No enorme galpão, à beira da BR-317, cerca de 500 pessoas suam sob o teto de
zinco escaldado pelo sol amazônico. Do lado de fora, os ônibus que trouxeram
os seringueiros manobram ao lado das Toyotas Hilux dos empresários. Todos se
acomodam para assistirem à solenidade que é aguardada há anos. Neste dia, 23
de outubro de 2006, serão assinados os contratos de madeireiras e 140
famílias extrativistas que fornecerão madeira nativa à fábrica de pisos de
Xapuri, a cidade berço de Chico Mendes, no Acre.
Prometida durante os dois mandatos do Partido dos Trabalhadores (PT) no
estado (1998-2006), a fábrica está praticamente pronta para funcionar. O
investimento de 28 milhões de reais foi todo realizado pelo governo
estadual, com recursos do BNDES. Agora, através de uma concessão onerosa de
15 anos, o Acre receberá 130 mil reais por mês. A empresa paranaense
Marinepar será a principal controladora da fábrica, pois detém a tecnologia
para a confecção dos tacos. Além dela, serão sócias cinco companhias do Acre
e a Cooperativa dos Produtores Florestais Comunitários (CooperFloresta).
Quando começar a operar, a indústria consumirá uma quantidade significativa
de madeira: 50 mil metros cúbicos por ano, o que equivale aproximadamente à
carga de mil caminhões. Cumaru-ferro e breu serão as principais espécies de
árvore a serem comercializadas. No evento, grandes empresas e pequenas
comunidades assumiram o compromisso de atender a esta demanda. O governador
do Acre, Jorge Viana, exaltado pela promessa cumprida, discursou longamente
sobre sua política de desenvolvimento econômico que prioriza a exploração de
produtos nativos. Segundo ele, é o momento da madeira ganhar um status
maior. “Por 100 anos o Acre viveu apenas de duas árvores, a castanheira e a
seringa. Isso não pode continuar.”
De acordo com estudo publicado por pesquisadores do Instituto de Pesquisas
da Amazônia (INPA), de 1999 a 2004, a produção de madeira em tora no Acre
dobrou, alcançando o total de 420 mil metros cúbicos por ano, sem que isso
tenha se transformado em riqueza para o estado. O secretário de Florestas do
Acre, Carlos Ouvídio Resende, um entusiasta do manejo florestal, afirma que
a industrialização da madeira é o melhor caminho para valorizar a floresta.
“ A floresta é como um diamante, temos que lapidá-lo para que tenha mais
valor”, compara.
O manejo madeireiro, diz Resende, tem um grande potencial para consolidar a
economia do Acre. Em 2005, o estado movimentou algo em torno de 200 milhões
de reais com produtos florestais, uma cifra bastante inferior aos lucros
advindos da pecuária, 316 milhões de reais. A intenção é que atividade
madeireira possa elevar os ganhos do extrativismo a 1 bilhão de reais por
ano.
De onde vem a madeira?
O manejo florestal se tornou uma porta de entrada para obter a madeira que
está nas terras das pequenas propriedades. O Acre possuí um território de
15,3 milhões de hectares dos quais 92% ainda são cobertos por florestas.
Deste percentual, 6 milhões de hectares são contabilizados pelo governo para
se tornarem alvos de planos de manejo, sendo que 2,5 milhões hectares estão
nas mãos de comunidades extrativistas.
O governo de Jorge Viana defende que a madeira se torne uma importante fonte
de renda para os assentamentos. Parte da concessão da fábrica de pisos de
Xapuri foi destinada à CooperFloresta, a cooperativa de extrativistas que
negocia madeira. De acordo com o contrato, ao menos 15% dos lucros da
indústria deverão ser dirigidos às comunidades. Os planos de manejo dos
assentamentos serão feitos por consultorias contratadas pelo governo
estadual. Ao todo, serão gastos 6 milhões de reais nesta etapa, dinheiro que
sairá de um empréstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Dionísio Barbosa de Aquino, diretor da CooperFloresta, expõe com muita
clareza que a madeira tem que ser apenas mais um produto a compor a renda
dos assentados, e não a salvação da lavoura. A dificuldade será fazer com
que as comunidades gerenciem muito bem seus ativos madeireiros para que
possam ao mesmo tempo continuar a explorar os produtos não madeireiros, como
a castanha e o leite da seringa. “A vantagem que eu vejo quando se fala em
plano de manejo é o estudo da floresta com outros olhos, passar a valorizar
o uso múltiplo, usar tudo que a floresta pode lhe dar”, diz.
As experiências de manejo comunitário promovidas pelo governo do Acre até
hoje geram muitas controvérsias. O caso emblemático é o da Floresta Estadual
do Antimary, localizada na região central do estado. Estudos da Universidade
Federal do Acre (UFAC) demonstraram que 80% da renda obtida com exploração
madeireira ficou na mão da iniciativa privada. O que sobrou para os
extrativistas locais foi dirigido a investimentos indiretos, como
benfeitorias à comunidade. Apenas muito pouco, cerca de 10% dos lucros, se
transformou em renda direta.
