Na última quarta-feira (8/11), a representante-residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) no Brasil, Kim Bolduc, proferiu discurso, durante o lançamento do Relatório de Desenvolvimento Humano 2006, em Brasília. Ela assinalou que a crise da água perpetua as desigualdades sociais. Veja o pronunciamento na íntegra:
Senhor Cláudio Langone, secretário-executivo do Ministério de Meio Ambiente;
Senhor José Machado, diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA);
Senhor Abelardo Oliveira, secretário de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades;
Senhor João Bosco Senra, secretário de Recursos Hídricos;
Senhoras embaixadoras; senhores embaixadores; membros do corpo diplomático; representantes de organismos internacionais; colegas das Nações Unidas; membros da academia e do meio jornalístico; senhoras e senhores.
Agradeço a presença de todas e todos e em especial o apoio e gentileza da ANA - anfitriã ideal para este tão significativo evento.
Em 1990, quando o economista e pensador Mahbud Ul Haq se sentou com o prêmio Nobel Amartya Sem para idealizar o primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano, ainda não era possível prever a dimensão que tomaria esse trabalho. Através do poder de atração do Relatório, lançado anualmente pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), foi possível chamar a atenção para a avaliação crítica do processo de expansão das liberdades que conhecemos como o Desenvolvimento Humano.
Nesses últimos 16 anos, o Relatório só fez ganhar pertinência, ao passo que conseguiu centrar a análise do desenvolvimento não mais exclusivamente em dados econômicos, mas nos seres humanos.
Cada relatório soube levar à atenção da comunidade internacional — muitas vezes de maneira vanguardista — temas de grande relevância para a aldeia global.
O Relatório de 1994, por exemplo, inovou ao introduzir a idéia da segurança humana no debate sobre o desenvolvimento, olhando além das estreitas percepções da segurança nacional para focalizar-se nas vidas das pessoas. O Relatório de 1995, que coincidiu com a Cúpula de Beijing, introduziu uma medida de desenvolvimento que leva em conta as desigualdades entre homens e mulheres, demonstrando que não há desenvolvimento efetivo se as necessidades das mulheres não forem levadas em conta especificamente.
O Relatório de 2004 mostrou que, para que o mundo erradique a pobreza, tem que enfrentar primeiro, com êxito, o desafio da construção de sociedades culturalmente diversificadas e inclusivas. Nos outros anos, o Relatório alertou sobre o Crescimento sem emprego, sobre a Globalização e a Exclusão Digital, sobre as Regras Desiguais do Comercio Internacional, dentro outros temas da atualidade, mas procurando sempre propor medidas para melhorar a situação e avançar na agenda de desenvolvimento humano.
O Relatório de Desenvolvimento Humano deste ano — talvez o mais técnico, certamente o mais denso de todos — aborda um tema que demanda urgente atenção internacional: a questão da água. O foco do trabalho é indiscutivelmente pró-pobre, já que a pobreza está na base da dita “crise da água” e já que são os pobres os mais afetados por ela.
Assim como os relatórios anteriores, sua motivação central é influenciar políticas ao redor do mundo, e servir como um catalisador de desenvolvimento, favorecendo àqueles que hoje se encontram a margem da globalização, com potencialidades e oportunidades reduzidas.
O presente Relatório aborda dois aspectos específicos da crise global que têm profundo impacto no desenvolvimento humano. O primeiro, explorado nos capítulos 1 a 3, consiste na água para a vida no domicílio. São analisadas as conseqüências da falta de acesso à água e saneamento para o desenvolvimento humano e são delineadas algumas estratégias para o alcance do acesso universal à água e ao saneamento. O segundo aspecto, a água enquanto meio de subsistência, é o tema dos capítulos 4 a 6. Neles, a água é abordada enquanto recurso produtivo partilhado por países e no interior dos mesmos, e são salientados os principais desafios para uma gestão eqüitativa e eficiente desse bem precioso.
Fica claro no Relatório que quando as pessoas não têm acesso à água potável no lar, ou à água enquanto recurso produtivo, suas escolhas e liberdades são limitadas pela doença, pobreza e vulnerabilidade. No entanto, no início do século 21, 1,1 bilhão de pessoas no mundo ainda não têm acesso à água potável. Outros 2,6 bilhões de seres humanos não têm acesso a um saneamento adequado.
Essas duas questões estão fortemente imbricadas. E apesar do tema central deste ano ser a água, os autores do Relatório não deixaram de lado a questão do saneamento — que, por afetar quase exclusivamente os pobres, é muitas vezes tratado como um tabu. O fato é que melhorias substantivas no acesso à água potável, passam, necessariamente por uma redução do déficit de saneamento.
