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2006-11-30
A insistência de alguns setores do governo, do empresariado e da mídia em atribuir à legislação ambiental, em especial ao licenciamento, os limitantes para o desenvolvimento do país encobre o verdadeiro problema. Não há um projeto de desenvolvimento que incorpore os atributos necessários a merecer o adjetivo sustentável. Nesta matéria especial sobre desmatamento do Instituto Socioambiental (ISA), é analisada a relação entre infra-estrutura e desmatamento.

O que o governo federal tem apresentado como objeto do desenvolvimento são as obras de infra-estrutura. Não como meio, mas como fim em si mesmo. As obras geram empregos, aquecem a economia, mas não garantem desenvolvimento. Obras de infra-estrutura são elementos, mas não podem ser o objetivo final. E para que possam servir de vetores de desenvolvimento sustentável do país, tais obras devem incorporar, principalmente, mecanismos, processos e procedimentos que assegurem o mínimo impacto socioambiental de sua implementação e operação.

Projetos de infra-estrutura como hidrelétricas, estradas, pontes e hidrovias têm efeitos diretos e indiretos sobre os ecossistemas. É exatamente para avaliar estes efeitos e buscar minimizá-los ou, eventualmente, compensá-los, que a legislação ambiental institui a obrigatoriedade de Estudos de Impacto Ambiental (EIA) para empreendimentos potencialmente danosos ao meio ambiente. Estes estudos, estabelecidos pela Lei da Política Nacional de Meio Ambiente (Lei nº 6.938 de 31/08/81) e regulamentados pelas Resoluções 001/86 e 237/97 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), são obrigatórios e fazem parte do processo de licenciamento ambiental dos empreendimentos.

O licenciamento ambiental é um procedimento eficiente quando a implementação da obra é de interesse de todos e quando há um projeto bem construído. Nesses casos, o EIA, executado por equipe multidisciplinar, analisa as conseqüências ambientais da implantação do projeto, incluindo o diagnóstico ambiental da área, a descrição da ação proposta e suas alternativas, e a identificação, análise e previsão dos impactos significativos.

Quando o processo de licenciamento é feito em cima de um projeto mal- estruturado e cuja relevância não é reconhecida pela comunidade local diretamente afetada, acaba se tornando o espaço onde os conflitos se evidenciam. Isto está diretamente relacionado ao fato de que é apenas no licenciamento ambiental que as comunidades afetadas têm espaço para participar do processo de discussão da obra. Isso tem sido historicamente acirrado, em parte, pela irresponsabilidade dos empreendedores, que apresentam projetos forjados em quatro paredes, nas capitais do país, projetos frágeis, e vêem o licenciamento apenas como obrigatoriedade, utilizando-se de artifícios para camuflar os prováveis impactos das iniciativas.

Diagnóstico recente elaborado pelo Ibama e divulgado pelo MMA comprova que a assertiva “leis ambientais travam o desenvolvimento nacional” está completamente equivocada. No que se refere aos empreendimentos de infra-estrutura energética, o Ministério de Meio Ambiente afirma: “Entre março de 2003 e novembro de 2006, o Ibama concedeu licença para 21 hidrelétricas, o que representa um total de 4.882,2 megawatts (MW). Dessas, 17 receberam licença para início das obras (LI), sendo que oito já estão em operação (LO), e quatro receberam a licença prévia (LP). Com a LP, os empreendimentos estão aptos a participar dos leilões de energia".

O que ocorre é que vários desses empreendimentos não estão sendo implementados porque medidas que cabem aos empreendedores não foram adotadas até então tais como a solicitação de licença de instalação (após emissão de licença prévia) ou a entrega de documentos e análises complementares.

Em relação às obras rodoviárias, merece destaque a BR-163, Cuiabá-Santarém, objeto de ampla negociação para formulação do Plano BR-163 Sustentável, proposta de novo paradigma no tratamento de obras de infra-estrutura para Amazônia. A BR-163 já tem a licença que garante a viabilidade da obra para 840 quilômetros. Entretanto, como afirma o MMA: “O empreendedor requereu, até o momento, a autorização para o início das obras para apenas 87 quilômetros. Foram licenciadas a recuperação do trecho de 50 quilômetros, conhecido como Cintura Fina, na Serra do Cachimbo, e a instalação de cinco pontes, mas as obras ainda não se iniciaram. Também foi autorizado o início das obras para 20 quilômetros no trecho Santarém-Rurópolis. As obras começaram em outubro.”

