Por Francisco Carlos Teixeira*
Na última semana, realizaram-se nas cidades de Jaci-Paraná, Abunã e Porto Velho, em Rondônia, as audiências públicas para debater grandes projetos hidrelétricos – duas usinas com a capacidade de gerar 6500 MW. Trata-se de importante projeto constantemente citado por Lula durante a campanha eleitoral, indispensável para evitar o estrangulamento energético do país e a geração de renda e emprego. Além disso, é um passo fundamental para superar o isolamento da região.
Como todo grande projeto, o Madeira terá algum impacto sobre o meio ambiente, embora tenha sido concebido para ser um novo paradigma nesta questão, incluindo-se aí o desenvolvimento de tecnologias novas, inteiramente geradas pela pesquisa brasileira. Por isso, Ibama, o consórcio de empresas construtoras e a população afetada reuniram-se nas audiências públicas para debater um novo paradigma de ação.
O futuro do Brasil mora em Rondônia
O traço comum unindo as quase três mil pessoas reunidas nas duas diferentes sessões das audiências realizadas aqui em Rondônia era a visão de futuro que se deseja para o país. Todos – em suas diferentes posições – acreditam aqui que um outro mundo, melhor, é possível. Para funcionários públicos – saídos de suas salas refrigeradas e seu conforto brasiliense – tratava-se claramente da obrigação democrática de ouvir a população local, aceitar as críticas e incorporar sugestões. E isso não é pouco.
Durante décadas a burocracia estatal foi arrogante e distante, se permitindo – em especial na “era dos grandes projetos amazônicos” – decidir sobre imensos contingentes populacionais de forma arrogante e autoritária. Os resultados foram o surgimento de um imenso passivo de erros e injustiças que atingiram o meio ambiente, como em Balbina.
O MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), talvez a mais atuante e séria entidade a protestar contra a arrogância burocrática, é, claramente, o produto político do passivo existente. Mas, em Jaci-Paraná ou em Abunã, o que se viu não deixa de ser uma vitória importante dos movimentos sociais: tornou-se a ação do Estado presente e cuidadosa, obrigando-o a ouvir e considerar o movimento social.
Para os empresários aqui presentes, a situação não é diferente: há o passivo a ser considerado, avaliado e superado. Caso queiram ser parceiros permanentes do desenvolvido nacional, e em especial da valorização da Amazônia, deverão levar em conta as especificidades da região. Para estes, em especial o consórcio construtor, a questão reside claramente em transformar o Projeto Madeira em um paradigma do desenvolvimento auto-sustentado. Não há espaço político e social para mais erros. Erros que não serão tolerados num país democrático e onde o movimento social é organizado e vigilante.
Assim, os esforços técnicos – na nova engenharia a ser praticada no Rio Madeira – deverão dar conta do conjunto das demandas ao mesmo tempo sociais e ambientais, considerando ainda a agenda do Estado-Nação. Interessa à engenharia nacional constituir, ela também, um novo paradigma para o desenvolvimento nacional, provando – com tecnologia 100% nacional – nossa capacidade de gerar emprego, renda e inovação de forma autônoma e auto-sustentada.
Para os políticos locais, bem como para os setores dinâmicos da sociedade local – mobilizados a favor das usinas através de seus sindicatos – trata-se de uma oportunidade única: rever, ampliar e consolidar o desenvolvimento local através de um grande projeto. Com todo seu potencial, a economia de Rondônia encontra-se num momento crucial. Impõe-se claramente uma série de decisões, onde o caráter meramente extrativista das atividades deverá ser alterado em direção à produção agregada de valor. Caso isso não aconteça, o extrativismo e a pecuária poderão voltar-se, como já é o caso em vários locais e setores, para pura predação. Ora, a agregação de valor exige um uso amplo de energia.
Para os setores sociais mais amplos em Rondônia – para além das populações ribeirinhas atingidas – o sentimento é de euforia. São possibilidades novas: mais emprego, de melhor qualidade e de melhor remuneração, além da visualização de uma série de oportunidades decorrentes da ampliação das cadeias produtivas locais. Na voz dos estudantes da universidade local: é a possibilidade de construir um futuro para uma geração de jovens que nada viam à frente.
Riscos e ameaças
O futuro possui sempre um preço. Várias entidades de defesa do meio ambiente, reunidas em Rondônia, assumiram claramente a defesa da natureza que será afetada. Na maioria das vezes – com gente vinda de fora ou gente aqui nascida – o temor reside claramente na destruição de biomas aqui existentes.
Neste sentido, a ação do Ibama e dos empreendedores – através dos Estudos de Impacto Ambiental – foi a de criar as condições de minimização dos impactos negativos por meio de sofisticadas exigências de engenharia para conservar e manter a fauna e a flora nas condições regulares de reprodução. Em termos de engenharia, e com a vontade política que irrompe das exigências das audiências públicas, tais mecanismos de preservação deverão ser aplicados, acompanhados e avaliados. A detecção de qualquer falha deverá ter como conseqüência a sua imediata correção.
