Este ano, as tartarugas-da-amazônia (Podocnemis expansa) que reproduzem no
Baixo Rio Branco, em Roraima, vão percorrer sozinhas o perigoso trajeto
entre a água e as areias dos tabuleiros onde fazem covas para a postura de
ovos. A emboscada sofrida pela equipe do Ibama, que fazia o manejo dos
quelônios (ordem de tartarugas, jabutis e cágados) na região evidenciou a
precariedade de um projeto que, se existe até hoje, é graças ao esforço e à
teimosia dos pesquisadores.
“Em dezembro, vamos ter cerca de mil tartarugas assoalhadas. Vai haver
fiscalização, mas o manejo não estará lá”, alerta o chefe do Núcleo de Fauna
do Ibama em Roraima, Raimundo Pereira Cruz, integrante da equipe que sofreu
o atentado há duas semanas. “Não temos condições de manter o projeto.
Perdemos o motor (usado na lancha para transportar a equipe), não podemos
trabalhar”, afirma.
Já faz tempo que a situação do projeto é crítica. As dificuldades começam
ainda em Boa Vista, muito antes das equipes partirem para o trabalho. “A
gente batalha muito, consegue dinheiro remanejado de outras áreas e pede
ajuda às unidades de conservação que ficam ao redor do projeto, como o
Parque Nacional Viruá e a Estação Ecológica Niquiá, que colaboram com a
manutenção e no transporte”, conta Raimundo. Para 2006, tinham a disposição
apenas 10 mil reais para investir no trabalho, o que envolve gastos com
material de consumo e diárias.
O interesse do governo em manter um dos principais e mais antigos projetos
de manejo de quelônios da Amazônia se traduz em números. Este ano, por
exemplo, para todos os nove estados em que ocorre o manejo – todos da região
Norte, além de Mato Grosso e Goiás –, foram gastos menos de 100 mil reais,
segundo Antônio Tacaya, chefe do Centro de Répteis e Anfíbios do Ibama. Isso
significa menos de mil reais para cada um dos 116 tabuleiros de reprodução
de quelônios na Amazônia. “A verba foi reduzida porque não é prioridade do
governo”, afirma Tacaya. “O projeto só funciona graças aos técnicos. Se
fosse esperar pelo governo, as tartarugas já estariam extintas”, diz.
Mas agora até boa vontade dos técnicos está esgotada. Estão sem dinheiro,
sem equipamentos e traumatizados pelo ataque dos traficantes. O tiro,
disparado com uma espingarda calibre 20, atingiu a perna de Raimundo, na
altura do fêmur. Ele passou a noite em uma praia, até ser resgatado e
levado a um hotel de selva. Sobreviveu. Mas um colaborador, que estava ao
lado, não teve essa sorte. “Nós estamos assustados, nem conseguimos dormir
direito. Só voltaremos lá se derem segurança”, afirma.
Funcionamento do projeto
O Projeto Quelônios da Amazônia foi criado no final da década de 70, quando
as tartarugas ainda não estavam na lista de animais ameaçados de extinção.
Hoje, elas só continuam a existir na Amazônia brasileira devido aos esforços
dos pesquisadores, pois estão desaparecendo em vários lugares. O biólogo
Richard Vogt, assessor do Programa de Manejo do Ibama, alerta que os animais
encontrados no Brasil são considerados ameaçados também em países vizinhos
como Peru, Venezuela, Colômbia e Bolívia. “Se não tiver projetos de manejo,
acaba”, sentencia o biólogo.
O Baixo Rio Branco é uma das 17 regiões da Amazônia onde ocorre o manejo de
quelônios – o maior projeto do mundo deste tipo, segundo Tacaya. Ali, desde
1979, equipes de técnicos e contratados temporários revezam-se entre os
meses de novembro e fevereiro para proteger a desova de quelônios e a
eclosão dos ovos. Em 27 anos, os registros do Ibama em Boa Vista indicam que
quase 6,3 milhões de filhotes da tartaruga-da-amazônia tenham nascido dos 80
quilômetros de rio onde é feito o manejo. Até 2001, foram contados
exatamente 6.103.895 filhotes nascidos. Em tempo, essa espécie é a maior da
região, podendo medir 80 centímetros de comprimento e a pesar até 60 quilos.
A época dos quelônios começa com a baixa do rio. Primeiro chegam as iaçás
(Podocnemis sextuberculata), espécies menores que desovam entre setembro e
outubro. As tartarugas-da-amazônia depositam os ovos principalmente entre
novembro e dezembro. Por último, vêm os tracajás (Podocnemis unifilis),
parentes das grandalhonas, mas bem menores. A desova deles começa em janeiro
e vai até fevereiro. Com todos eles, aparecem traficantes de tartarugas.
