Por Jelson Oliveira*
"O mundo do rio não é o mundo da ponte", escreveu Guimarães Rosa, cantado agora por Maria Bethânia no seu Pirata. Não é o mundo de quem olha de cima, alheio e separado. O mundo do rio é o mundo da vida e da morte do rio, em complexo e triste enredo.
Quem olha de dentro, com os olhos do próprio rio, vê logo que há pouco com que se alegrar. A situação de mais de 90% dos rios brasileiros é calamitosa. Não poderemos ensinar mais às nossas crianças que a água é inodora, incolor e insípida. A realidade não condiz mais com os livros didáticos. Insuportavelmente malcheirosas, turvas e salobras, as águas de nossos rios correm gelatinosas e pesadas, afogando peixes, expulsando gentes e arruinando a biodiversidade.
Assoreados e poluídos, a maior parte dos cursos d água não enobrece as infâncias de meninos e nem enchem mais de mitos e lendas a vida dos ribeirinhos. Do que se fala é do que se vê: o concreto da barragem, os processos erosivos, os lixos absurdos. Notícias de botos, Iaras e sacis cederam lugar às de fogões, sofás e até carcaças de carros flutuantes. Ao invés de curimbatás e tainhas, o anzol dos meninos se enrosca em pneus e botas, como os gibis previam.
Esta realidade catastrófica transformou os nossos rios em verdadeiros esgotos incessantes formados por detritos acumulados nas margens e no fundo dos rios, lixo doméstico e industrial provocado pelos efluentes clandestinos e pelas ligações irregulares de esgotos, metais pesados advindos do uso indiscriminado de agrotóxicos nas lavouras, destruição das matas ciliares, falta de áreas de proteção.
Esta situação vem se agravando devido à ausência ou deficiência nos serviços de coleta e tratamento dos resíduos sólidos e líquidos, as obras e atividades que potencializam processos erosivos, com ravinas e voçorocas, principalmente em fundos de vales, nas periferias pobres e nos meios rurais, fundos de vale transformados em depósitos de lixo, escoadouros de esgotos e locais de residências precárias, a canalização e assoreamento dos cursos d água, técnicas de agricultura ambientalmente incorretas e a expansão do agronegócio (de maneira especial, a soja e a cana-de-açúcar) que levam à morte de nascentes, desmatamento descontrolado e uso indiscriminado de agroquímicos.
Além desses problemas, entre as principais bacias hidrográficas da América do Sul, a bacia do Rio Paraná é a que sofreu maior número de represamentos para geração de energia. Existem mais de 130 barragens na bacia, considerando apenas aquelas com alturas superiores a 10 metros, que transformaram o rio Paraná e seus principais tributários (Grande, Paranaíba, Tietê, Paranapanema e Iguaçu) em uma sucessão de lagos.
Dos 809 quilômetros originais do rio, somente 230 quilômetros ainda são de água corrente. Outras inúmeras barragens estão planejadas em vários rios afluentes do Paraná, entre eles o Rio Tibagi, onde a população, os pesquisadores e as entidades (entre elas, a CPT) estão em luta contra a construção de hidrelétricas que comprometerão e agravarão ainda mais a qualidade da água e da vida nas margens desse que é o rio mais importante do Paraná em termos históricos, sociais e ambientais.
Ao nascer em Ponta Grossa, o Rio Tibagi passa por uma área onde as rochas absorvem muita água, os arenitos, responsáveis pelo grande volume de água que alimenta e corre pelo rio já nos seus primeiros 200 quilômetros. Nesta área, o Tibagi recebe grande quantidade de poluentes das cidades e de agrotóxicos das lavouras (só na cidade de Telêmaco Borba, o Rio Tibagi recebe o esgoto de mais de 60 mil habitantes e 80 milhões de litros de detritos industriais).
