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2006-11-23
Alfredo Southall permanecia incógnito entre os 300 ruralistas que recorreram a foices, pedaços de bambus e tacos para inibir o avanço dos sem-terra em direção a São Gabriel ontem (22/11), na BR-290.

Até que, no meio da manhã, o caminhão de som do MST conclamou os manifestantes a marcharem até invadir o que consideram "o maior latifúndio do mundo". Enquanto os policiais barravam a marcha e evitavam o conflito, Southall revelou que a fazenda que alimenta a tensão entre ruralistas e sem-terra nos últimos anos já não existe. Aproximadamente 6,3 mil hectares teriam sido negociados com a Aracruz Celulose. O superintendente regional do Incra, Mozar Artur Dietrich, garante que a tentativa de negociação de parte da Fazenda Southall para a empresa de celulose Aracruz não será empecilho para a desapropriação.

- Quando uma área é notificada de uma vistoria, essa notificação tem o poder de inibir o cadastro do imóvel por seis meses. Significa que não se pode fazer nenhum negócio durante esse período - diz, lembrando que a Southall foi notificada este mês.

Dietrich diz ter sido surpreendido na terça-feira por um pedido feito pelo proprietário da fazenda à Justiça em São Gabriel para a realização da venda. O superintendente revela que enviou à Justiça informações sobre a notificação da propriedade.

- Entendemos que aquele imóvel é importante para o processo de reforma agrária no Estado. Não vamos fazer a vistoria em meio ao conflito, mas depois que ele for resolvido vamos encaminhar o processo de desapropriação dos 13,4 mil hectares - promete Dietrich.

Estrada repartida em três
A iminência de um conflito envolvendo sem-terra, ruralistas e policiais fez com que a principal rodovia federal do Estado fosse bloqueada quatro vezes ontem.

O km 455 da BR-290, no limite entre Rosário do Sul e São Gabriel, foi trancado pela última vez das 18h às 19h20min, para que um oficial de Justiça apresentasse uma aguardada liminar que deveria encerrar o impasse.

Os dois grupos foram impedidos de avançar em marcha e também de ocupar demais rodovias federais da região. Na prática, a decisão judicial foi considerada uma vitória dos proprietários rurais, após um dia de troca de provocações.

A tensão começou ainda na madrugada, às 4h. Cerca de 350 ruralistas acampados a 500 metros dos sem-terra recorreram a uma estratégia normalmente associada aos adversários: queimar pneus nas margens da estrada. Armados com pedaços de bambu, foices e até tacos de beisebol, exigiam o retorno dos integrantes do MST a Santana do Livramento, de onde partiram na segunda-feira da semana passada em direção a São Gabriel. Como forma de intimidação, os produtores rurais dispararam fogos de artifício e montaram guarda a cavalo.

- Este local é simbólico. Estamos no limite com Rosário e daqui eles não passam. Se vierem, vai haver enfrentamento - prometia o presidente do Sindicato Rural de São Gabriel, Tarso Teixeira.

Privados de água e de sombra, os cerca de 250 sem-terra tentavam negociar a transferência para um outro local, cerca de 15 quilômetros adiante na margem da BR-290.

Diante da negativa dos fazendeiros, integrantes do MST peitaram membros da Brigada Militar e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), exigindo passagem. A tensão atingiu o ápice às 10h30min, quando homens do Batalhão de Operações Especiais (BOE) de Santa Maria se prepararam para evitar o confronto.

Grupo que ocupar rodovia terá de pagar R$ 5 mil por dia
Os sem-terra recuaram. Diante do argumento dos policiais rodoviários encarregados da negociação de que uma liminar da Justiça de Livramento poderia garantir a retomada da marcha à tarde, os manifestantes sentaram-se no acostamento.

- Nossa missão é evitar o confronto para garantir a integridade de todos. Por isso, impedimos a marcha deles até que a Justiça se pronuncie. Isso os deixou insatisfeitos - reconheceu o chefe da seção de policiamento e fiscalização da PRF, João Rigo.

Às 15h30min, depois de mais de cinco horas sob o sol intenso, a insatisfação alimentou nova revolta.

- Nos disseram que a decisão estaria saindo e até agora nada - reclamou o frei Wilson Zanatta, da Comissão Pastoral da Terra.