Um outro ponto, mais controverso posto que as soluções escapam ao campo das engenharias, é o impacto sobre as populações atingidas, como os ribeirinhos. São índios, garimpeiros, seringueiros e camponeses familiares. Aqui ainda existe medo. Dois medos diferentes. De um lado, o medo das populações de que se venha a perder as suas condições de vida e, por isso, se vejam abandonadas. Este medo se dissipa aos poucos: garimpeiros, através do seu sindicato, aderiram na audiência de Porto Velho ao projeto. Contudo, há uma expectativa clara em direção aos programas afirmativos, de formação de mão-de-obra, de educação e de realocação, com as indenizações quando e sempre necessárias.
O outro medo é, em grande parte, das entidades de defesa da natureza, o Movimento Viva Rio Madeira Vivo. Trata-se aqui de um olhar amoroso sobre os tipos sociais e culturais antigos e seus modos de vida. Com o progresso, o que será de famílias camponesas ou índias que ano após ano vivem uma vida antiga, com gestos e palavras dos pais dos pais de seus pais? Como garantir a continuidade de tal cultura e de modo de viver, quando não há engenharia capaz de fazer isso?
A resposta reside em perguntar a tais populações se estão dispostos a viver a vida antiga como proposta de futuro, ou seja, como um futuro permanente. Não se pode exigir que alguém em Jaci-Paraná viva numa cidadania de terceira qualidade social em relação, por exemplo, a São Paulo, apenas para que se preserve um modo antigo de viver. Não é justo, não é correto. Cabe a tais populações escolher – este é o processo político subjacente nas audiências de Rondônia.
Nas próprias audiências, nas ruas enlameadas e nas estradas, o que se vê aqui é uma massa de pessoas de feições antigas: são índios, são pescadores, são garimpeiros. Nas audiências, pais levam seus filhos ora com roupas de festa, ora com camisetas de adesão ou protesto. Nas faces, estão as origens antigas: são pequenos curumins, espertos, alegres, curiosos com as máquinas digitais e laptops. No fim de tudo, são eles que dirão que futuro desejam.
Da mesma forma, é necessário desarmar uma falsa emboscada contra o futuro, expressa na oposição questão ambiental versus questão social. Pensar a geração de renda e de emprego como a causa da destruição ambiental é um erro. Nada polui mais, nada é mais feio que a pobreza. O mito do pobre saudável, limpo e feliz é, na verdade, só um mito.
Conversar com o futuro
Enquanto europeus e americanos queimam insistentemente petróleo, produzem uma quantidade impressionante de lixo não reciclável e consomem mais comida ou água que o conjunto da humanidade, não podemos desejar e obrigar que pobres vivam com menos em nome da preservação ambiental. A conta deve ser dividida.
A consciência disso às vezes escapa, escapa ao militante muito moderno, plugado e que pensa globalmente. Às vezes pensa estar em Paris ou Nova Iorque, e não em Porto Velho. Dividir a conta é dividir o ônus do que cada um consume. Pensar globalmente, localizar-se: eis o desafio.
A liderança do movimento ambiental organizado, presente e atuante em Rondônia, se dá conta de tais desafios. Em especial quando a população local, ansiando por bem-estar social, adere aos projetos de desenvolvimento. A teimosia, muitas vezes romântica, em se apegar a uma visão do mundo onde o futuro reside no passado, não gerará apoios e responsabilidades no grande conjunto da população local. A liderança ambientalista local – incansável, ativa e mobilizadora – entende cada vez mais o recado da população.
O progresso não deve estar em jogo: como conciliar bem-estar social e preservação? Esta é a verdadeira pergunta. Gente como Luis Novoa – talvez a mais clara expressão do movimento social organizado – compreende isso e o risco do isolamento. Luis – um “conselheiro” moderno, mistura de paixão e de olhar para o futuro, trazendo no rosto os traços do fervor, do amor à luta e da capacidade de organizar pessoas – ofereceu uma proposta concreta na forma de um fórum ou comissão institucional de acompanhamento, transferindo e autonomizando responsabilidades.
Isso difere daqueles que por sonho, ou por má fé, arriscam o bem-estar das gentes que propõe “salvar”. Propostas do tipo “vamos discutir o Estado brasileiro para depois saber se queremos as usinas” não serão consideradas pela população local e só servem para identificar os movimentos de preservação com o atraso e o adiamento do futuro.
A vanguarda do atraso
Disputando espaço com as entidades autônomas da sociedade civil, como as acima descritas, surgiram também na mídia, em ações coordenadas de forma subreptícia, um conjunto de organizações sediadas e financiadas no Exterior. Para estas instituições, quase todas centradas nos Estados Unidos e Europa, o Projeto Madeira é intolerável. Para minar o projeto, fazem uso das redes transnacionais de comunicação como forma de coerção velada. O objetivo é influenciar os “formadores de opinião” dos espaços nacionais onde estão localizados os estoques de natureza dos quais pretendem se apropriar ou, ao menos, controlar.
Querem a simples e pura paralisação de tudo que possa representar progresso ou a melhor distribuição de renda e a geração de empregos na Amazônia. Olham a Amazônia não como uma terra de gentes – gentes desejosas de viver sua vida, de preservar suas terras e suas florestas – mas desejosas também de mais empregos, mais desenvolvimento e, conseqüentemente, melhores condições de vida.
