O Aqüífero de Ingleses, no Norte da Ilha de Santa Catarina, sofre um processo de degradação que pode se tornar irremediável a qualquer momento. A superexploração do manancial, a falta de saneamento básico e a ocupação desordenada podem acabar com a única fonte de água potável de 130 mil pessoas. Para os otimistas, ainda haverá água por muitos anos, mas a realidade é que os órgãos públicos não têm a mínima idéia da quantidade de água retirada do aqüífero diariamente, nem quanto tempo ele pode resistir.
O Aqüífero de Ingleses é protegido por uma camada de areia permeável e é abastecido exclusivamente pela água da chuva – diferente dos aqüíferos fissurais, como o Guarani, que recebem água do subsolo. Seu potencial de recarga é de 10 milhões de metros cúbicos por ano. De acordo com a geóloga Eliane Westarb, autora de um dos poucos estudos disponíveis sobre o Aqüífero de Ingleses, para garantir a qualidade da água, a exploração deve ser de, no máximo, 70% da capacidade de recarga do manancial.
Fazendo as contas, o resultado é preocupante. A Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan) retira aproximadamente de 50% da água disponível no aqüífero em 22 poços de captação. Vinte por cento são disputados sem qualquer controle por cerca de 6 mil poços clandestinos nos bairros de Ingleses e Rio Vermelho, perfurados tanto em barracos na favela do Siri quanto em hotéis de luxo e condomínios fechados.
A licença para perfurar poços no Aqüífero de Ingleses só começou a ser exigida pela Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fatma) em 2002, para empreendimentos que captassem mais de mil litros de água por hora. Mas a regra durou apenas quatro anos. Por falta de conhecimento sobre a capacidade do aqüífero, a Fatma suspendeu totalmente a emissão de licenças no início deste ano.
“Não se sabe qual é a situação do aqüífero, só vamos saber que ele está esgotado quando já tiver acontecido”, diz Cícero Almeida, técnico da Gerência de Licenciamento Urbano da Fatma. Segundo ele, é impossível saber exatamente quantos poços existem e quanto de água é retirado. “Pela lei, a Fatma não pode invadir a casa das pessoas pra fiscalizar cada ponteira. Os órgãos não têm como estimar a vazão”, diz.
Se a vazão superar 70% da recarga, o aqüífero será irremediavelmente contaminado com a água do mar. O Aqüífero de Ingleses estende-se por uma área de 30 quilômetros quadrados de extensão e está a 70 metros de profundidade. O lençol freático sustenta um delicado equilíbro entre água potável e água salgada, que flui para o aqüífero em uma zona chamada de “cunha salina”. Eliane Westarb explica que a água salgada é mais pesada e fica na parte de baixo do lençol freático. Quando o manancial está cheio, as duas camadas de água ficam totalmente isoladas uma da outra, mas, se o nível for muito baixo, o equilíbrio é perturbado, misturando definitivamente as duas camadas de água.
De acordo com Cícero Almeida, o desastre já aconteceu na Praia Brava, um dos mais elegantes balneários da Ilha de Santa Catarina. Em menos de uma década, dezenas de condomínios foram construídos e exauriram a capacidade de abastecimento da população. “Há três anos, a superexploração provocou contaminação com a cunha salina, e a água não pôde mais ser bebida”, conta Almeida.
Além dos problemas provocados pela ação humana, a estiagem dos últimos meses aumentou o risco de problemas no abastecimento em toda a Ilha de Santa Catarina. A falta de chuvas praticamente secou pequenos mananciais no Monte Verde, Morro do Quilombo, Morro da Lagoa e da Costeira do Pirajubaé, onde o abastecimento depende de caminhões-pipa.