“Não ter acesso” à água e ao saneamento é na realidade um eufemismo para uma forma de privação que ameaça a vida, limita as oportunidades e enfraquece a dignidade humana. Ao analisar as origens da crise da água, os autores do presente relatório partem de uma conclusão essencial: o desafio global da água não deve ser relacionado com um problema de escassez natural. Como indica o título “A água pra lá da escassez: poder, pobreza e a crise mundial da água”, a falta de acesso à água decorre de fato de estruturas assimétricas de poder e das armadilhas perversas da pobreza.
A crise da água é uma “crise silenciosa”, uma crise dos que não têm voz e que suportam no cotidiano os efeitos devastadores da exclusão hídrica. “Tal como a fome” — afirma o Relatório — “é uma urgência silenciosa tolerada por aqueles que dispõem de recursos, da tecnologia e do poder político para acabar com ela”.
Mas a realidade é que os números dramáticos refletidos nessa crise deveriam preocupar a todos os cidadãos do mundo, pois são barreiras ao Desenvolvimento Humano, aos Direitos Humanos e à Paz.
Água e saneamento são pontos de partida catalíticos nos esforços para combater a pobreza e a fome, promover vidas longas e saudáveis e reduzir a mortalidade infantil. Não é exagero dizer que os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio — ratificados por 191 países em 2000 — só poderão ser cumpridos com melhor fornecimento de água potável e saneamento adequado.
Como cumprir as metas de redução da mortalidade infantil quando, no mundo, 1,8 milhões de crianças morrem anualmente devido à diarréia ocasionada pela água contaminada e pelas más condições de saneamento? A diarréia mata cinco vezes mais crianças do que o vírus da AIDS e é hoje a segunda principal causa de mortalidade infantil, após as doenças respiratórias. O acesso à água potável e ao saneamento pode reduzir o risco de vida de uma criança em 50%.
Como poderemos atingir à educação universal quando milhões de meninas têm a responsabilidade de coletar e transportar a água a longas distâncias, ficando assim impossibilitadas de freqüentar as escolas e condenadas a um futuro de analfabetismo e escolhas restritas? Adiciona-se a isso o fato de as infecções parasitárias transmitidas pela água ou pelas más condições de saneamento atrasarem a aprendizagem de 150 milhões de crianças, um contingente superior à população do Japão.
A provisão de água e saneamento também reduziria a incidência de doenças e enfermidades que debilitam a saúde materna, facilitando o cumprimento do quinto Objetivo do Milênio. Ajudaria do mesmo modo no árduo combate ao HIV/AIDS e outras doenças infecciosas, dado que o acesso inadequado à água e ao saneamento restringe as oportunidades de higiene e expõe as pessoas a maiores riscos.
O Relatório de Desenvolvimento Humano 2006 também mostra com muita clareza a forte imbricação entre a crise da água e do saneamento e as desigualdades. Mais de 660 milhões de pessoas sem saneamento vivem com 2 dólares ou menos por dia, e mais de 385 milhões com 1 dólar ou menos.
Além disso, o preço da água potável reflete um princípio de injustiça muito simples: quanto mais pobre se é, mais se paga. As pessoas mais pobres nas áreas urbanas dos países em desenvolvimento não somente pagam até dez vezes mais do que os residentes mais ricos da mesma cidade pela aquisição de água, como também pagam mais do que as populações dos países mais ricos. Isso se deve à grande quantidade de intermediários, que fazem o preço subir radicalmente.
Assim, o Relatório nos revela que, se por um lado as desigualdades constituem a base da crise da água, por outro lado a crise da água perpetua e alarga as desigualdades. Isso fica particularmente explícito no caso das desigualdades de gênero. O fardo da água é tradicionalmente das meninas e mulheres, que sacrificam seu tempo e educação para recolher esse bem vital. No meio rural, elas caminham longos quilômetros até chegarem às fontes de água.
No meio urbano, aguardam horas em filas, antes de poderem retornar à suas casas com alguns poucos litros de água em mãos. Além disso, as meninas, especialmente após a puberdade, têm menos probabilidade de freqüentar a escola se esta não tiver instalações sanitárias adequadas.
Do mesmo modo, os pequenos agricultores pobres enfrentam uma crise de água potencialmente catastrófica, derivada do difícil acesso à água e da competição internacional. Em muitas regiões ao redor do mundo, os agricultores abastados extraem águas de aqüíferos 24 horas por dia, enquanto os pequenos agricultores vizinhos dependem dos caprichos da chuva.
A desigualdade no acesso a água faz parte de uma tendência mais ampla exposta pelo Relatório: as disparidades entre os países e no interior dos mesmos continuam crescendo, limitando o desenvolvimento global. Neste sentido, a recente diminuição das desigualdades no Brasil aparece como um exemplo a ser seguido. Conforme sustenta o texto, “a boa notícia é que a desigualdade extrema não é algo imutável. Nos últimos cinco anos, o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, tem combinado um sólido desempenho econômico com declínio na desigualdade de renda e na pobreza”.