A BR-163 não foi pavimentada ainda por falta de recursos orçamentários. A expectativa era realizar a obra por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP), mas, na ausência de investidores privados interessados, o governo anunciou na semana passada, que vai bancar o empreendimento.

Outra obra de infra-estrutura licenciada pelo Ibama e que sofre do mesmo problema são mil quilômetros da BR-230, a Transamazônica. A empresa responsável requereu a licença para iniciar as obras num trecho de apenas 90 quilômetros, entre os municípios de Medicilância e Altamira, no Pará. Além disso, o MMA informa que o governo do Estado de Mato Grosso foi autuado pelo Ibama por realizar obras sem licença na BR-158, entre os quilômetros 270 e 412,9. O Termo de Referência para os estudos ambientais foi emitido em setembro de 2005, mas ainda não foram apresentados.

Abertura de estradas e desmatamento
Historicamente, a implantação de grandes obras de infra-estrutura – a abertura de rodovias, em particular – tem sido a grande indutora do desmatamento na Amazônia. A pavimentação das rodovias Belém-Brasília e Cuiabá-Porto Velho, por exemplo, conformou o que hoje se chama de “arco do desmatamento”. Historicamente, 75% dos desmatamentos na Amazônia ocorreram dentro de uma faixa de 100 quilômetros de largura ao longo das rodovias pavimentadas . Isso se deve ao fato de que os impactos não se restringem à área do traçado da estrada.

Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a pavimentação das estradas amplia os riscos de incêndios que gera o empobrecimento da floresta. Uma vez queimadas, até 40% das árvores adultas de uma floresta podem morrer, e a cada vez que a floresta pega fogo, fica mais vulnerável a novas queimadas. Em algumas regiões, com a ocupação ao longo das estradas e atividades de pecuária extensiva e agricultura de corte e queima, os incêndios florestais acidentais se proliferam. O fogo invade a floresta e o cerrado, causando danos e tornando-os mais suscetíveis a novos incêndios.

Como o clima da região é diretamente afetado pelas queimadas, e a tendência é de agravamento do quadro, a alteração os sistemas climáticos também é um possível impacto da pavimentação de rodovias.

O estudo do Ipam calculou ainda que o desmatamento adicional associado a todas as rodovias planejadas em 2.000 seria de 120 mil a 270 mil quilônetros quadrados ao longo de 20 ou 30 anos (400 mil a 1,35 milhão de ha/ano), levando à emissão de 6 a 11 bilhões de toneladas de carbono (200 a 550 milhões de toneladas/ano) na atmosfera. Outro estudo, realizado em 2001 por equipe do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), coordenado por Willian Laurance, contabilizou outros projetos de infra-estrutura existentes e planejados como estradas de terra e outros tipos (hidrelétricas, linhas de transmissão, gasodutos, ferrovias etc.), que também exigem estradas e induzem desmatamentos. Os cenários indicaram que a infra-estrutura planejada aumentaria entre 269 mil e 506 mil hectares por ano a área desmatada na Amazônia brasileira.

Antes da pavimentação, grilagem se acirra
Os efeitos podem ser identificados antes mesmo da concretização das obras. O anúncio da priorização da BR-163 pelo governo Lula provocou uma ampliação do processo de grilagem na região, promovendo uma explosão do desmatamento ao longo da estrada e na chamada Terra do Meio, antes mesmo da sua prometida pavimentação. O estrago, sem a obra, já é do tamanho do que previa o Ipam num cenário de ausência de governabilidade, dez anos após a implantação da obra. E isso, mesmo com todo o esforço para instituição de um Plano BR-163 Sustentável por parte do governo e da sociedade civil.

A capacidade de grandes obras de infra-estrutura, principalmente rodovias, de desencadear processos violentos de desmatamento indiscriminado e grilagem de terras é um consenso, e outros impactos de conseqüências ainda não calculadas também podem ocorrer.