Foram retomados os gritos exigindo o reinício da marcha que deveria terminar ainda nessa semana na invasão das terras de Alfredo Southall, a cerca de 50 quilômetros do local. Surpreendidos pela algazarra, os ruralistas largaram as cuias de chimarrão e saltaram das cadeiras, em direção à rodovia. Mais uma vez, a presença dos policiais intimidou o avanço dos sem-terra. A polícia fez uma corrente e usou escudos e cavalos.

No final da tarde, o pronunciamento do oficial de Justiça gerou aplausos entre os fazendeiros e reclamações dos sem-terra.

- Quero ver eles não avançarem. Eles passam toda hora nos xingando - reclamou um integrante do MST.

Os dois grupos foram revistados ao anoitecer, sem que, até as 20h, tenham sido encontradas armas de fogo. Os acampamentos foram isolados pela polícia para evitar a entrada de novos integrantes dos movimentos.

Quem desrespeitar a decisão judicial e ocupar a BR-290 ou demais rodovias federais na região pode ser multado em R$ 5 mil por dia.

"Não devo mais nem um centavo"
Entrevista: Alfredo Southall, produtor rural
Segundo Alfredo Southall, parte do alvo da marcha do MST agora pertence à Aracruz Celulose. A seguir, trechos da entrevista em que o produtor rural confirmou a venda:

Zero Hora - O que significaria a venda de quase metade da fazenda?

Alfredo Southall - Não devo mais nem um centavo. Até o dia 30 de novembro, saldo tudo.

ZH - Isso eliminaria o risco de desapropriação?

Southall - Tenho 12 mil cabeças de gado e produzo 135 mil sacas de arroz. Cheguei a ser o maior produtor de ovinos do mundo. Os índices não permitiriam de qualquer forma a desapropriação.

ZH - Esta produtividade é contestada. Há insinuações de que parte do gado na verdade é emprestada.

Southall - Mentira. É impossível enganar o Incra se a vistoria ocorre sete dias depois da notificação. Além disso, é preciso apresentar notas fiscais da venda e uma cópia da fornecida a quem compra, justamente para evitar fraudes.

ZH - O senhor nunca ficou sabendo das vistorias de forma antecipada, extra-oficialmente?

Southall - Não.

ZH - O MST normalmente ocupa áreas que posteriormente se revelam alvo de desapropriações. É informação privilegiada?

Southall - O Incra é um braço do MST. Por isso.

ZH - Se suas terras são produtivas, por que o senhor acredita que o nome Southall seja associado ao latifúndio?

Southall - Precisavam de um boi de piranha. Nunca ouvi falar que o Banco do Brasil é grande demais ou que o Bradesco ou o Wal-Mart são muito grandes. Isso só vale para os produtores.

ZH - A venda não seria um recuo na sua trajetória?

Southall - Sem dúvida. Estou triste, embora saiba da necessidade. Quase não dormi nos últimos dias, pois estas terras têm mais de cem anos de História. Eu herdei 8 mil hectares e comprei o resto.

ZH - Há uma discussão se as terras poderiam ser vendidas, se havia uma notificação para vistoria.

Southall - Isso não existe. Fui notificado pelo Incra, que depois voltou atrás, pois viu que sofreria outra derrota. Estas negociações se arrastaram por quatro meses.

ZH - A venda é um golpe no MST?

Southall - O movimento é esdrúxulo, com pessoas excluídas da periferia que não têm experiência na terra. Nós estávamos quietos, e eles vieram nos incomodar. Não vamos recuar.

Reforço
Produtores rurais reclamavam da necessidade de se reunir em um acampamento na época de plantio mais intenso. Entre eles, havia poucos peões de estância.

O grupo que resiste aos sem-terra foi reforçado por trabalhadores ligados à indústria da madeira, interessados na instalação da Aracruz no município.

Estratégia
Os policiais que negociavam com ruralistas e sem-terra fizeram inúmeras reuniões com os dois grupos ao longo do dia. Ao descobrir que nenhuma das partes estava disposta a ceder, um policial chegou a declarar:

- Ficamos em xeque. Vamos ter de esperar aqui e ver qual deles tem mais fôlego.
(Por Matheus Beust e Rodrigo Cavalheiro, Zero Hora, 23/11/2006)

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