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2006-11-14
Temos hoje possibilidade de abrir uma agenda para tratar da convivência digna do homem com o semi-árido nordestino. Uma ótima oportunidade de o presidente Lula passar para a história do país como o presidente que voltou seu olhar para essa região.

João Suassuna*

No primeiro mandato do presidente Lula, a transposição do Rio São Francisco passou por três momentos singulares: o embargo da obra, causado por ação civil pública impetrada pelo Ministério Público da Bahia; a greve de fome do bispo de Barra (BA), Dom Luís Flávio Cappio, que veio a promover novas rodadas de negociações junto ao governo federal em Brasília, e o silêncio quase que total sobre o projeto, demonstrado pelos candidatos à Presidência da República na campanha de 2006.

O embargo judicial foi estabelecido em conseqüência dos danos ambientais que seriam causados pelo projeto ao longo de toda a bacia do rio, e sua liminar, que perdura até a presente data, encontra-se no Supremo Tribunal Federal (STF), no aguardo de parecer do ministro Sepúlveda Pertence.

O ato extremado do bispo de Barra, o qual já tivemos a oportunidade de classificar neste meio de comunicação como o santo jejum do bispo, resultou numa aproximação entre os movimentos sociais e o governo federal para a discussão das questões do São Francisco, agora sob nova ótica: a de dizer "não" à transposição, de dizer "sim" à revitalização de sua bacia e, a mais significativa delas, de se abrir uma agenda para tratar de assuntos relacionados à convivência digna do homem com o semi-árido nordestino. Essa última questão, aliás, nunca foi prioridade dos governos, e muito menos na primeira gestão do presidente Lula.

Atualmente, essas discussões estão interrompidas temporariamente, em virtude da realização recente das eleições. Diante dos três assuntos pautados nas discussões com o governo federal, merece destaque aquele relacionado com a revitalização da bacia do Rio São Francisco. Inicialmente, gostaríamos de dizer que não acreditamos no projeto de revitalização na forma em que ele está sendo apresentado à sociedade pelo Ministério do Meio Ambiente. Na nossa visão faltam-lhe os avais da ciência e da técnica e, por que não dizer, do sentimento e da capacidade para realizá-lo, tão necessários em projetos dessas dimensões. Portanto, cremos que não existe clareza nas ações técnicas e, muito menos, na gestão ambiental quando o assunto é o Velho Chico.

Recentemente, fomos conhecer de perto o projeto Manuelzão, em Minas Gerais, que visa, entre outras ações, à revitalização da bacia do Rio das Velhas, importante afluente do rio São Francisco. Ficamos surpresos e até impressionados com o que vimos, principalmente com a forma magistral de como as ações do projeto estão sendo implementadas. Elas são geridas através de visão macro e sistêmica, dando-se prioridade à mobilização social através da atuação do comitê e dos subcomitês de toda a bacia hidrográfica do Velhas – bem como da participação de empresas, centro de pesquisas e universidades. No projeto atua-se localmente, mas com uma visão global, considerando o planeta como um todo.

Esta visão inovadora de Apolo Lisboa, coordenador do projeto Manuelzão, convenceu o governo do Estado de Minas Gerais de que seria possível a realização das metas previstas para o ano 2010: navegar, nadar e pescar nas águas do rio das Velhas. Tanto é assim que, em 2004, o governador Aécio Neves, conforme nota editada na imprensa local, assumiu compromisso com a meta de nadar com Apolo Lisboa em suas águas.

Essa atitude do governo de Minas está arraigada em todo um simbolismo e sentimento de crença nas ações que estão sendo implementadas no projeto. De nossa parte sugerimos que, para a revitalização do rio São Francisco, no segundo mandato do presidente Lula, as autoridades comecem por adotar, como padrão, o modelo do Manuelzão, evitando as conotações político-partidárias que o projeto possa vir a ter. No tocante ao silêncio demonstrado pelos candidatos à Presidência da República quanto ao projeto, entendemos que isso foi feito de forma deliberada, tendo em vista a não pertinência de se tratar de um projeto com um orçamento muito elevado em um período eleitoral (está prevista a aplicação de cerca de R$ 4,5 bilhões em sua primeira fase). Caso isso fosse feito, corria-se o risco de dar ao projeto uma conotação eleitoreira.

Se por um lado esse silêncio foi obedecido pelos candidatos à Presidência, o mesmo não se pode dizer daqueles que pleiteavam a Câmara Federal. Nesse caso, a campanha correu solta com o incentivo à transposição, principalmente no Estado do Ceará, onde o candidato Ciro Gomes desfraldou a bandeira do projeto, resultando, guardadas as devidas proporções, no deputado mais votado no Brasil. Sem menosprezar ou desmerecer as qualidades políticas do deputado Ciro Gomes, em uma avaliação mais acurada se chegará à conclusão de que essa avalanche de votos por ele recebida deveu-se ao seu envolvimento com as questões do Rio São Francisco. Essa, no nosso modo de entender, é uma forma de transmitir ao povo uma ilusão. Precisamos evitar que fatos como esses se tornem rotina no Nordeste. Não queremos isso. A região não merece.

Finalmente, ficamos na torcida para que, na volta das negociações em Brasília, o governo leve em consideração os avanços já alcançados, uma vez que acreditamos que seja uma ótima oportunidade de o presidente Lula passar para a história do país como o presidente que voltou seu olhar para o semi-árido nordestino, e que colocou a região no local em que ela sempre mereceu estar.

*João Suassuna é engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
(Agência Carta Maior, 10/11/2006)

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