Mas o clima também já afeta os grandes mananciais. De acordo com Cláudio Floriani, superintendente de Meio Ambiente da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento (Casan), a Lagoa do Peri, que abastece todo o Sul e parte do Leste da ilha, atingiu o menor nível dos últimos 20 anos. No Norte da ilha a preocupação é a mesma. “Com a estiagem, o risco para o Aqüífero de Ingleses é muito grande”, diz.
Para piorar, o esgoto
Como se não bastasse a superexploração do manancial e a ocupação desordenada, o esgoto de todo o Norte da ilha flui para o subsolo. A região não tem sistema de coleta e tratamento dos resíduos, e, por ser uma região arenosa, as fossas sanitárias não servem para conter a poluição. “As fossas sanitárias não funcionam em Ingleses por causa da variação no nível do aqüífero. Quando o nível da água sobe, mistura-se com o resíduo das fossas. Naquela região, a única solução seria rede de coleta e tratamento de esgoto”, explica Eliane Westarb.
A população não sabe, mas já pode estar bebendo água contaminada. Muitas vezes a fossa sanitária está ao lado da ponteira e quase no mesmo nível de profundidade. “Se a pessoa fizer um poço de baixa profundidade, corre o risco de beber água contaminada pelo próprio esgoto”, diz a geógrafa.
Perfurar poços na região do Aqüífero de Ingleses é atividade rotineira. Tem até cadeia de produção: lojas que vendem os motores, oficinas para consertar os equipamentos e profissionais especializados. Seu Odilon é um deles, perfura em média quatro poços por semana. Cobra R$ 400,00 pelo serviço, fora o motor, que pode variar de R$ 350,00 – para os de segunda mão – até R$ 600,00. O aqüífero está a 70 metros de profundidade, mas Seu Odilon perfura a cerca de 20 metros, diz que “a água é muito boa” e garante: “Não tem problema nenhum com a Casan”.
Para muitos, os poços clandestinos são a única solução. Muitas pessoas vivem em terrenos de loteamentos irregulares e não conseguem legalizar o imóvel junto à prefeitura. Sem o aval da prefeitura, os moradores não têm permissão para ligar água nem luz. Com a burocracia, a saída são as ponteiras e as ligações clandestinas na rede elétrica.
Luci do Carmo Alves, moradora do bairro do Rio Vermelho, comprou um terreno em 2004 e até agora não conseguiu autorização para ligar água e luz. “Em setembro consegui regularizar minha casa na prefeitura, fiz o cadastramento, paguei os impostos e mesmo assim não consegui ligar a água e a luz. A prefeitura quer que eu leve fotos da minha casa para eles entrarem com um processo e só então pedir a ligação”, reclama.
Os órgãos públicos até tentaram regularizar os poços clandestinos na região, mas a iniciativa fracassou. No início deste ano, o Ministério Público Estadual, a Casan e a Fatma fizeram uma campanha distribuindo questionários para que os moradores informassem a condição de seus poços, mas nenhum deles foi respondido.
Para Eliane Westarb, o problema da campanha foi o foco. “Eles começaram pelos pequenos, quando o maior problema está nos grandes empreendimentos, nos hotéis, resorts e condomínios. As pessoas têm medo de que a Casan vá fechar os seus poços, abrir processos contra eles, além de perderem a água que têm de graça. É lógico que ninguém iria se denunciar. As pessoas pensam: Por que eu tenho que me acusar e o hotel não?”, critica.
Para ela, o maior problema são os condomínios e hotéis. O adensamento urbano para garantir a infra-estrutura turística prejudica o sistema de recarga do aqüífero. As pavimentações diminuem a área de infiltração da chuva e também prejudicam a captação feita pela Casan. “A Casan teria que desativar os poços existentes, porque estão muito próximos da população. O perímetro de proteção dos poços, pela lei, é de 400 metros de qualquer atividade urbana. Atualmente as casas estão quase em cima dos poços”, diz Westarb.