As estradas abrem fluxos migratórios que atingem regiões mais distantes. Paulo Maurício de Lima, engenheiro florestal do Inpa, responsável por um estudo, ainda em andamento, sobre a reconstrução da BR-319, comenta que as cidades podem receber novos contingentes populacionais sem ter serviços e infra-estrutura adequados. “Já existe uma grande pressão em Humaitá. É um processo dinâmico. As pessoas ocupam uma área, depois vendem para proprietários maiores e saem à procura de novas áreas. Enquanto houver terras disponíveis, haverá este movimento”.

O temor de pesquisadores e entidades socioambientalistas de que a restauração da rodovia BR-319 possa impulsionar o desmatamento numa região ainda bem preservada da Amazônia está baseado na experiência recente da BR-163.

O caso da BR-319
A BR-319 parte da capital de Rondônia, uma das áreas de maior pressão pela expansão da fronteira agrícola, e corta a Amazônia ocidental na direção sudoeste-nordeste. As duas BRs (319 e 163) poderiam significar, assim, dois rasgos na maior floresta tropical contínua do mundo, partindo perpendicularmente do chamado “Arco do Desmatamento”. “Não há quem possa afirmar ao certo o que representará a interrupção de fluxos genéticos, ou qual poderá ser o impacto sobre o regime de chuvas, mas é provável que as conseqüências se façam sentir também em outras partes da região”, lembra Márcio Santilli, do ISA, em artigo publicado ainda em 2004, sobre a manutenção de índices alarmantes de desmatamento na Amazônia e a fragmentação de seu bioma.

Análise apresentada pelo ISA durante a 4ª reunião técnico-científica de análise dos dados de desmatamento na Amazônia, promovida pelo Ministério de Meio Ambiente e pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), demonstra a situação dos desmatamentos até agosto de 2005 nas margens (50 quilômetros de cada lado) de cinco estradas federais na Amazônia.

A BR-158 é a estrada mais crítica pelo fato da taxa média de desmatamento nos últimos cinco anos ter sido bastante superior à média nas quatro outras BRs estudadas, mas também porque a taxa (percentual médio anual desmatado entre 2000 e 2005 em relação ao remanescente de 2000) foi 250% maior do que a média de desmatamento para Amazônia (fora de terras indígenas e unidades de conservação, que foi de 1,12% ao ano).

O remanescente florestal no entorno da BR-158 também foi o mais comprometido na comparação entre as cinco BRs analisadas na tabela abaixo. Apenas 35,6% da vegetação no entorno da BR-158 está mantida (até agosto de 2005). Em toda Amazônia, fora de unidades de conservação e terras Indígenas, o percentual remanescente é de 64,6%. A BR-158 ainda permanece no topo do ranking ao considerarmos que das cinco estradas analisadas foi a única que apresentou taxa expressiva de aumento dos desmatamentos entre 2003/04 e 2004/05, com acréscimo de 16% da taxa de desmatamento.

Das cinco estradas analisadas, a que sofreu menor impacto até agosto de 2005 foi a BR-319 (Porto Velho – Manaus). Nela, a velocidade média anual do desmatamento nos últimos cinco anos foi de 0,29% e o remanescente em agosto de 2005 era de 90,2%, com um pequeno viés de aumento dos desmatamentos em 0,4% (comparando 2003/04 com 2004/05).

É preciso atualizar este cálculo para 2006 já que tanto o anúncio de seu asfaltamento em época eleitoral, quanto a limitação provisória implementada pelo governo federal na região podem ter exercido influência nessa taxa de desmatamento. Nas demais BRs (317, 163 e 364) houve redução na taxa de desmatamento entre 2003/04 e 2004/05.

O desmatamento não é o único efeito adverso da abertura e pavimentação de estradas sobre o meio ambiente. Durante a última reunião da Convenção das Partes Sobre Diversidade Biológica (COP-8), o epidemiologista Ulisses Confalonieri, professor da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Osvaldo Curz (Fiocruz), afirmou também serem reconhecidos os efeitos na saúde humana provocados por grandes obras de infra-estrutura como abertura de estradas, grandes desmatamentos e construção de barragens. “As relações entre desflorestamento e proliferação de doenças são muito conhecidas desde o início do século passado, com a abertura da ferrovia Noroeste, em São Paulo. A derrubada facilitou o contato de pessoas com doenças que estavam abrigadas no interior das matas”.

