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2006-11-10
Quando se fala na cidade boliviana de Cochabamba sobre a “guerra da água” de 2000, escritores, pesquisadores e estudantes se entranham no relato de uma epopéia, que terminou com a expulsão de uma multinacional. A capital do vale boliviano, 400 quilômetros a sudeste de La Paz, é a cidade das caixas d agua elevadas e das bombas d água domiciliares para puxar o pouco líquido que é distribuído apenas cinco dias por semana. Nos intervalos costuma circular apenas ar pelas tubulações, e com tanta pressão que é capaz de quebrar as agulhas dos hidrômetros.

A arquitetura republicana, que contrasta com avançados projetos de edifícios criados para bancos e comércio de uma cidade habitada por cerca de 900 mil pessoas, mantém frescas as marcas da pior batalha travada em suas ruas, quando pneus eram queimados e barricadas eram levantadas contra a empresa Águas do Tunari, propriedade da norte-americana Bechtel; a italiana Edison e a espanhola Abengoa, com uma mínima participação privada nacional.

Também está muito longe a imagem de Hugo Daza, jovem de 17 anos que acabou com a fronte atravessada pela bala disparada por um franco-atirador, única vítima da guerra da água iniciada nos primeiros dias de abril de 2000 e que esteve a ponto de provocar a queda do segundo governo de Hugo Banzer (1997-2001), responsabilizado por seguir às cegas a política de privatização do Banco Mundial. Está instituição incentivou, em 1999, a entrega do Serviço Municipal de Água Potável e Esgoto (Semapa) de Cochabamba para a International Water, consórcio formado pela Bechtel e Edison e Abengoa, que unidas a capitais nacionais formaram a Águas do Tunari.

Um aumento das tarifas de 200% fortaleceu a resistência de organizações agrupadas na Coordenadora Departamental da Água e da Vida, convertida em instrumento social e político que, além de derrubar a Águas do Tunari, se transformou em símbolo da luta contra o modelo econômico de ajuste estrutural e difundiu seu exemplo a outras cidades da região, como Buenos Aires, e no subúrbio de El Alto, perto de La Paz.

Em abril de 2000, as autoridades rescindiram o contrato com a Águas do Tunari e a empresa recorreu à arbitragem internacional. Em janeiro deste ano, as duas partes chegaram a um entendimento, sem pagamento de nenhum tipo de compensação. O Estado boliviano admitiu que a rescisão aconteceu somente devido à situação de efervescência social e não a falhas na prestação do serviço. Depois da forçada partida da Águas do Tunari, a Semapa retornou. No entanto, debilitada, sem recursos financeiros e com poucas expectativas de se converter no modelo exigido pelos autonomeados “guerreiros da água”.

“A Semapa não atende à demanda de água, apesar de contar com diretores-cidadãos (do movimento social). Caiu nas mãos de políticos que distorceram a guerra da água”, disse á IPS um dos fundadores da Coordenadora, o engenheiro hídrico Gonzalo Maldonado, escritor de alguns livros sobre o problema. Uma moradora do central de Cochabamba, Amparo Valda, contou à IPS que precisa armazenar água na previsão dos habituais cortes pelo menos dois dias na semana. A duvidosa qualidade do líquido a obriga a comprar água engarrafada para beber e preparar alimentos.

“Embora não se tenha chegado a um resultado ótimo com o processo de mobilização social, a distribuição de água melhorou bastante. Falta, no entanto, o compromisso dos cidadãos em participar na condução da empresa municipal”, disse à IPS o também fundador da Coordenadora e atual deputado nacional Gabriel Herbas. O analista independente Vincente Gómez-Garcíca, explicou à IPS que a guerra da água agravou os problemas de ineficiência e má administração do Semapa devido à forte politização.

Ao contrário do que ocorre com a atual empresa, antes do conflito de abril de 2000 houve uma tentativa de institucionalizar a qualificar sua gerência, mas, em seguida dominou o discurso político, e os grupos promotores da guerra da água reclamaram espaços dentro da administração, disse Gómez-García. Está opinião é compartilhada por Maldonado, que detectou problemas profundos na empresa municipal, como a perda de 50% da água por causa de uma rede deficiente de distribuição; por roubos e pelo tratamento privilegiado dado a algumas pessoas com influencia política.

A contratação de até 700 empregados, em lugar dos 270 necessários; disputas pela distribuição de empregos entre os diretores-cidadãos e a falta de um registro de instalações são outras dificuldades identificadas por Maldonado, que sugere investimentos imediatos no valor de US$ 120 milhões para resolver os problemas urgentes de captação de água e extensão da rede de distribuição. Na página do Semapa, criado em 1928, admite-se que o “serviço não é contínuo e mostra um acentuado racionamento que foi costumeiro no início do serviço de água, produto de um clima semi-árido; constante crescimento da população e infra-estrutura insuficiente para a distribuição de água aos centros de consumo”.

Talvez, está realidade de uma empresa que deveria ser um exemplo de administração tenha sido a razão pela qual o líder da rebelião, o operário Oscar Olivera, se recusou em duas oportunidades a conceder entrevistas e até mesmo evitar responder um curto questionário da IPS. Herbas resgata como êxito da gestão popular o escasso aumento das tarifas, longe das porcentagens que Águas do Tunari tentou aplicar, mas se queixa porque as pessoas adotaram uma atitude conformista e reticente quanto a participar das decisões da empresa.

De um ponto de vista diferente, Maldonado propõe a criação de uma Associação de Usuários com atuação dos 58 mil beneficiados pelo serviço e contribuições em dinheiro para fortalecer uma nova empresa tendo por base a atual, da qual não estaria excluído o setor privado como acionista. Sua proposta também compreende a inclusão das pequenas cidades que rodeiam Cochabamba para evitar no futuro enfrentamentos internos que poderiam levar ao fechamento das fontes de água localizadas próximas dessas localidades. “A lógica econômico-financeira é fria, e não há outro caminho para sustentar os investimentos que não o aumento das tarifas”, disse Gomez-García.

O reajuste de 5%, aplicado em maio, compreende as tarifas domiciliares que oscilam entre US$ 2 e US$ 15,6, de acordo com uma categoria que tarifa com maior valor as zonas habitadas por pessoas de renda maior. O reajuste foi aplicado em cumprimento a acordos entre o Semapa e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que aceitou emprestar US$ 11,5 milhões para obras de ampliação das redes de fornecimento para bairros pobres.

A imagem difundida é, e continuará sendo, a da luta de um povo que se levantou contra o capitalismo global, da qual extraem métodos que são difundidos via Internet, com a tomada simbólica de Cochabamba, a queima pública de contas, os grafites nos muros, as marchas e a consulta popular. Desde a sede do governo nacional se acompanha com atenção a Semapa, porque no último dia do ano a corporação francesa Suez, dona da empresa Águas do Illimani, que atende às cidades de La Paz e El Alto, deverá deixar o país, porque outra guerra hídrica, travada em janeiro de 2005, assim determinou.
(Por Franz Chávez, da IPS, 09/11/2006)
http://www.envolverde.com.br/materia.php?cod=24446&edt=1

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