O Brasil tem avançado na universalização do serviço de água, mas persistem desigualdades abismais: os 20% mais ricos têm níveis de acesso semelhantes aos do Primeiro Mundo, enquanto os 20% mais pobres padecem de taxas de cobertura mais baixas que as do Vietnã. Por isso, o país precisa estabelecer metas de redução das disparidades no setor e fixar uma quantidade mínima de água disponível aos brasileiros. É o que defende o economista Flavio Comim, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e consultor do Programa dasNações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
Comim é o primeiro debatedor do Fórum sobre o Relatório de Desenvolvimento Humano, lançado nesta segunda-feira (13/11). Cada semana, um especialista vai discutir com os internautas os assuntos ligados ao Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, como água, saneamento e desenvolvimento humano. Nesta semana de estréia, o tema é: "Como o Brasil pode levar água e saneamento aos mais pobres?"
Ao defender metas de redução da desigualdade nessa área, Comim ecoa um dos pilares do Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) 2006, que defende como direito humano mínimo, em níveis mundiais, 20 litros diários de água limpa por pessoa para satisfazer as necessidades básicas — básicas mesmo: tomar água e fazer higiene pessoal; incluir atividades como lavar a roupa e tomar banho eleva esse volume para 50 litros, no mínimo.
No Brasil, consome-se em média 190 litros por dia, segundo o relatório, embora haja discrepâncias agudas entre as regiões. Dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, que usa metodologia diferente da do relatório, aponta que o consumo por habitante varia de 174 litros por dia, no Sudeste, a 107,3, no Nordeste — nos dois casos, trata-se de consumo médio, que inclui desde casebres em favelas até casarões com piscina e sistema de irrigação dotado de aspersores reguláveis.
“Persistem muitas desigualdades regionais e interpessoais no consumo de água no Brasil. Há muita variabilidade espacial na provisão, que está correlacionada com incidência diferenciada de mortalidade infantil em todo o Brasil”, destaca Comim. Para levar o benefício aos mais pobres, afirma, é preciso recorrer a mecanismos como subsídios e “tarifas de sobrevivência” (baratas ou de graça).
Apesar disso, Comim avalia que o Brasil está no caminho certo para universalizar o acesso à água limpa, mas defende mais ênfase às áreas pobres e aos serviços de saneamento e tratamento de esgotos. Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida por e-mail.
Agência PNUD - O Relatório de Desenvolvimento Humano mostra que 90% da população brasileira tem acesso à água limpa. Para atingir a meta dos Objetivos do Milênio, o país precisa chegar a 91,5% até 2015. Pode-se classificar o desempenho do Brasil como satisfatório?
Flavio Comim - Sim, mas é preciso qualificar a resposta. Sem dúvida a provisão de água potável melhorou nesses últimos anos devido a investimentos mais pesados no setor. No entanto, o percentual de água tratada em relação à quantidade de água produzida tem oscilado. Além disso, persistem muitas desigualdades regionais e interpessoais no consumo de água no país. Há muita variabilidade espacial na provisão, que está correlacionada com incidência diferenciada de mortalidade infantil em todo o Brasil. Outro ponto: universalizar a provisão de água, sem o devido tratamento de esgotos, é propiciar uma oportunidade para que esgotos não-tratados contaminem as pessoas. Por esta razão, a política de águas não pode ser vista em isolamento da política de saneamento. Por fim, cabe destacar que o acesso a uma fonte de água melhorada é maior em países como o Uruguai, a Argentina, o Chile, a Costa Rica ou mesmo a República Dominicana. O Brasil está no caminho certo, mas é importante manter padrões próprios na provisão de água limpa com ênfase principalmente nas áreas menos desenvolvidas do país.
Agência PNUD - Que políticas brasileiras o sr. destacaria nessa área?
Comim - As ações para a provisão de água potável e saneamento extrapolam os limites de políticas isoladas. Elas contemplam ações institucionais de natureza de longo prazo. Cabe aqui mencionar o exemplo do DMAE (Departamento Municipal de Água e Esgotos) de Porto Alegre, instituído em 1961, responsável por um fornecimento de água de boa qualidade a quase toda a população de Porto Alegre. No entanto, existem vários programas atuais que poderiam ser mencionados, tais como o Proágua Semi-Árido ou o Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas (PRODES), que têm dado uma contribuição decisiva para uma melhor provisão de água potável no país.
