Com olhar treinado e passos rápidos, Ana sai da trilha voltada para turistas e se embrenha na mata da Floresta Nacional (Flona) de Ipanema. As trepadeiras que insistem em bloquear o caminho não são empecilho para a bióloga, que rapidamente começa a identificar as espécies da flora local e encontrar as primeiras novidades. 'Olha só, não é que ainda temos peroba por aqui?'
Já havia alguns dias que a equipe de biólogos liderada por Ana Cláudia Pereira de Oliveira, de 29 anos, vinha rastreando a microbacia do Ribeirão do Ferro, perto de Sorocaba (interior de São Paulo) atrás de espécies nativas. E desde o começo do trabalho, nada de peroba.
A região, que no começo do século 19 abrigou a primeira fábrica de ferro do Brasil, impressionou os naturalistas que fizeram expedições ao local pela riqueza em espécies como essa. Auguste Saint-Hilaire, Joham Baptiste von Spix e Carl Friedrich von Martius relataram especialmente a enorme quantidade não só de perobas, como também de jequitibás, cedros e outras árvores lenhosas que naquela época começavam a alimentar os altos-fornos.
Após mais de 80 anos virando carvão e outros tantos sendo desmatada para diversos outros fins (principalmente agrícolas), a floresta hoje não tem metade daquele glamour - nem tampouco da biodiversidade. Arapongas, bugios e micos-leões de cara preta não são mais vistos no local, mas a vegetação, a duras penas, tenta sobreviver.
Agora, refazendo os passos dos cientistas do século 19, pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de Sorocaba (Uniso) e do Ibama procuram o que resta de mata nativa para fornecer subsídio para o trabalho de restauração da floresta.
'Nosso levantamento florístico ainda está bem no início, mas já dá para dizer que a vegetação remanescente é muito mais pobre que a original. Impactos ao longo dos séculos alteraram muito a biodiversidade, e hoje temos encontrado apenas espécies dos estágios iniciais de sucessão, aquelas que ocupam a área logo após uma perturbação, como desmatamento ou fogo', explica Nobel Penteado de Freitas, da Uniso, que coordena o trabalho.
Com base apenas nos relatos antigos não dá para saber exatamente o quanto foi modificado, afirma Freitas. 'Mas a julgar pela entonação das frases com que os naturalistas se referiam à vegetação local (veja acima), temos a nítida sensação do impacto ambiental causado desde então', diz.
Mata em desequilíbrio
A intenção do grupo é, ao final do projeto, conseguir restaurar áreas totalmente degradadas, enriquecer as áreas com cobertura florestal e recuperar a mata ciliar. 'Ter a floresta original de novo é ilusão, hoje há uma pressão humana ao redor muito grande. Aqui dentro há um assentamento de sem-terra, com quem a gente tem de lidar. A grande sacada é permitir que os processos ecológicos voltem a atuar de novo e a 'mata consiga andar com as próprias pernas', afirma o biólogo João Fernando de Almeida Benedetti.
Mas por enquanto há muito levantamento pela frente. Em caminhadas aleatórias pela microbacia, a equipe está coletando espécimes e identificando o estado geral. Não é à toa que Ana e João ficaram felizes ao encontrar o pé de peroba, mesmo ainda frágil, correndo o risco de ser derrubado por qualquer animal que passar afoito.
No processo de sucessão ecológica, quando uma área é degradada e começa a se recuperar, as primeiras árvores que surgem são as chamadas pioneiras, que vivem cerca de 40 anos. Em seguida vêm as secundárias e só depois as climáceas, ou tardias, como as perobas, que vão durar centenas de anos. O fato de ter uma ali é um bom sinal. Um pouco antes de encontrar o pezinho, ainda seguindo a trilha, Ana e João lamentavam o desequilíbrio da região provocado por ações humanas. 'A floresta está vindo de uma regeneração, está cheia de trepadeira. Quando uma área pega fogo essa planta normalmente sobrevive, cresce com mais força e não deixa o banco de sementes surgir. Aqui não vemos uma copa contínua, indivíduos vistosos. Não há espaço para as arbóreas. A mata não está sadia', explica Ana
Foi preciso se embrenhar no meio do mato para descobrir as plantas significativas da vegetação original que começavam a despontar. As persistentes trepadeiras permaneciam ali atrapalhando o trajeto, mas a equipe já conseguiu encontrar árvores secundárias, como os araribás, que fornecem sombra e proporcionam um desenvolvimento melhor para as árvores que nascerem posteriormente.
Antes da família real
A floresta foi explorada em maior ou menor proporção desde a chegada dos portugueses ao Brasil. Em 1589, Afonso Sardinha construiu os primeiros fornos para a produção de carvão, dos quais hoje só restam ruínas. Com a chegada da família real ao Brasil, em 1808, e a necessidade de fortalecer as defesas do País, foi criada a Real Fábrica de Ferro juntamente com uma fábrica de armas brancas para munir os soldados que seguiam para a Guerra do Paraguai. Havia até mesmo uma casa para hospedar D. Pedro I.
Hoje, restam apenas 20% do conjunto arquitetônico classificado por Saint-Hilaire como um dos mais belos do mundo do início do século 19, conta a historiadora Janette Gutierre, que assessora a Flona. 'A fábrica, para a qual foi lavrado o primeiro contrato de trabalho livre no País, iniciando a imigração de europeus, completará 200 anos em 2010. Mas sem o aspecto laborioso que tanto impressionou Spix e Martius.'
(Por Giovana Girardi, O Estado de S. Paulo, 26/11/2006)