Sylvia Chada, de 41, chefe da equipe desde abril.
Senador se diz proprietário
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento há cinco anos para apurar 'possíveis improbidades administrativas e irregularidades nos processos de concessão de aforamento em terras de Marinha e supostas cessões e registros ilegais de terras da União a particulares, pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), no interior da Estação Ecológica de Tamoios'.
Um dos alvos foi o senador Ney Suassuna (PMDB/PB), que se diz dono da Ilha Imboassica desde 1994 - ele recebera um registro em nome da Construtora Ferraz Suassuna. O atual gerente regional da secretaria, Paulo Simões, que participa do processo de regularização fundiária das ilhas junto com o Ibama e o MPF, afirmou, porém, que o registro foi cancelado em 2002. 'Ele (Suassuna) não tem direito a nada, não reconheço inscrição no patrimônio. A ilha compõe a estação ecológica e quem vai ficar com o domínio é o Ibama', declarou Simões.
Hoje, há uma casa simples de madeira no topo da ilha, escondida entre as árvores. Um morador considerado posseiro já foi autuado pelo órgão ambiental. 'Em tese, é uma das ilhas em que a gente não tem problema. Mas pretensos donos podem ter certidões em cartórios', declarou a chefe da estação ecológica, Sylvia Chada.
Suassuna afirmou que a ilha foi comprada de 'moradores que estavam lá há mais de cem anos'. Diz que ainda pretende criar uma 'reserva privada' no local. 'A ilha é habitada e tem titulação, eles não olharam a documentação.' O senador se declarou defensor da ilha e acusou o Ibama de não ter feito nada quando invasores a ocuparam. Ele acusou 'um argentino e um italiano', sem citar nomes, de serem os responsáveis por invasões na região. 'Eles vivem disso. A estratégia é botar uns caras para plantar feijão e milho e depois vender a ilha. Entraram na minha e nós expulsamos, ninguém do Ibama se mexeu.'
Suassuna disse que a preocupação do Ibama é 'fictícia'. 'Não vou abrir mão do direito de propriedade. Se for para a Justiça eu ganho, mas não quero briga, nosso objetivo é o mesmo.'
'Não sou dono de nada, sou o guardião da ilha'
José Carlos Freire, o Cacá, de 55 anos, chamou a filha para sentar ao lado dele na rede e começou a descrever a vida na Ilha do Catimbau com Bebel, de 2 anos, Thomaz, “o Robinson Crusoé da Baía de Paraty”, de 8, e a mulher, a paisagista holandesa Maria Irene “Mimy”, de 38. A conversa começou na varanda da pequena casa de madeira que ele construiu na ponta da ilha, quase dentro d'água, e terminou no restaurante de frutos do mar instalado entre duas pedras arredondadas, ligadas por cobertura de palha.
Cacá queria conversar. Disse que gosta de receber pessoas e não parecia interessado na tentativa de retomada da ilha pela União. Ele elogiou a chefe da Estação Ecológica de Tamoios, Sylvia Chada, por tratar de “forma democrática” a questão. Mas avisou: “Eles (o Ibama, o Ministério Público e a Secretaria de Patrimônio) terão de provar que têm mais direito do que eu”. Segundo ele, a decisão não pode ser tomada “numa sala de Brasília com ar-condicionado”.
“Quando vieram me autuar, foi constrangedor. Gastei com advogados o que poderia ter investido na educação dos meus filhos”, afirma ele, que freqüenta a ilha há 20 anos, período em que houve algumas invasões, antes da inauguração do restaurante, especializado em grelhados - tudo comprado de pescadores. Diz que recuperou o Catimbau “no grito”. E o Ibama reconhece que ele é um dos poucos que deverão ter indenização. “Eu não sou dono de nada, sou o guardião da ilha.”
(Por Felipe Werneck, O Estado de S. Paulo, 04/12/2006)
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