Para estes “defensores do Madeira”, toda a Amazônia deve ser entendida como uma valiosa reserva natural de recursos energéticos e relacionados à biodiversidade, ou seja, uma poupança para uso futuro para que possam, comodamente, continuar a consumir maciçamente petróleo e poluir com mais tranqüilidade o planeta.
Desiludidos em reformar seus próprios países, ou mesmo interessados na atual injusta e desigual distribuição de renda/responsabilidade na destruição do planeta, tais ditas “ONGs” esquecem que hoje cada americano produz 1,5 quilo de lixo/dia, a mais alta taxa de produção de resíduos do mundo! Só Nova Iorque produz cerca de 15 mil toneladas/dia de lixo!
Os Estados Unidos insistem em continuar queimando combustível fóssil – e para isso não se envergonham de inventar guerras –, insistem em manter um padrão de vida baseado em grandes veículos consumidores e insistem em manter suas usinas e fábricas muito abaixo do padrão mínimo necessário para diminuir a emissão de gases tóxicos. Além disso, os Estados Unidos respondem, sozinhos, com um terço do consumo global de CFC (gases clorofluorcarbono), origem da destruição da camada de ozônio.
Por isso, a Administração Bush não pode – e não quer – assinar o Protocolo de Kyoto. Seria bom perguntar a tais ativistas: o que vocês fazem para proteger o mundo obrigando o governo eleito de vocês a desempenhar um papel menos predador dos recursos mundiais? E ainda: onde estavam eles quando os Estados Unidos construíram as seis mil grandes barragens que garantem, até hoje, parte fundamental do desenvolvimento daquele país? Por que trabalham hoje para impedir a construção de Santo Antônio e Jirau, barragens com reservatórios a fio d água, num país que não possui nem 10% das barragens existentes nos Estados Unidos?
Uma outra vertente insidiosa de tais intrigas é a tentativa de atritar o movimento social boliviano com os projetos de desenvolvimento do Governo Lula, entra os quais o Projeto Madeira. Ao inventar inverdades sobre uma suposta “inundação” da Bolívia – algo inexistente, com separação de cerca de 40 quilômetros da fronteira internacional – tais entidades norte-americanas procuram dividir o movimento de vanguarda na Integração Sul-Americana, além de transferir a esfera decisória do projeto para o âmbito do Direito Internacional, no qual podem “intervir em nome do bem comum”, subtraindo tais decisões do âmbito do direito do Estado brasileiro e, em última análise, violando a soberania nacional por meio de um jogo de “soft power” que traz vulnerabilidades à região. Gostariam muito de ver Brasil e Bolívia em choque, isolar Evo Morales e, com isso, abrir caminho para um golpe em La Paz. Com certeza, depois de um golpe, as empresas americanas chegariam em massa para espoliar o povo boliviano.
Em defesa da Bolívia, tais ativistas deveriam se mobilizar para que Sanchez de Lozada, o presidente que ordenou o massacre de bolivianos na “Guerra do Gás” e vive hoje confortavelmente em Miami, fosse entregue à Justiça boliviana.
Ora, os projetos de hidrelétricas no Madeira representam uma fonte limpa e segura de energia, com tecnologia nacional, gerando pesquisas, renda e emprego. Os males do passado, decorrentes de grandes projetos que foram abusivos, poderão claramente ser evitados no âmbito da proposta de uma comissão de diálogo e acompanhamento da execução do projeto, mas nunca numa ação que visa declarar a “moratória do Madeira”.
Em direção a um futuro partilhado
Do conjunto dos debates nas audiências aqui realizadas podemos marcar claramente algumas tendências. Dentre elas, alguns pontos são marcantes:
- não se pode repetir o passado: os erros cometidos nos antigos projetos – sejam de usinas, de estradas, de implantação de empresas etc – não são mais admissíveis. A condição democrática do país e a organização autônoma da população não permitirão a repetição dos erros e a teimosia custará imensamente caro;
- não é possível a imposição de papéis ou identidades culturais ao “outro”: o projeto de futuro de cada um será decidido pela população local, com tanto direito ao uso dos recursos naturais do país quanto possui um paulista ou um nova-iorquino;
- não é possível impor cidadanias diferenciadas aos brasileiros: todos possuem os mesmos direitos, incluindo-se aí o direito a empregos dignos e bem remunerados;
- não é possível que o bem-estar do povo de Rondônia e a segurança energética do Brasil sejam decididos por “ONGs” sediadas e financiadas no exterior.
É neste sentido que se sente, aqui em Rondônia, o envelhecimento – muito europeu, típico dos partidos verdes dos países de alto IDH – da oposição entre agenda social e agenda ambiental. Não podemos cair na armadilha de abrir mão do bem-estar de milhões de cidadãos brasileiros, em nome de um consumo incomensurável das elites ricas do planeta. O desafio – para o Estado, para empresários e para o movimento social autônomo – é alinhar a questão social e a questão ambiental, no âmbito da agenda do Estado-Nação.
*Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
(
Agência Carta Maior, 17/11/2006)