Sermão aos Peixes do Sinos - Artigo
2006-11-08
Sabem, aquele santo que falava aos peixes (aquele mesmo que ficou mais famoso por ser
casamenteiro), pois foi visto às margens do rio dos Sinos diante de uma imensa multidão
de cabecinhas que saíam para fora da água.
E foram essas as palavras dele: “Infelizes irmãos das águas, falo a vocês, pois talvez escutem e entendam melhor do que aqueles que tinham mais obrigação de fazê-lo. Vocês, os que ainda não morreram, devem estar espantados com tudo o que aconteceu, que já era previsível há tanto tempo e devem estar mais ainda envergonhados pela maneira como a questão foi tratada. Vocês viram que essa catástrofe foi tratada como uma novela policial – a procura dos criminosos, a busca pela arma do crime e a avidez por saber quais as penas. Vocês sabem que era preciso identificar, mesmo, quem tinha colocado a gota dágua (ou melhor a gota de sujeira) que fez extravazar a taça da poluição que vinha enchendo há tanto tempo. Mas vocês sabem, também que não resolve nada somente punir dois ou meia dúzia de infratores sem atacar as causas todas do problema. Vocês, criaturas aquáticas, sabem que há muito tempo a concentração de indústrias nessa bacia hidrográfica (ou no Vale, como vocês preferem chamar), vêm retirando a água e despejando os resíduos de uma forma que o rio não tem condições de suportar. Vocês sabem, também que muitas indústrias tratam seus efluentes, mas nem sempre bem e outras nem os tratam. Vocês sabem que a agricultura irrigada, que há alguns anos era pouco praticada no Sinos, cada vez mais retira a água e a devolve em condições piores. Vocês ainda sabem que a população cresceu enormemente, que as cidades cresceram e que isso significa mais água captada e mais esgoto devolvido – e quase todo não tratado. Para piorar, o lixo das cidades acaba muitas vezes nos arroios, nas sangas e nos próprios rios da bacia. E vocês acompanham a retirada da areia das margens e do leito, vocês viram, ao longo dos anos, o desmatamento e tantas outras ações que foram fazendo do “rio que imita o Reno” um triste caso de decadência ambiental. Por tudo isso, vocês já concluíram há muito tempo que não basta “vigiar e punir”, que há muitos e muitos responsáveis, pode-se dizer que toda a sociedade e todos os governos. Entretanto, o que vocês acompanharam, enquanto morriam, foi uma movimentação em pânico, como se tudo fosse uma surpresa.”
O santo homem continuou: “Vocês, moribundos aquáticos, acompanharam, em 1987 a criação do Comitesinos, o primeiro comitê de bacia hidrográfica do Brasil. Vocês sabem que o Comitê conseguiu sensibilizar e reunir ambientalistas, industriais, professores, dirigentes municipais, vereadores, técnicos do Estado, comunicadores locais e tantos outros que quiseram impedir ou minimizar os danos ambientais no Vale do Sinos. Vocês são testemunhas de como a poluição seria bem maior, atualmente, sem a atuação do Comitê e de organismos públicos ou privados que apoiaram suas ações. Vocês sentiram, como todos que então atuavam pelo rio e pela bacia, como aqueles esforços não podiam ter sucesso sem o respaldo de uma política pública e de um sistema de gestão instituído oficialmente. Vocês viram como o Comitesinos e seu irmão mais novo, o Comitê Gravataí foram dois laboratórios sociais onde foi gerada a doutrina que norteia (ou deveria nortear), a gestão das águas no Rio Grande do Sul. Vocês souberam que a Lei Estadual das Águas, de 1994, modelo para a Lei Federal de 1997, foi concebida a partir da vida dos dois comitês, nos seus primeiros e solitários anos. Vocês sabem que essa catástrofe, de que agora são as vítimas mais evidentes, poderia ter sido evitada se a Lei tivesse sido cumprida, com a criação da Agência técnica que deve ser o braço executivo do Comitê. Vocês sempre souberam que a Lei previa essa divisão de tarefas: o Comitê deliberando, aprovando, decidindo e a Agência executando, monitorando, cobrando e atuando junto com os órgãos estaduais do Sistema de Gestão das águas. Parece que os governantes nunca deram maior atenção a isso. Agora, que a catástrofe aconteceu, cria-se uma “força-tarefa”, instala-se o monitoramento das águas continuado, promove-se o aeramento artificial do rio, bem como se faria com um doente que não tivesse feito o tratamento devido e, na crise final, é levado para uma CTI, ligado a todo o tipo de aparelhos e tubos e tem sua vida mantida artificialmente.”