Pegar uma tartaruga na época da desova é fácil. Ágeis na água, elas são
desajeitadas na areia. Os caçadores passam em canoas, virando as matrizes de
casco para baixo, para que não fujam. Depois, é só recolhê-las e colocar no
barco. Trabalho fácil e lucro garantido. Elas deixam marcas na areia, que
levam até as covas. “Não são caboclinhos que pegam uma e outra para comer,
são traficantes. Devem ser tratados como narcotraficantes”, ressalta Vogt.
Com o projeto a todo o vapor, a estratégia é a seguinte: para proteger
matrizes e filhotes, chegam de Boa Vista técnicos do Ibama junto com agentes
contratados em comunidades próximas. Nos últimos meses do ano as equipes
marcam com estacas os locais onde as tartarugas fizeram as covas para botar
os ovos. A partir de janeiro, eles aguardam a eclosão dos ovos e recolhem os
filhotes. “A gente coloca as tartaruguinhas em um local protegido, entre
cinco e dez dias, para perderem o cheiro característico, que atrai os
predadores”, conta Raimundo.
Parte dos filhotes recolhidos pode ser entregue a criadores, uma medida de
incentivo à criação em cativeiro. Mas a maioria é levada a uma praia
protegida, onde pescadores a serviço do monitoramento tenham eliminado
peixes como barbados, pirararas, piraíbas, além de jacarés. Sem o manejo, a
carne farta e fácil das tartaruguinhas é um banquete para estes predadores.
A soltura das tartarugas é um espetáculo. Milhares de filhotes correm para o
primeiro mergulho. Se forem fêmeas, vão passar pelo menos dez anos entre
rios e igapós até atingir a maturidade sexual e voltarem à praia para
desovar.
Berçário
No Rio Branco, os maiores registros de nascimento de tartarugas são da
década de 90. Estima-se que na virada de 1995 para 1996, cerca de seis mil
tartarugas tenham trazido à luz 660.150 filhotes. Depois disso, o número
começou a definhar devido à falta de recursos e ao avanço dos traficantes
que chegam do município de Barcelos (AM), que praticamente exterminaram os
quelônios que nas praias do Amazonas. “O Rio Branco era ótimo nos anos 80,
mas o posto de fiscalização já foi queimado duas vezes”, conta Richard Vogt.
Um desses ataques foi em 1996, e até hoje ninguém sabe quem foram os
responsáveis. Atualmente não existe mais nenhuma base fixa para a
fiscalização e manejo dos animais por lá.
A fertilidade em praias roraimenses não é obra do acaso ou apenas do manejo.
O Baixo Rio Branco é uma região de difícil acesso, por onde só se chega de
barco. É possível viajar horas e horas por centenas de quilômetros sem
encontra um único morador. Além disso, ao contrário de outros grandes rios
daquela parte da Amazônia, o Branco tem uma água rica em nutrientes, o que
significa peixes e vegetais em abundância. Não é à toa que logo no primeiro
ano do projeto foram contadas 1.063 matrizes desovando na área e mais de 150
mil filhotes tenham nascido.
Mas nos últimos dois anos a natureza não colaborou com as tartarugas em
Roraima. Nos períodos 2003/2004 e 2004/2005 praticamente não houve
nascimentos no Baixo Rio Branco devido a um fenômeno conhecido como
“repiquete”. Ou seja, quando o nível no rio desce pouco e sobe rápido
demais, inundando os tabuleiros. “As tartarugas põe ovos, mas eles não
eclodem”, explica Raimundo Cruz. No final do ano passado, a equipe de
monitoramento passou dois meses aguardando os ovos eclodirem. No final,
desistiram e levantaram o acampamento.
Em outros pontos da Amazônia reprodução das tartarugas tem sofrido altos e
baixos. No rio Guaporé (RO), o número de fêmeas subiu de 860, em 1989, para
2.400, em 2005. Na praia de Monte Cristo, no rio Tapajós (PA), as matrizes
aumentaram de 600 para mais de 2 mil, durante esse período. Mas no rio
Trombetas, também no Pará, havia 8 mil, em 1979. Em 2004, foram encontradas
apenas 200. No ano passado, 300. “E lá existem 12 policiais, armados com
metralhadoras, que se revezam na praia para proteger as tartarugas”, conta
Vogt.
Nem em Mamirauá (AM) os quelônios têm sossego. Vogt conta que os tracajás de
lá foram praticamente exterminados antes de ser criada a Reserva de
Desenvolvimento Sustentável. E hoje apenas 20 tartarugas desovam ali.
Espécies menores continuam a ser capturadas e vendidas para traficantes. A
razão, para Vogt, é a facilidade e lucratividade do tráfico. “É um dinheiro
fácil e tem gente na cidade comprando”, diz o biólogo. No entanto, na
própria Amazônia o Ibama sabe que quando há pesquisa e fiscalização a
reprodução desses animais é certa. “Do rio Purus, onde existe uma boa base
do Ibama, não sai tartaruga”, diz.
(Por Vandré Fonseca,
OEco, 22/11/2006)