Com relação às questões ambientais, o que se viu no Antimary, observa o
pesquisador Gerson Albuquerque, foi a concentração dos planos de manejo em
propriedades de poucas famílias o que acabou por esgotar o potencial
econômico da madeira com uma rapidez muito superior que a prevista. Ao mesmo
tempo, as comunidades empregaram toda a mão de obra no manejo e deixaram de
obter renda em outras atividades. “Com os planos de manejo, o governo está
fazendo exatamente o contrário do que sempre pregou, que é a diversificação
de produtos”, critica Albuquerque.
Resende, secretário de Floresta, refuta as críticas ao Antimary. “Prefiro
acreditar na certificação do Imaflora”, pontua ele ao citar o órgão
certificador brasileiro. No caso das 140 famílias que participarão da
fábrica de pisos, ele reconhece que o desafio é a gestão. As pequenas
comunidades, diz ele, terão de apreender a valorizar sua madeira, caso
contrário ficarão sujeitas a serem fornecedoras de toras, um mercado que tem
mais oscilações de preços do que o produto beneficiado. No primeiro momento,
afirma o secretário de Florestas, é esperado que vendam as árvores in
natura, mas nada impede que no futuro as comunidades passem a serrar a
madeira e negociá-la por preços melhores.
Iniciativa privada
Cerca de 1,8 milhão de hectares das áreas passíveis de exploração florestal
no Acre (6 milhões) estão em poder de proprietários privados. Os sinais
concretos de que a extração de madeira ganha força já movimentam o mercado.
Um hectare de floresta com boa madeira chega a custar 600 reais, enquanto
aquele com pasto, 300 reais. Empresas madeireiras que atuam na Amazônia
enxergam no Acre uma nova fronteira e sondam proprietários prometendo
pacotes completos, da elaboração do plano de manejo à extração da madeira.
Os madeireiros do Acre, contudo, querem afastar qualquer pecha de
destruidores. A legalidade se tornou palavra de ordem no setor. Fátima
Adelaide de Oliveira, a dona da Nova Canaã e presidente do Sindicato das
Empresas Manejadoras do Acre (Simanejo), conta que a Operação Novo Empate
acabou com a banda podre do setor no estado. Em junho deste ano, a Polícia
Federal fechou cinco madeireiras ilegais e prendeu funcionários do Ibama que
comercializavam licenças falsas. “Graças a Deus, hoje todos caminham dentro
da legalidade”, garante. Agora o desafio é certificar as 23 companhias
associadas ao sindicato. Apenas duas possuem certificação, enquanto outras
cinco estão com os processos em andamento.
A Nova Canaã já foi certificada e é considerada modelo na exploração de
madeira. Como presidente do Simanejo por 6 anos, Fátima se tornou uma
“grande parceira”, segundo o governador Jorge Viana, na difusão da prática
do manejo. No pátio de sua empresa, sobre as toras de madeira, tremula a
bandeira do PT (foto). Nascida em uma família de madeireiros, ela trabalha
no ramo desde os treze anos e crê que o Acre entrou no rumo certo com a
estratégia de valorizar seus produtos florestais. “A madeira é o produto que
mais cresce no PIB do Estado”, alegra-se. De fato, cada vez mais a madeira
se distancia da castanha e da borracha, e se aproxima de subprodutos da
pecuária, como o couro e o sebo.
A madeireira de Fátima foi uma das que atuou na exploração da Floresta
Estadual do Antimary e também será uma das sócias acreanas que controlará a
fábrica de pisos de Xapuri. Além de gerenciar o empreendimento, a Nova Canaã
será fornecedora de madeira. No início, os 50 mil metros cúbicos virão em
grande parte de propriedades privadas, admite a empresária. Mas com o passar
dos anos planeja-se que até 70% possa vir das comunidades extrativistas.
Na opinião de Fátima, para que as parceria entre as madeireiras e os
extrativistas ocorram, o chamado manejo comunitário precisa “dar uma
guinada” e adotar práticas comerciais mais eficientes. Ao lembrar a
experiência no Antimary, a dona da Nova Canaã reclama que os custos de se
explorar madeira com planos de manejo e certificação são muito altos. “Hoje
os maiores compradores, os Estados Unidos e a China querem saber de preço e
não de certificação”.
Para se obter os 50 mil metros cúbicos de madeira para a fábrica de piso de
Xapuri serão necessários manter a exploração de ao menos 5 mil hectares de
floresta a cada ano, a considerar que a média observada nos planos de manejo
na região amazônica tem sido a obtenção de 10 m3 de madeira a cada hectare.
Levando-se em conta apenas os 15 primeiros anos de concessão, necessita-se
de 75 mil hectares manejados. Juntando-se a isso a infra-estrutura para a
atividade, como estradas e barracões, tem-se uma porção expressiva de
floresta para viabilizar o suprimento da fábrica de Xapuri.
O cientista do Centro de Pesquisa Woods Hole, Foster Brown, que atua há 14
anos como professor da UFAC estudando questões de desmatamento e queimadas,
argumenta que o manejo florestal madeireiro é uma opção melhor do que o
corte raso da floresta. Mas diante das largas áreas que sofrerão
intervenções, ele levanta uma dúvida importante. “Haverá capacidade de
fiscalizar tudo isso?”.
(Por Gustavo Faleiros,
OEco, 18/11/2006)