Os grandes empreendimentos também reduzem a área de expansão dos poços de captação. Segundo Westarb, a região do Residencial Costão Golf – que está embargado na Justiça por causar risco de contaminação da água com fertilizantes e agroquímicos – poderia servir como área de expansão para os poços da Casan. “O problema do Costão Golf não é apenas o risco de poluição do aqüífero, mas principalmente o fato de, além de aumentar o consumo de água, ocupar justamente uma área que deveria ser utilizada para ampliar o abastecimento”, denuncia. “As pessoas precisam se dar conta de que o Norte da ilha só tem uma fonte de água potável, e que ela não resiste a tanta ocupação”, diz.
Durante a temporada de verão, o problema se agrava. A população nas praias triplica e, junto com ela, o consumo de água. Cláudio Floriani diz que os problemas de abastecimento no verão são “isolados”. “As pessoas alugam casas para 20 pessoas, aí não tem condições de garantir o abastecimento. O turismo ainda é muito exploratório. A Casan prevê o armazenamento para o acréscimo da população, mas as pessoas precisam desenvolver um consumo mais consciente”, diz.
Casan já tem projeto para substituir o Aqüífero de Ingleses
Já contando com a morte do aqüífero, a Casan já tem um “plano B”. A Companhia tem um projeto para viabilizar recursos do banco japonês JBIC e do Prodetur (programa de fomento ao turismo do Governo Federal) para construir um duto submarino que trará água do continente, no município de Canelinhas. A fonte é o Rio Tijucas, que nasce na Serra catarinense. Segundo Cláudio Floriani, o abastecimento do Rio Tijucas atualmente é “insignificante”. “Pode sustentar o Norte da ilha com folga”, diz.
Mas, segundo ele, esse é um projeto para o futuro. “Para a demanda de curto prazo fizemos um reforço no Norte da ilha via adutora de Pilões [no município de Santo Amaro da imperatriz]”, diz.
Para Eliane Westarb, o projeto Canelinhas é uma medida irresponsável e serve apenas para legitimar a especulação imobiliária. “Não é por falta de água que o aqüífero está em risco, é porque a região está crescendo demais. A população está se instalando sobre áreas que deveriam ser reservadas para captação”, acusa.
Segundo ela, o Rio Tijucas não pode ser explorado para resolver o problema. “Canelinhas já está sobrecarregado também, a água não está sobrando, temos é que garantir a perenidade do aqüífero que já temos”, diz.
Eliane Westarb também critica a visão de “futuro” da Casan. Para ela, o projeto não chegará a tempo de garantir o abastecimento. “Só vai ser construído [o duto submarino] quando houver um desastre, e daí levará pelo menos cinco anos até que a obra fique pronta. Que água vamos beber até lá?”, questiona.
Projeto busca conscientizar para o futuro
Eliane também coordena o projeto “Água nossa de cada dia”, realizado em parceria com a Secretaria Estadual de Educação e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. O projeto foi inaugurado em março deste ano e envolve 30 crianças do ensino fundamental de sete escolas municipais e uma estadual, com o objetivo de conscientizar as crianças para a importância dos recursos hídricos da Ilha de Santa Catarina.
O programa inclui visitas à estação de tratamento de esgoto da Casan, aulas na Universidade Federal de Santa Catarina sobre a estrutura geológica da ilha e saídas de campo até o manguezal da Estação Ecológica Carijós, no Norte da Ilha.
Os alunos fizeram um jornal sobre a importância da água, além de confeccionar um livro de poesias e, no próximo dia 22, apresentarão peças teatrais sobre o Aqüífero de Ingleses, no teatro da UFSC.
Segundo Eliane Westarb, o projeto, que se encerra em dezembro, conseguiu desenvolver nos alunos o sentimento de responsabilidade pelo aqüífero. “O que mais me comove é ver uma criança da primeira série me encontrar no corredor da escola e gritar
a-qüí-fe-ro!”, diz.
(Por Francis França, AmbienteJÁ, 14/11/2006)
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