Os esforços do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de criar as condições físicas para o prometido crescimento do país – os tão sonhados 5% de aumento do Produto Interno Bruto (PIB) a cada ano – começam já nos meses finais de 2006. Ainda esta semana, os ministros Paulo Passos (Transportes) e Silas Rondeau (Minas e Energia) prestam contas sobre o andamento e as perspectivas das obras das respectivas pastas, informações essas que devem subsidiar as viagens de vistoria dos projetos planejados por Lula para este próximo período.
O empenho do governo em turbinar as obras infra-estruturais, no entanto, pode esbarrar na oposição das populações potencialmente atingidas pelos seus efeitos "colaterais". Exemplo mais imediato da reação aos planos de Lula é a controvérsia que cerca o Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia.
Bandeira tanto de Lula quanto de Alckmin no período de campanha eleitoral, o complexo do Rio Madeira, que prevê a construção, num primeiro momento, de duas usinas hidrelétricas em Rondônia (Santo Antônio, às margens da capital Porto Velho, e Jirau, cerca de 150 quilômetros da cidade) deverá entrar, esta semana, no estágio final do processo de licenciamento ambiental. Depois de muitas idas e vindas dos Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) entre as empresas responsáveis pelo processo (Furnas e Odebrecht) e o Ibama, a Diretoria de Licenciamento Ambiental do órgão marcou, para os dias 8 a 11 deste mês, quatro audiências públicas sobre o complexo em Abunã, Mutum-Paraná, Jacy-Paraná e Porto Velho.
Nesta segunda (06/11), porém, a Campanha Viva o Rio Madeira Vivo, que congrega mais de 10 movimentos sociais e entidades ambientalistas - como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o Fórum de Debates sobre Energia de Rondônia (Foren), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Rede Brasil sobre Instituições Financeiras, entre outros - solicitou ao Ministério Público Federal que impetrasse na Justiça uma ação de adiamento das audiências.
Na ação, os movimentos sociais argumentam que as normas do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) não foram atendidas. O órgão estipula 45 dias após o recebimento do RIMA para que, apenas após este prazo, aconteça a convocação de audiências públicas.
“Ocorre que o Ibama não cumpriu com o estipulado na Resolução do Conama e em sua própria Instrução Normativa. No decorrer do prazo para solicitação de audiências, antes mesmo de se completarem os 45 dias, ele se precipitou e marcou a realização de audiências para o dia 08.11.2006, exatamente o 45º e último dia para que qualquer interessado possa solicitar a realização de audiências. Ora, fica evidente que essa convocação é ilegal. Ou seja, o legislador foi claro ao determinar que a realização das audiências deve ocorrer depois de finalizados os 45 dias para sua solicitação, mediante ampla publicidade e dentro de prazos adequados. Não poderia nunca, portanto, ser realizada exatamente no dia em que se encerra o prazo para sua solicitação, como ocorre no presente caso”, argumenta a assessoria jurídica dos movimentos.
Segundo Iremar Ferreira e Artur Moret, coordenadores do Foren, dados complementares ao EIA/RIMA, como os estudos complementares solicitados pelo Ibama, os estudos independentes do EIA/RIMA solicitados pelo Ministério Público Estadual, e o Estudo de Impacto de Vizinhança, exigido no Estatuto da Cidade, não foram disponibilizados para os movimentos sociais em tempo hábil.
“Enviamos inúmeras solicitações ao Ibama para que nos mandassem estes dados, que não estavam na Internet. Não fomos atendidos até semana passada. O próprio Ministério Público Federal só recebeu estas informações nesta segunda (06/11)”, diz Moret. Ferreira argumenta também que os demais dados não foram apresentados de forma inteligível para a população, já que o Conama fala em disponibilidade das informações em linguagem acessível.
Questionado sobre a questão, Luiz Felippe Kunz Júnior, diretor de Licenciamento Ambiental do Ibama, rebate as críticas afirmando que todos os dados foram disponibilizados no prazo legal de 45 dias na página eletrônica do órgão. Por outro lado, argumenta, não é função do Ibama informar as populações de forma mais didática, mas sim dos empreendedores Furnas e Odebrecht. “Não é costume do Ibama disponibilizar material para a população”, explica.
Para Kunz Júnior, a tática dos movimentos de brecar o processo de construção das hidrelétricas por meio do impedimento das audiências públicas é errada, já que estas seriam justamente os espaço para apresentação de demandas e questionamentos.
Problemas de relacionamento
A oposição dos movimentos ao complexo hidrelétrico, mais do que uma auto-defesa contra os impactos socioambientais do projeto, foi fruto de uma série de atropelos dos processos de negociação e diálogo com a sociedade civil por parte dos empreendedores, explica o sociólogo Luis Fernando Novoa, membro da Rede Brasil. Diante da possibilidade cada vez mais concreta da aprovação, no entanto, os movimentos sociais pleiteiam agora que o Estado assuma uma postura legal e socialmente responsável frente aos impactos do complexo.
Segundo Novoa, o objetivo dos movimentos não é “martelar sobre alternativas abstratas, mas avaliar que tipo de relação está se estabelecendo entre governo e sociedade civil”. O processo de licenciamento ambiental, argumenta, teve uma série de furos e inconsistências, uma falta de compromisso prévio com o saneamento dos passivos socioambientais que fere o próprio propósito da avaliação dos impactos.
“As falhas na informação trazida nos estudos ambientais eram de diversas ordem e atingiam pontos fundamentais para a avaliação do impacto ambiental do empreendimento. Nem poderia ser diferente. É praticamente impossível em pouco mais de meio ano reunir, produzir e processar informações suficientes para se fazer um adequado prognóstico dos impactos que assolariam a região com a construção de empreendimentos dessa magnitude, ainda mais levando-se em conta que havia – e ainda há – pouquíssimos estudos já produzidos sobre os muitos aspectos ambientais relevantes para se fazer uma adequada avaliação de impacto ambiental”, diz a ação dos movimentos.
Luiz Felippe Kunz Júnior reconhece que existem lacunas no EIA, mas argumenta que o processo de licenciamento é contínuo e não se resume aos seus resultados. Por outro lado, também reconhece que “o governo já sinalizou que o projeto é de grande importância, prioritário”, o que deve levar o Ibama a acelerar a avaliação final da viabilidade ou não do complexo do ponto de vista ambiental.
Em nome desta urgência, o Ibama acabou não atendendo a dois pedidos de realização de audiências, na Comunidade de Teotônio e na Terra Indígena Karitiana. Segundo Artur Moret, a negativa no primeiro caso é ilegal, já que constam da solicitação as 50 assinaturas previstas pela resolução do Conama. Já os indígenas solicitaram ao Ibama uma audiência “em data que vocês definirem e nos avisarem com antecedência, para tratarmos especificamente da questão indígena na área de abrangência do Complexo Madeira”.
“As empreendedoras (Furnas e Odebrecht) se comprometeram com as comunidades a oferecer transporte para que participem das audiências já marcadas”, defende-se Kunz Junior. Mas os movimentos, que também questionam a metodologia das audiências e o pouco tempo disponível para o posicionamento de cada entidade, se declararam desrespeitadas.
“Caso não seja possível adiar as audiências, vamos nos mobilizar numericamente para participarmos ou, se não houver diálogo e as discrepâncias se evidenciarem, paralisarmos o processo”, afirma Luiz Novoa, da Rede Brasil.
(Por Verena Glass,
Agência Carta Maior, 07/11/2006)