As 750 organizações que formam a Articulação do Semi-Árido (ASA) firmaram posição contra a decisão do governo federal de levar à frente o projeto de transposição de águas do rio São Francisco. Essas entidades consideram que a obra não favorece o modelo de desenvolvimento do semi-árido defendido por elas, o qual se baseia na agricultura familiar e no convívio com as condições naturais do semi-árido e do seu aproveitamento sustentável. A posição foi tomada durante o sexto encontro bianual (VI Enconasa) da ASA, que aconteceu entre 21 e 24 de novembro, no Crato (CE).
“Este projeto se coloca dentro das fracassadas políticas públicas convencionais, que se orientam para a construção de grandes obras, voltadas para armazenar e transportar enormes volumes de água. Esta política, além disso, se baseia em um modelo que prioriza o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, apontando para ações de privatização e comercialização da água”, critica a
carta-política da ASA, divulgada no último dia do Enconasa.
As entidades são contra o projeto de transposição por inúmeros motivos. O principal, deles, segundo a ASA, é o fato de estarem certas de que a obra não conseguirá levar água para quem realmente precisa. “A obra vai continuar concentrando a água e intensificando padrões de uso altamente excludentes. A demanda populacional difusa e diversificada da grande maioria dos 2 milhões de famílias agricultoras do semi-árido continuará fora desse tipo de projeto”, afirma o coordenador executivo da ASA, Luciano Marçal Silveira. Segundo Regina Lúcia Dias, que integra a Frente Cearense por uma Nova Cultura das Águas e contra a Transposição do São Francisco, essa população está dispersa por todo o semi-árido e o eixo das águas da transposição não a alcançariam.
Para o coordenador executivo da ASA Brasil, a obra não conseguiria sanar o problema social e econômico a que boa parte da população do semi-árido está submetida. “Grande parcela do processo de modernização foi assentada numa lógica de grandes perímetros irrigados e de uso intensivo e de mercado da água. Esse padrão de desenvolvimento é responsável pelo processo de exclusão social, de degradação ambiental e do processo de mercantilização da terra e da água. E o projeto de transposição não traz nada de novo, ao contrário, ele aprofunda um modelo historicamente implementado na região”, analisa Silveira.
O debate das entidades e o protesto da população do semi-árido contra a transposição gira em torno do destino real das águas do rio. “O Comitê de Bacias do São Francisco, que é quem poderia outorgar o projeto, concordou com a transposição se fosse com a finalidade da dessedentação humana e não o uso das águas para o agronegócio e para as grandes empreiteiras. Mas a transposição é, especificamente, para a implementação de grandes projetos na área da Paraíba, do Rio Grande do Norte e do Ceará. Por isso, ele afeta a nossa proposta de desenvolvimento para o semi-árido”, afirma Pereira. Ela aponta o complexo siderúrgico do Pecém, a carcinicultura e projetos de irrigação são os principais beneficiários. “Todos esses empreendimentos não vão trazer uma distribuição de renda, mas sim uma concentração ainda maior. Em que momento isso fica socializado com a população?”, questiona Dias.
“A transposição não serve para a realidade do semi-árido. O problema da região não é a falta de água, mas sim a sua má distribuição espacial e temporal. No Nordeste, tem água, e ninguém precisa mexer com o Velho Chico, porque cada Estado tem os seus recursos hídricos que precisam ser manejados”, diz Lourival Almeida Aguiar, do Centro de Pesquisa e Assessoria Esplar, do Ceará. Todos os Estados brasileiros possuem rios, no caso do Nordeste, são freqüentes os subterrâneos. “O problema é a distribuição e o gerenciamento da água. O Nordeste brasileiro precisa de reforma agrária e reforma hídrica. Todos os estados têm água para manter a sua população. Aquele que tem menos água disponível por pessoa é o Pernambuco, e mesmo assim, ele tem 1,3 mil metros cúbicos por ano de água por pessoa e, segundo a ONU, o necessário é mil metros cúbicos”, reitera Pereira.
Condições do Velho Chico
Atualmente, a bacia do rio São Francisco banha cinco Estados brasileiros – Minas Gerais, Bahia, Alagoas, Sergipe e Pernambuco - e, ao longo do seu curso, muitos pontos estão degradados e poluídos. De acordo com a diretora da CPT-BA, a água do São Francisco não consegue nem mesmo suprir as necessidades das populações que vivem nas proximidades do rio. “Devido à degradação do rio, à falta de estrutura e à ausência de políticas públicas que distribuam melhor essa água dentro dos estados da bacia, o rio não está conseguindo alcançar as pessoas”, afirma. Segundo ela, a obra de transposição não mudaria essa situação, uma vez que não há enfoque no gerenciamento de água dessa região. “Se quiser democratizar realmente a água do São Francisco, isso deveria ser feito dentro da bacia e não fora dela”, contrapõe Pereira.
Para Lourival Aguiar, da Esplar, um dos pontos cruciais para a distribuição dessa água e o atendimento da demanda humana é a revitalização do Velho Chico. “A revitalização só pode ser feita com a visão de um projeto de desenvolvimento para o semi-árido e, a partir, dessa ótica é que se pode avaliar como o processo deve ser feito. A revitalização tem que ser pensada dentro de um projeto de desenvolvimento sustentável, tanto do ponto de vista ambiental, como o da inclusão social”, analisa. “Mas hoje, o mesmo governo que incentiva a despoluição do rio é o que adota um modelo de desenvolvimento que financia também as empresas que o estão poluindo. É um contra-senso”.
De acordo com Pereira, o processo de revitalização é um conjunto de políticas a ser implementado que não devem ser apenas pontuais. “A implementação real da revitalização não é só criar esgotos na cidade, plantar mata ciliar ou desassorear o rio. Inclui, também, a mudança de modelo agrícola das suas margens”.
Desenvolvimento
“A transposição do São Francisco e a sua revitalização não são um problema do semi-árido, é um problema do país. Todos os desenvolvimentos regionais são parte de um projeto de desenvolvimento nacional”, afirma Lourival Aguiar.
Para Luciano Silveira, coordenador executivo da Asa Brasil, a transposição não tem a ver com o tipo de desenvolvimento proposto pela ASA. “Ele vai na contra-corrente de todo o projeto que se está construindo por ser a expressão do agronegócio, que está ganhando força no semi-árido. A transposição vem mascarada e em nome da salvação da grande população do semi-árida”.
“É preciso reverter o quadro de concentração de políticas de recursos hídricos centrado numa lógica de concentração da oferta de água em grandes obras e promover uma outra dinâmica centrada na construção de uma malha hídrica dispersa que atenda efetivamente o acesso às comunidades. Isso é uma política estruturante de um novo padrão. O armazenamento da água que cai no semi-árido por meio de cisternas é um exemplo. O nosso semi-árido é um dos mais chuvosos do mundo e tem um potencial enorme de armazenamento desperdiçado, por isso é preciso investir nisso”, propõe Silveira.
(Por Natália Suzuki,
Agência Carta Maior, 04/12/2006)