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patentes propriedade intelectual
2006-12-01
Tramita atualmente na Câmara dos Deputados uma iniciativa legislativa especialmente perigosa para a pesquisa científica e a soberania sobre a biodiversidade brasileira: o projeto de Lei n º 4.961/05, de autoria do deputado Mendes Thame (PSDB-SP), que altera a Lei de Propriedade Industrial – LPI (Lei n º 9.279/96) - para permitir o patenteamento de substâncias ou materiais extraídos, obtidos ou isolados de seres vivos.

O projeto, que atualmente se encontra na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, recebeu inicialmente parecer desfavorável do relator, deputado Jorge Pinheiro (PL-DF). Ele argumentou que o projeto dificultará a pesquisa científica no país, já que o acesso ao material genético passaria a ser controlado pelo detentor da patente, na maioria dos casos corporações privadas estrangeiras. O parecer questiona também a possibilidade de patenteamento de descobertas em que não há qualquer atividade inventiva do homem, distorcendo assim o princípio básico do sistema de patentes.

Em abril de 2006, no entanto, parecer do deputado Hamilton Casara (PSDB-RO) questionou o relator, apresentando posição favorável ao projeto, sob o argumento de sua importância para o desenvolvimento da indústria biotecnológica farmacêutica. Curiosamente, em 22 de novembro último, novo parecer do relator Jorge Pinheiro foi apresentado, dessa vez favorável ao projeto. A mudança no entendimento do relator, no entanto, é contraditória com a própria fundamentação de seu parecer, onde simplesmente foi enxertada a fundamentação do parecer favorável do deputado Casara. A contradição de fundamentos em um mesmo parecer indica a pressão exercida sobre o relator para mudar sua posição. O PL nº 4.961/05 está sujeito a apreciação conclusiva por quatro comissões da Câmara, o que significa que não precisa se sujeitar a votação no Plenário para sua aprovação.

O PL como ferramenta de “bioespeculação” por corporações transnacionais
O PL interessa apenas a indústrias farmacêuticas transnacionais que têm interesse em se apropriar de moléculas e genes da biodiversidade brasileira através do sistema de patentes, regulado pela Lei de Propriedade Industrial, que ora se pretende alterar. Assim fazendo, poderá, na prática, impedir ou cobrar pelo acesso ao material natural, dificultando tanto o acesso para pesquisa e desenvolvimento como para benefício da sociedade como um todo, incluindo pequenos e grandes produtores agrícolas, consumidores, comunidades locais e indígenas, que dependem do acesso a recursos naturais no país.

Em estudo feito pelo ISA recentemente sobre o banco de patentes do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), órgão do Ministério do Desenvolvimento e Indústria responsável pela gestão do sistema de patentes no Brasil, quase 10% dos pedidos amostrados recaem sobre genes ou moléculas naturais, ainda que essa possibilidade seja proibida pela atual LPI.

Esses pedidos depositados nada mais são do que iniciativas especulativas baseadas na expectativa do advento das mudanças propostas precisamente neste PL. Uma vez concretizada essa expectativa, aplicar-se-á a legislação aos pedidos em trâmite, e tais pedidos podem vir a ter prioridade para exame, representando verdadeira reserva de mercado diante de uma situação futura e incerta. Vale lembrar que a maioria dos pedidos existentes corresponde a patentes já existentes detidas por corporações estrangeiras em outros países. Uma vez aprovado o PL, tais patentes passariam a valer internamente no Brasil, ampliando o mercado dessas corporações, ao invés de estimular o empresariado nacional, como sugere o objetivo do PL. Trata-se do loteamento prévio do material genético brasileiro, aguardando a aprovação deste PL.

O volume de pedidos dessa natureza indica uma pressão surda sobre o Legislativo para a aprovação do PL, em detrimento da pesquisa científica a quem o PL pretende beneficiar, na medida em que instituições de pesquisa serão obrigadas a pagar royalties para se utilizarem do material genético sobre o qual passaria a valer a patente e do qual depende a pesquisa básica.

Um estudo do Centro Nacional de Pesquisa das Academias Nacionais, nos EUA, mostra que o sistema de patentes passou por uma distorção tamanha que atualmente patentes dessa natureza limitam o acesso público a idéias e técnicas essenciais para a pesquisa básica, representando um impedimento à produção científica e à inovação tecnológica. Ou seja, no país onde surgiu a possibilidade de patenteamento de moléculas naturais, instituições de pesquisa já denunciam seus efeitos danosos sobre a política de ciência e tecnologia.

Acordo TRIPS fundamenta PL, mas é contrário aos interesses nacionais
O acordo TRIPS (Tratado sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio) sobre propriedade intelectual ligada ao comércio, adotado na Organização Mundial de Comércio (OMC), foi concebido em um contexto de liberalização econômica em que regras iguais de comércio foram impostas a países muito desiguais econômica, social e ambientalmente. Países desenvolvidos como EUA, Japão e integrantes da União Européia (UE) vêm pressionando há décadas países em desenvolvimento, especialmente aqueles que representam potenciais mercados, como Brasil, Índia, China, México, a “harmonizar” suas legislações nacionais a padrões internacionais por eles impostos.

O mesmo aconteceu no campo da propriedade intelectual. A antiga Lei nº 5.772/71, criticada pelo voto favorável ao PL de autoria do deputado Hamilton Casara, continha regras de propriedade industrial concebidas a partir das prioridades e interesses nacionais, e vedava a possibilidade de patenteamento de remédios e processos de produção de remédios. A medida visava garantir preços acessíveis aos usuários do sistema de saúde, beneficiando a sociedade brasileira.