O Relatório destaca o programa Bolsa Família como um dos responsáveis pelos avanços do Brasil, ao lado da criação de empregos e do aumento real dos salários. Como conseqüência desses avanços, o Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil melhorou entre 2003 e 2004, passando de 0,788 para 0,792.
Esta melhora do IDH não se refletiu, todavia, no Ranking mundial, tendo em vista sua dimensão relativa. De todo modo, o ranking é apenas uma referência, que serve como um incentivo para avaliarmos os desafios e continuarmos avançando.
Com base em sua análise focada nas desigualdades, o Relatório sugere políticas concretas para solucionar a crise atual, através de uma estratégia que coloque os pobres no centro da atenção, aumentando o investimento favorável a estes.
Como ponto de partida e como princípio unificador da ação política para água e saneamento, recomenda-se que todos os governos internalizem a água como um Direito Humano constitucional, com uma meta de pelo menos 20 litros de água potável por dia para cada cidadão — e sem qualquer custo para as pessoas sem meios para o seu pagamento. Trata-se de uma quantidade ínfima, se levarmos em conta que, em média, cada cidadão europeu consome entre 200 e 400 litros de água por dia e cada norte-americano, 575 litros de água por dia.
Mas a realidade é que essa provisão universal de água não somente atenderia a critérios mínimos de sobrevivência e dignidade, mas serviria também como um fator de empoderamento dos mais pobres, indispensável ao desenvolvimento global.
O Relatório não busca posicionar-se no debate acerca da fonte da provisão da água – pública ou privada – já que existem exemplos exitosos nos dois casos. Enquanto o Chile conseguiu democratizar o acesso à água e ao saneamento através de empresas privadas, a cidade de Porto Alegre aparece como um exemplo de provisão pública eficiente e eqüitativa. O importante é que seja estabelecido um marco regulatório forte, que respeite três princípios básicos estabelecidos pelos autores do relatório: eqüidade, eficiência e sustentabilidade na provisão da água.
A mensagem que nos envia o relatório é fundamentalmente otimista: a humanidade não se encontra presa no ciclo fatalista da escassez natural. O mundo dispõe da tecnologia, dos meios financeiros e da capacidade humana para acabar de uma vez com a praga da insegurança da água na vida de milhões de seres humanos. A crise mundial no setor da água e do saneamento básico poderá ser superada no espaço de uma geração, apesar do imenso déficit atual.
O que precisamos é de vontade política, e de uma parceria internacional sustentável, articulada acerca de um plano de ação global, cujos três pilares são: a conversão da água em Direito Humano; o gasto pelos governos de pelo menos 1% do PIB em água e saneamento; o aumento da ajuda internacional.
Os autores do Relatório estimam em US$ 10 bilhões anuais os recursos necessários para atingirmos este objetivo. Isto não representa mais do que cinco a oito dias de gasto militar no mundo.
O Brasil é um grande parceiro no esforço de colocarmos à questão da água no centro da agenda internacional. Em sua contribuição especial para o Relatório 2006, o Presidente da República afirmou: “Realço a necessidade de pôr a água e o saneamento no centro da agenda de desenvolvimento global, dentro de um plano global para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Essa medida ajudaria a mobilizar recursos e concentrar o foco das pessoas no desafio que todos nós temos de enfrentar”.
Na esfera interna, trata-se de um momento propício para o país mobilizar esforços para transformar a questão da água e do saneamento — que já fazem parte do planejamento nacional — em um catalisador do desenvolvimento humano e da redução das desigualdades. Nós, das Nações Unidas, nos colocamos à total disposição para trocar conhecimentos e apoiar na implementação das inúmeras propostas contidas em cada capítulo deste Relatório.
Mais uma vez, o Relatório de Desenvolvimento Humano traz à nossa atenção um assunto que não pode ser ignorado. A água pode ser uma ponte para a paz, caso os países deixem de ver a água como um recurso estritamente nacional, para começarem a pensar em uma gestão partilhada de suas bacias hidrográficas. Mas caso falhe a cooperação internacional, teremos de enfrentar os custos ambientais, humanos e as crescentes tensões políticas.
Como bem colocou o autor do livro As Batalhas da Água: por um bem comum da humanidade, “A água é, primeiramente, uma questão política e ética. Nenhuma questão merece mais atenção por parte da humanidade. A água determina a paz universal e o futuro de todos os seres vivos”. Muito obrigada pela atenção dispensada.
(Agência PNUD Brasil, 10/11/2006)