Empréstimo do Banco Mundial para financiar papeleira acirra os ânimos entre Argentina e Uruguai
2006-11-24
A decisão do Banco Mundial de conceder um empréstimo à firma holandesa Botnia para financiar sua fábrica de celulose no Uruguai leva os ativistas argentinos a decidirem, em questão de horas, uma interrupção do tráfego, por tempo indeterminado, no acesso a uma das três pontes que unem os dois países sobre o rio Uruguai.
A Corporação Financeira Internacional, braço do Banco Mundial encarregado de créditos para o setor privado, aprovou empréstimo de US$ 170 milhões para a Botnia. Por sua vez, a Agência Multilateral de Garantias, também ligada ao Banco, aprovou um seguro de risco político no valor de US$ 300 milhões. As decisões tomadas por estas instituições com sede em Washington abrem caminho para outras linhas de credito privadas para o projeto, severamente criticado por vizinhos argentinos da região. O Uruguai recebeu estas noticias com alívio, mas, também com “muita cautela”, disse à IPS o ministro do Turismo, Héctor Lescano.
“Não é o momento de subir no alambrado, disse, empregando uma expressão usada no futebol para descrever o entusiasmo da torcida. “A “cautela” do governo uruguaio tem o objetivo de não por mais pedras no difícil caminho de encontro que tenta abrir a missão de facilitação iniciada dias atrás por um enviado especial do rei da Espanha. As expectativas de Montevidéu de começar a resolver a controvérsia com Buenos Aires estão centradas também na próxima reunião do Presidente Tabaré Vázquez com Luiz Inácio Lula da Silva, possivelmente no dia 8 de dezembro por ocasião da Cúpula Sul-Americana na Bolívia, disse Lescano.
O governo da Argentina admitiu que as gestões especiais para travar o credito feitas em Washington por sua secretária do Meio Ambiente, Romina Picolotti, não foram satisfatórias. Mas as decisões tomadas na órbita do Banco Mundial já eram previstas desde a semana passada. Porém, desde a costa do Uruguai também se ouvem opiniões contrárias à instalação da fábrica. “Para o movimento ambientalista, este crédito vai além da construção de uma fábrica de celulose, pois, lamentavelmente, apóia com muito peso o modelo florestal imposto, seriamente prejudicial”, disse à IPS a ativista Maria Selva Ortiz.
Esta integrante da organização uruguaia Redes-Amigos da Terra considerou “nula” a intervenção da população da área em torno do projeto, participação “que tanto o Banco Mundial promoveu” como política geral de tomada de decisões. O Banco "não levou em conta nenhuma das observações fundamentadas que apresentamos” contra a fábrica e as plantações de insumos, explicou. A Redes -Amigos da Terra acusou a Botnia perante o não-governamental Tribunal Permanente dos Povos, que colocou no banco dos réus da sociedade civil em maio, em Viena, a ação das corporações multinacionais européias na América Latina.
“Existe evidência de que a concretização deste projeto finlandês no Uruguai configuraria violações dos direitos trabalhistas, ambientais, políticos e civis de acesso aos serviços básicos essenciais e à terra, além de atentar contra a soberania e a segurança alimentar”, afirmou a organização. O coordenador da Assembléia Cidadã Ambiental da cidade agentina de Gualeguaychú, Gustavo Rivollier, concordou com a advertência da Redes-Amigos da Terra, e foi mais longe, dizendo que o Banco aprovou um “crédito da morte”, que considerou “uma afronta ao seu país”.
“As pessoas estão angustiadas e salvo uma idéia superadora, creio que vamos passar o verão na estrada”, advertiu, referindo-se à decisão que seguramente será tomada pelo movimento social de Gualeguaychú, a 20 quilômetros da fábrica da Botnia, tendo ao meio o rio Uruguai. A firma holandesa já concluiu 70% das obras perto da cidade uruguaia de Fray Bentos. Os dois governos haviam jogado suas cartas fortes em Washington. A Argentina enviou Picolotti, funcionária com vínculos diretos com o movimento social de Gualeguaychú, e o, governo de Vázquez mandou seu ministro da Economia, Danilo Astori, e o secretário da Presidência, Gonzalo Fernández.
Em um comunicado o Banco Mundial explicou que o empréstimo foi concedido porque os estudos encomendados concluíram que “a fábrica vai gerar benefícios econômicos significativos para o Uruguai e não causará nenhum dano ambiental, pois vai operar segundo as normas mundiais mais elevadas e cumprirá as leis ambientais e sociais”. A instituição acrescenta que investigações “independentes deram provas concludentes de que a área local, incluída a cidade de Gualeguaychú, não sofrerá impactos adversos no meio ambiente”.