Reação do governo
Mais recentemente, o governo criou um novo instrumento de planejamento para a destinação de áreas no entorno de obra de infra-estrutura: a Área de Limitação Administrativa Provisória (ALAP). Criada por Medida Provisória em 18 de fevereiro de 2005, a ALAP é um instrumento legal que autoriza o governo a paralisar todas as atividades econômicas que causem novos desmatamentos ou sejam potencialmente causadoras de significativa degradação ambiental em uma área determinada.

A publicação da MP fez parte do chamado “Pacote Verde” apresentado pelo governo federal para tentar conter a violência, a grilagem de terras e o desmatamento em toda a Amazônia, em resposta ao assassinato da missionária Doroty Stang, no dia 12 de fevereiro, em Anapu (PA).

Embora o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, lançado em 15 de março de 2004 pelo governo federal, tenha incorporado as grandes obras de infra-estrutura em seu primeiro componente, introduzindo procedimentos preventivos e sinalizando a revisão do portfólio do atual Plano Plurianual (PPA), pouco se avançou na sua implementação. A parte de análise do Plano tratou o tema como crucial para o conjunto das demais ações, mas o componente não apenas deixou de ser implementado, como foi formalmente removido, de acordo com o relatório divulgado pela Casa Civil, em maio de 2005.

Recentemente, organizações não-governamentais reforçaram a cobrança para que o governo apresente uma avaliação do Plano que incorpore informações sobre os componentes não desenvolvidos. Com o discurso do Presidente Lula na última semana dizendo que precisava destravar a questão dos índios, dos quilombolas, ambientalistas, Ministério Público e Tribunal de Contas de União, tudo indica que o governo federal, a despeito do reconhecido esforço feito pelo Ministério de Meio Ambiente, resolveu escancarar depois da reeleição sua falta de juízo socioambiental.

A evolução em quatro fases do tratamento desse tema pelo governo federal nos dá um placar dos desafios que estão pela frente. Na Fase 1 (2003), o governo reconhece que obras de infra-estrutura na Amazônia têm impacto direto nos desmatamentos e elabora um capítulo especial no Plano para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia inteiramente dedicado às medidas preventivas e mitigadoras das obras prioritárias.

Na Fase 2 (2004), o governo ignora o que propôs no plano em relação ao binômio desmatamento-infra-estrutura, reedita o plano sem dar destaque à supressão de um capítulo inteiro e afirma que tal tema será tratado no incerto Plano Amazônia Sustentável; em contrapartida investe na concepção de uma proposta paradigmática de obra de infra-estrutura para parte da região amazônica, o Plano BR-163 Sustentável.

Na Fase 3 (2005/06), o anúncio de asfaltamento da BR-163, feito em 2003, já tem seus efeitos nas elevadas taxas de desmatamento na região; o ministro dos Transportes, em campanha para o Senado no Amazonas, anuncia o asfaltamento da BR-319, sem qualquer discussão prévia, planejamento ou avaliação de impacto; o governo reage com a aprovação da MP nº 239/05 instituindo a figura da Limitação Administrativa Provisória para fins de criação de Unidades de Conservação (UCs) e cria um volume expressivo de UCs na região.

Na Fase 4 (2006 “pós-reeleição”), Lula se compromete com o crescimento acima de 5% do PIB sem ter nenhum plano consistente ao seu alcance; adota o discurso da década de 1970 do desenvolvimento a qualquer custo ao acusar movimentos ambientalistas, quilombolas, índios, o Ministério Público e o Tribunal de Contas da União de serem os responsáveis pelo baixo crescimento do PIB alcançado nos últimos anos no Brasil.

A perspectiva de novos investimentos em obras de infra-estrutura para atender a expectativa de desenvolvimento anunciada pelo presidente demandará uma quinta fase desse longa metragem com a revisão do discurso vexatório de Lula, a avaliação responsável das prioridades de desenvolvimento para Amazônia, a análise consistente e integrada de impactos socioambientais dos principais projetos de infra-estrutura para a região, um processo de diálogo franco e aberto com comunidades potencialmente afetadas, e a implementação de medidas mitigadoras e compensatórias como manda a lei e a Constituição brasileira. Em síntese: “Desenvolvimento sim, de qualquer jeito não!”
(Por André Lima e Adriana Ramos, Instituto Socioambiental, 28/11/2006)

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