Entretanto, a Lei de Propriedade Industrial (LPI), que veio em resposta à adesão do Brasil ao TRIPS, passou a permitir o patenteamento de medicamentos e processos de produção. Resultado: medicamentos em mãos de corporações transnacionais, que se servem de recursos genéticos brasileiros para o desenvolvimento de remédios depois vendidos aqui a preços exorbitantes, impedindo o acesso da população à saúde.

Mais amplamente, a adoção do TRIPS significa uma intervenção na soberania legislativa de países em desenvolvimento, que se vêem obrigados a adotar leis desinteressantes e danosas a seus povos, causando impactos como aumento de pobreza, marginalização social e concentração econômica e corporativa. Os beneficiários dessa concentração – as corporações biotecnológicas, neste caso - são aqueles que defendem a adoção, aqui no Brasil, de “princípios legislativos adotados em países industrializados”, como defende o deputado Hamilton Casara, favorável ao PL, pois é lá onde criam as leis que lhes interessam.

O Brasil vem defendendo justamente o contrário na OMC
A partir de uma decisão da Suprema Corte norte-americana de 1980, que reconheceu pela primeira vez uma patente sobre um organismo vivo, a idéia de reconhecer propriedade privada à vida passou a ser adotada por países desenvolvidos para estendê-la a genes, moléculas, células, organismos inteiros, até de origem humana. Para submeter a esse novo entendimento o sistema de patentes, criado para proteger invenções humanas sobre máquinas e processos, foi preciso criar a ficção jurídica de que materiais biológicos existentes na natureza podem ser considerados uma “invenção”, desde que estejam sob uma forma “purificada” ou “isolada”. É exatamente essa tese que passou a ser admitida pelo acordo TRIPS e que o PL pretende cristalizar, em detrimento do interesse nacional.

No entanto, o TRIPS, como qualquer resultado de árdua negociação, deixou flexibilidades importantes a países em desenvolvimento, salvaguardando parte de suas soberanias legislativas. Países podem optar por não permitir o patenteamento de plantas e animais, assim como qualquer substância ou material genético em estado natural, considerando-os como mera descoberta, sem passo inventivo ou inovação. Essa foi a opção do Brasil, em sua Lei de Propriedade Industrial, assim como a opção de dezenas de outros países em desenvolvimento, por entenderem que é preciso impor limites à possibilidade de privatização de coisas que devem permanecer públicas, em nome da saúde, meio ambiente, alimentação e bem-estar social de seus povos.

Em nível internacional, o Brasil vem navegando em sentido contrário: capitaneia um movimento, junto com o grupo de países Megadiversos e o Grupo Africano, pela flexibilização das regras de patentes sobre medicamentos, com sucesso, na própria OMC, e lidera a chamada Agenda de Desenvolvimento na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), destinada a questionar as distorções dos critérios de patenteabilidade dos sistemas de patentes – incluindo precisamente o critério proposto por este PL, que considera a mera descoberta ou isolamento de uma substância natural como invenção passível de patenteamento.

Isolar moléculas ou substâncias não as torna invenção humana
O parecer favorável ao PL, de autoria do Deputado Hamilton Casara, argumenta que “se algo é descoberto, terá sido descoberto na condição em que se encontra; para vir a apresentar-se ou ser isolado, houve alguma intervenção humana na natureza, portanto, invenção”.

Uma analogia com o comportamento da água pode ajudar a clarificar o “jogo de palavras” que tenta justificar essa tese. A água pode se alterar de seu estado natural líquido para gasoso, quando aquecida, ou para sólido, quando resfriada. Tanto para aquecer como para resfriar a água utilizamo-nos de intervenção humana. Pode ser que essa intervenção humana represente uma invenção, um processo criativo novo e útil para alterar o estado da água; isso estaria sujeito a patentes. Mas podemos afirmar que a água é natural quando líquida e uma invenção quando gasosa ou sólida, só porque se comporta de forma diferente sob intervenção humana?

O mesmo ocorre com as moléculas e substâncias naturais: pode ser que os métodos para isolá-las de seu meio natural sejam patenteáveis, por serem processos inventivos, mas admitir que a própria molécula se torne propriedade privada pelo simples fato de estar em outra situação não é possível. Desse simples raciocínio evidencia-se que a tentativa de privatizar seres vivos através de patentes foge ao bom senso e atende aos interesses daqueles que lucram às custas da biodiversidade brasileira.

PL fere Constituição ao permitir a privatização de patrimônio de uso comum
A Constituição Federal de 1988 adotou normas de vanguarda para a proteção do patrimônio ambiental brasileiro. Entre elas, definiu o meio ambiente, incluindo também o patrimônio genético brasileiro, como bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial, mas cada um pode e deve promover sua defesa, que beneficia a toda a coletividade (art. 225). Como pode um PL permitir a privatização, através de patentes, de componentes do patrimônio genético brasileiro cujo dever de proteção repousa sobre a sociedade, o Estado e o Congresso Nacional? Permitir o patenteamento de moléculas naturais isoladas, como quer o PL, significa permitir a privatização de bem de uso comum do povo, o que é inadmissível.
(Por Fernando Mathias, Instituto Socioambiental, 29/11/2006)

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