O maior investimento estrangeiro na historia do Uruguai, de US$ 1,2 bilhão em uma fábrica prevista originalmente para produzir um milhão de toneladas anuais de celulose, permitirá criar de modo direto e indireto 2.500 postos de trabalho uma vez em funcionamento, e vai gerar um valor agregado equivalente a 2% do produto interno bruto uruguaio, afirmou o Banco. Com o governo argentino de Nestor Kirchiner e os ativistas de Gualeguaychú, as organizações uruguaias Redes e Comissão Nacional de Defesa da Água e da Vida enviaram ao Banco Mundial uma carta pedindo para não conceder o empréstimo.
Nessa carta se alerta “que o modelo florestal, consolidado a partir da produção de celulose, produz impactos negativos nos recursos hídricos e, portanto, viola a Constituição Uruguaia, que na reforma de outubro de 2004 estabeleceu a prioridade do uso da água para consumo humano”. Apesar de concordarem com os princípios do cuidado ambiental e da saúde humana, os ativistas uruguaios discordam do bloqueio de vias usado pelos argentinos para protestar.
“Tira-se o debate do foco, pois não é apenas a instalação de fábricas de celulose, mas o modelo de desenvolvimento imposto, que apenas incorpora mais matérias-primas com escasso valor agregado, suplantando pradarias e comprometendo o sistema pecuário, provedor de alimentos naturais", disse Ortiz. A ativista considerou um êxito a decisão da Empresa Nacional de Celulose da Espanha (Ence) de desistir de construir sua fábrica perto da unidade da Botnia, e exortou que se insista nessa linha contra as “ameaças” da instalação dessa e de outras fábricas do setor em solo uruguaio.
É que os bloqueios voltaram na véspera na rodovia 136 da Argentina, que leva à ponte binacional, e tudo indica que será por tempo indeterminado, em uma cópia fiel do ocorrido no verão austral passado, quando as relações entre os dois países ficaram extremamente tensas. Montevidéu afirmou naquela ocasião que o bloqueio causou prejuízo de US$ 500 milhões devido à queda no número de turistas argentinos nas praias do sudeste, uma afluência tradicional por diversas vias e que significa praticamente 80% de sua recepção de turistas estrangeiros. O ministro Lescano estuda intensificar ofertas alternativas, com benefícios para os visitantes e uma ofensiva no sul do Brasil, diante do que parece uma inevitável queda no turismo argentino por via terrestre.
O chanceler uruguaio, Reinaldo Gargano, recordou em nova enviada segunda-feira ao governo argentino que a medida viola as normas do Mercosul, que os dois países integram junto com Brasil, Paraguai e Venezuela, uma decisão do tribunal de controvérsias do bloco referente ao bloqueio anterior e o disposto pelo Tribunal Internacional de Justiça, com sede em Haia. Gargano tentará novamente situar o problema dos “obstáculos à livre mobilidade de bens, serviços e pessoas pela fronteira” na agenda da reunião de chanceleres do Mercosul dia 15 de dezembro, no Brasil.
Mas o secretário de Comércio e Relações Econômicas Internacionais da chancelaria argentina, Alfredo Chiaradía, adiantou que seu país “não dará consenso” para que o assunto seja examinado. Por sua vez, o embaixador argentino no Uruguai, Hermán Patiño Meyer, admitiu que “as barreiras não ajudam a estabelecer o diálogo”, no que aposta seu país com a “facilitação” do rei Juan Carlos. O enviado do monarca espanhol, Juan Antonio Yáñez Barnuevo, foi recebido por Kirchner no final de semana passado. Em Montevidéu, encontrou-se com Gargano, que lhe disse que “o Uruguai não negocia sob pressão”.
O último atrito entre os dois países ainda não foi solucionado e diz respeito à reclamação Argentina contra a autorização dada pelo Uruguai à Botnia para que duplique o volume de água do rio que utilizará. Montevidéu diz que essa medida já estava prevista em acordos anteriores. Mas desta vez a situação no bloqueio pode ficar mais tensa do que no ano passado, diante do surgimento de mostras de intolerância de um e outro lado da fronteira, e, inclusive, entre manifestantes argentinos e turistas também argentinos prejudicados pela interrupção do tráfego nas vias, que pode afetar as três pontes sobre o rio Uruguai, como já ocorreu.
Uma situação impensável no passado entre dois países nascidos da mesma matriz histórica e que compartilham vida e obra de sua gente, como o futebol – a paixão predominante nas duas nações – que possivelmente no próximo domingo levará os torcedores do Peñarol a comemorar os gols dos argentinos Alejandro Delorte e Rubén Capira, e os do Nacional os de seu compatriota Carlos Juarez.
(Por Darío Montero, IPS, com a colaboração de Marcela Valente, de Buenos Aires, 23/11/2006)
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