Disse ainda: “Vocês, companheiros de infortúnio de quem vive às margens dos arroios poluídos, sabem que o Comitesinos, há muito tempo, procura fazer seu Plano de Bacia, definindo o que é necessário fazer, quanto custará e quem pagará. Mas vocês, caros peixes asfixiados, sabem que os dois principais instrumentos que o Estado deveria ter implantado, a cobrança dos usuários das águas (indústrias, agricultores, abastecedores, poluidores em geral) e a outorga (permissão para os usos do rio de acordo com regras bem explícitas) não chegaram a interessar as autoridades. E o que vocês viram na atual crise? Vocês devem ter-se envergonhado em ver a confusão entre a identificação de co-responsáveis pela crise com uma “caça a bandidos” insuflada por setores da imprensa e por funcionários que ainda não assimilaram a mudança do tempo da fiscalização repressiva e da ilusão da punição pontual para o tempo da gestão compartilhada, responsável, em que a sociedade, os usuários são co-partícipes no planejamento, na geração de recursos, nas medidas saneadora e inclusive no controle e na correção aos recalcitrantes. Vocês, peixes sábios, sabem melhor do que tantas autoridades, acadêmicos, comunicadores e até ambientalistas denunciadores que todos, de uma forma ou de outra, são responsáveis pelo Sinos ter chegado a essa situação. Vocês querem, há muito tempo que os esgotos domésticos sejam coletados e tratados, antes de ser lançados no rio (e sabem que não adianta dar prazos imediatos ás prefeituras ou aos órgãos de saneamento enquanto governos e sociedade não se convencerem de que o dinheiro empregado nesse serviço é economia nos gastos de saúde). Enquanto os esgotos não forem tratados, toda a população e todas as autoridades continuarão também responsáveis pela excessiva carga orgânica e conseqüente diminuição do oxigênio que asfixia vocês. Enquanto os industriais não tiverem instalações de tratamento e não as operarem corretamente, podendo, inclusive ter ganhos econômicos com esse processo, eles serão responsáveis coletiva e individualmente. Enquanto a agricultura irrigada continuar crescendo e fazendo diminuir a água do rio, sem compatibilizar com outros usos, também esses produtores serão responsáveis. Enquanto o rio for agredido pela retirada da areia de suas margens e do seu leito, isso estará contribuindo para a deterioração. Enquanto a população não usar a água tratada com o respeito e a parcimônia devida, consumindo-a como se fosse inesgotável, toda essa população estará contribuindo para que diminua a água do rio. Enquanto todos os outros usos do rio, dos arroios, da água subterrânea forem irracionais, todos esses usuários, seja de que tipo forem, serão co-responsáveis por essa e todas as catástrofes que virão. Vocês, resistentes peixes, que estão na época da reprodução, da piracema, que justamente agora demonstravam como esse Sinos está ainda cheio de vida, vocês sabem que justamente essa circunstância agravou o drama, pois vocês foram muitos e demais para as agora escassas águas do Sinos. Vocês, experientes seres da natureza, sabem que a estiagem agrava todas as situações potenciais de crise. E acima de tudo, vocês sabem que essas são crises anunciadas.”
E concluiu o taumaturgo: “Sacrifiquem-se, peixes do Sinos, e que o sacrifício de vocês consiga o que tantos esforços do Comitesinos e de tantos defensores da gestão pública das águas não conseguiu: a implantação definitiva e concreta do Sistema Estadual de Recursos Hídricos, a criação das Agências de Região Hidrográfica, o apoio da sociedade e dos governos aos Comitês de Bacias Hidrográfica e a gestão efetiva através do planejamento e da aplicação dos instrumentos da outorga e da cobrança pelo uso das águas da natureza. Que os governantes, a sociedade toda, os técnicos, os parlamentares, os militantes ambientalistas, os comunicadores, os educadores abandonem as medidas imediatistas, paliativas e remediadoras de crises e finalmente passem a concretizar a gestão das águas.”
E quando o Santo acabou de falar, já não havia peixe vivo naquela parte do rio. Mais acima, entretanto, quase nas nascentes, em várias partes da bacia, o sol atravessava água ainda claras e fazia brilhar uma infinidade de pequenas escamas. A vida ainda continuava, apesar dos erros de uma sociedade inconsciente.
(Por Luiz Antonio Timm Grassi, engenheiro civil, fundador e ex-vice-presidente do
COMITESINOS, Ecoagência, 07/11/2006)
http://www.ecoagencia.com.br/index.php?option=content&task=view&id=1938&Itemid=62