Agência PNUD - Como caracterizar as desigualdades brasileiras no acesso à água e saneamento?
Comim - O RDH de 2006 destaca que, no Brasil, os 20% mais ricos têm um acesso a água e saneamento em níveis comparáveis aos dos países desenvolvidos, mas que entre os 20% mais pobres proliferam taxas de cobertura mais baixas do que no Vietnã. Por essa razão, é importante nos fixarmos nos primeiros passos a serem seguidos na definição de mínimos (tais como a meta de 20 litros de água limpa por pessoa por dia) sociais e metas de redução da desigualdade na formulação de políticas públicas para o setor.
Agência PNUD - É possível estabelecer um perfil da população que não tem acesso a água limpa no Brasil?
Comim - Sim, é uma população prioritariamente rural, que vive na sua maior parte nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Isto não quer dizer que moradores das periferias das grandes cidades não estejam também sujeitos à falta de água limpa.
Agência PNUD - Após levar água a 90% da população, quais são os principais desafios agora?
Comim - O principal desafio é o saneamento e o tratamento de esgotos. Quando levados em conjunto, o percentual de moradores em domicílios particulares urbanos com acesso simultâneo a água de rede canalizada e esgoto de rede geral ou fossa séptica mostra grande variação no Brasil. Dados do IPEA mostram que, para 2005, a cobertura da região Sudeste chega a 88,7% enquanto a das regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte são respectivamente na ordem de 56,9%, 47,2% e 42,6%. O tratamento de esgotos ainda é muito baixo em todo o país, e também merece ser objeto de foco público.
Agência PNUD - Os domicílios ainda não ligados à rede de água são os mais pobres, com raras exceções. O primeiro passo, claro, é assegurar-lhes o serviço. Mas, sendo pobres, eles podem pagar por isso?
Comim - Possivelmente não. Como destaca o Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, sendo a água um direito humano, é responsabilidade do Estado financiá-la para aqueles que não podem pagar por ela. De fato, do número total de pessoas que não têm acesso à água potável no mundo, a maior parte (cerca de 660 milhões a 740 milhões de pessoas) vive com menos de 2 dólares por dia.
Agência PNUD - Como resolver, então, essa questão financeira?
Comim - Isso pode ser feito através de uma provisão pública ou privada, tanto faz. O importante é que critérios de qualidade, quantidade e proximidade sejam obedecidos. Os meios através dos quais o financiamento público pode ser operacionalizado incluem subsídios de ligação, tarifas de sobrevivência, subsídios cruzados etc. É fundamental que o financiamento da água possa assegurar tanto equidade como eficiência na gestão.
Agência PNUD - A quantidade que o Brasil investe em água é suficiente? É preciso gastar mais ou basta gastar melhor?
Comim - De uma perspectiva de desenvolvimento humano, o importante não é ver quanto os países gastam em determinado item. Como diria o professor Amartya Sen, o espaço informacional para fazer uma avaliação sobre o bem-estar dos indivíduos não deve limitar-se ao espaço dos recursos (financeiros). Devemos ver qual o impacto que esse gasto tem sobre aspectos da vida humana, como longevidade, educação, mortalidade infantil etc. Deste ponto de vista, enquanto as taxas de doenças e mortalidade infantil não baixarem no Brasil a níveis que consideremos “inevitáveis”, podemos dizer que não investimos suficientemente. É claro que é possível gastar melhor, mas iniciativas correntes da Agência Nacional de Águas (ANA), de institucionalização de uma política nacional para o setor, já vão nessa direção.
Agência PNUD - Os Estados da região Norte do Brasil estão na maior bacia hidrográfica do mundo, mas são os que têm a menor cobertura de água do país. Por que isso ocorre?
Comim - Isso ocorre devido a um problema de distribuição e de falta de poder das comunidades mais carentes da região Norte. O problema da insegurança da água, como destaca o RDH de 2006, é um problema que reside na sua gestão. Como tal, é menos um problema de escassez física do recurso natural do que de vontade política, transformada em priorizações orçamentárias e focalização do gasto público, para a provisão a comunidades carentes.
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Agência PNUD Brasil, 14/11/2006)