Um pedido de mais informações sobre possíveis impactos das hidrelétricas do rio Madeira em território da Bolívia, encaminhado pelo chanceler boliviano David Choquehuanca ao governo brasileiro no último dia 7, levou o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores) a oficializar, nesta terça-feira (22/11), um convite ao colega para que venha ao Brasil conhecer melhor o projeto. O governo brasileiro quer construir duas hidrelétricas – Santo Antonio e Jirau – no Madeira, em Rondônia, próximo à região onde o rio divide os dois países. Depois de uma série de reuniões internas no Itamaraty, Amorim afirmou que considera legítimos os questionamentos bolivianos, mas que acredita não haver motivos para preocupação.
De acordo com a edição do jornal boliviano La Razón do último dia 20, Choquehuanca teria proposto, na carta enviada ao governo brasileiro, a constituição de uma comissão binacional para avaliar os possíveis impactos da construção de Jirau, que fica a cerca de 50 quilônetros da fronteira entre os dois países. Ainda segundo o La Razon, entre os efeitos temidos pelo governo boliviano estariam a possível inundação de parte de seu território e impactos sobre atividades econômicas das comunidades ribeirinhas bolivianas, principalmente a pesqueira.
Nesta quarta-feira (22/11), diplomatas bolivianos consultados pela Carta Maior afirmaram que, além do diálogo com o Itamaraty, o governo da Bolívia, através dos ministérios do Meio Ambiente, da Água e das Relações Exteriores, está analisando o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) realizado por Furnas e pela Odebrecht, empresas promotoras do projeto, para entender melhor o projeto e seus impactos. Nesta terça-feira, os três ministérios solicitaram a vários institutos científicos e de pesquisa apoio técnico para este procedimento.
Questionamentos ao EIA
O Rio Madeira desenha a fronteira entre o departamento boliviano de Pando e Rondônia. Para se chegar à capital departamental Nueva Esperanza, por exemplo, basta atravessar o rio de canoa ou voadeira. Entre o distrito brasileiro de Araras e Nueva Esperanza não existe controle de fronteiras. Desce-se a barranca do rio do lado brasileiro e sobe-se a do lado boliviano, onde há um posto da marinha que desabitado parte do dia e seguramente não fiscalizador de nada.
No início de setembro, a reportagem da Carta Maior acompanhou uma reunião entre movimentos sociais brasileiros e moradores de Nueva Esperanza sobre as hidrelétricas do Madeira, um contato inicial de mapeamento mútuo para verificar as possibilidades de trabalho conjunto caso o projeto energético saia do papel.
Grosso modo, a população de Nueva Esperanza, cujos traços indígenas são muito fortes, vive da coleta da castanha, da pequena agricultura, do garimpo clandestino e da pesca, atividades que são a base da economia de grande parte dos ribeirinhos do rio Beni, que, ao cruzar a fronteira, passa a chamar-se Madeira.
Um dos especialistas procurados pelo governo da Bolívia para auxiliar na análise do EIA do Complexo Madeira, o hidrólogo Jorge Molina, diretor do Instituto de Hidráulica e Hidrologia da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, utiliza esta característica local para embasar o argumento de que todos os impactos socioambientais previstos por Furnas e Odebrecht sobre o território brasileiro se repetem na Bolívia.
Ameaças à população de peixes, que terão dificuldade de migrar rio acima e desovar rio abaixo em função das barragens, por exemplo, devem atingir um número importante de ribeirinhos bolivianos, uma vez que a bacia do Beni/Madeira ocupa 67% do território do país. Também um provável aumento da incidência de malária, prevista por técnicos da área de saúde, em função da criação de um meio ambiente favorável para a proliferação do mosquito transmissor, deve atingir a população do país vizinho.
O impacto mais grave, porém, é o potencial alagamento de território boliviano com prejuízo às atividades econômicas da população atingida. Apesar das negativas dos empreendedores, um estudo sobre os documentos de licenciamento do complexo hidrelétrico, encomendado pelo Ministério Público de Rondônia e pelas próprias empresas Furnas e Odebrecht a 19 especialistas de diversas áreas, aponta esta possibilidade como muito provável.
Em sua análise, o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e PhD em Ciências Biológicas pela Universidade de Michigan (EUA), Philip Fearnside, afirma que, mesmo que não existam informações concretas sobre o processo de sedimentação do Madeira – principal responsável, em médio e longo prazos, pela elevação do nível do rio -, a água do Reservatório de Jirau afetaria a Bolívia. “Ao nível operacional normal de 90 metros sobre o nível do mar, o reservatório se estende a montante de Cachoeira Araras, onde a Bolívia limita o rio Madeira e onde o nível de água é só 85 metros sobre o mar durante o período de vazante. (...) A elevação do nível d água significa que terra na Bolívia, que normalmente está exposta no período de água baixa, seria inundada”.
Colega de Fearnside no Inpa, Bruce Forsberg, biólogo pela Universidade do Estado de Michigan e pós-doutorado em Ecologia de Ecossistemas na Universidade de Washington avalia ainda que, devido a uma possível variação nos cálculos sobre o nível da água do rio, a área alagada pelo complexo Madeira poderá ser 100% mais extensa do que a citada no Relatório de Impacto Ambiental dos empreendedores. Se houve um erro de cálculo aí, “todos os estudos de impacto realizados até o presente momento seriam comprometidos. As áreas de influência direta e indireta teriam que ser redefinidas e todos os estudos e simulações refeitas”, afirma Forsberg.
Segundo Molina, apenas estudando o EIA dos empreendedores é possível afirmar que o Madeira subirá cerca de seis metros na região de Abunã, fronteira com a Bolívia, por exemplo. “O Brasil não pode garantir que não ocorrerão impactos na Bolívia. Assim, não pode haver um acordo político de não impactação entre os dois países, isso não faz sentido”, avalia, questionado sobre as declarações otimistas do chanceler brasileiro Celso Amorim.
Adiamento
No final da semana retrasada, uma ação do Ministério Público Federal acabou cancelando duas das quatro audiências públicas marcadas pelo Ibama para dar andamento ao processo de licenciamento ambiental do Complexo Hidrelétrico do Madeira. O adiamento deste processo impediu a inclusão de Santo Antonio e Jirau no leilão de venda de energia, marcado para o final deste ano pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Segundo o departamento de licenciamento ambiental do Ibama, com o atraso, a decisão sobre a concessão da licença ambiental prévia pelo órgão só deve sair em janeiro ou fevereiro de 2007. Este adiamento também deverá favorecer o diálogo Brasil/Bolívia.
(Por Verena Glass,
Agência Carta Maior, 23/11/2006)