É justamente na altura de Telêmaco Borba que se iniciam os maiores saltos e corredeiras do Tibagi, permitindo a recuperação natural do rio. Segundo os pesquisadores, esta área é o "pulmão do rio Tibagi", onde o oxigênio do ar se mistura com a água melhorando sua qualidade. Mais do que isso, nesse trecho de 70 quilômetros está a maior reserva de florestas de toda a bacia do Tibagi. Por isso, enquanto em Telêmaco Borba não mais que 10 espécies de peixes são encontradas, em Ortigueira podemos pescar pelo menos 83 espécies, entre elas, dourados, surubis, pintados, piaparas, e outras de grande porte. Esta é a prova da grande importância das corredeiras e matas ciliares para a recuperação da fauna e da água.
Além de tudo, a recuperação natural do Tibagi nesta área permite que 1 milhão de pessoas na região de Londrina possa captar e beber de suas águas. Segundo os cientistas, se uma grande barragem for colocada na região entre Telêmaco Borba e Ortigueira, estaremos tirando os pulmões do rio Tibagi, destruindo a natureza e a água desse fabuloso rio.
Ora, este não é um caso isolado de ameaça à vida dos rios no Paraná: em nosso Estado estão planejadas 170 barragens até 2015, mesmo com todo o excedente de energia produzido no Paraná, já que 75% da energia é exportada para outros Estados. Além disso, os novos projetos estão sendo construídos por empresas privadas, muitas delas sem nenhuma experiência neste ramo e que realizam várias manobras para não cumprir as leis ambientais.
Esta é uma das faces do hidronegócio que tem transformado a água numa enorme fonte de lucros. Um exemplo do domínio do setor elétrico pelas grandes empresas estrangeiras é a empresa a Tractebel (que já é proprietária da Usina de Salto Santiago e Salto Osório no Sudoeste do Paraná). No ano de 2005 essas empresas tiveram um lucro de US$ 90 bilhões, e a maior parte deste dinheiro foi mandada para o exterior. Patrocinadas pela ignorância e pelo comodismo da maior parte da população e apoiadas em políticas nacionais entreguistas, as empresas do hidronegócio se apossam das nossas águas e se beneficiam da poluição na medida em que passam a vender água e cobrar muito caro por isso.
Num mundo de água suja, as águas minerais rotuladas com as marcas de empresas como Nestlé e Coca-cola chegam a custar R$ 6 a R$ 10 o litro em cinemas e festas daqueles que têm como pagar. Os outros, a maioria absoluta, morrerão de sede ou de doenças provindas do consumo ou contato com água poluída.
No Dia do Rio, 24 de novembro, não basta lamentar ou realizar ações paliativas. É preciso questionar o modelo de desenvolvimento baseado na indústria e no agronegócio extremamente maléficos para as águas paranaenses. Em 100 anos, o Paraná derrubou 80% de sua cobertura vegetal para dar lugar a uma agricultura de extensão que tem trazido inúmeros prejuízos para toda a sociedade. Da enorme riqueza de floresta de araucária, restam apenas 1%.
A retirada da cobertura vegetal de uma localidade aquece e torna pobre o solo, aumenta a poluição e o assoreamento dos rios, reduz a biodiversidade, altera a velocidade dos ventos, aumenta a temperatura do ar e modifica, irreversivelmente, o microclima local. Sem árvores, as aves partem; sem essas predadoras naturais, as pragas aumentam; o crescimento das pragas traz o agrotóxico; o solo pobre traz a necessidade do fertilizante; e com eles, a química dos laboratórios chega ao campo; e depois, à nossa mesa. É o ciclo da morte das águas e das pessoas.
Ora, o rio é um dos principais corredores de vida e biodiversidade, através dos peixes, das sementes que flutuam na superfície, além da cultura, das tradições e do jeito de viver do povo que vive às suas margens. Para que isso não seja história passada, uma revolução de consciências e uma mudança nas políticas de desenvolvimento precisam se efetivar.
Alterar a maneira de viver e assumir posturas de cuidado e respeito ao meio ambiente. Estudar e questionar o modelo de desenvolvimento atual, superando as iniciativas meramente paliativas e propagandistas que mais contribuem para a manutenção do sistema voraz e poluidor. Que façamos algo e que seja agora. Pra dizer com Guimarães e Bethânia o que todo mundo sabe: "Perto de muita água tudo é feliz"!
*Secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra do Paraná (CPT/PR)
(
Adital, 24/11/2006)