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2006-11-07
Se as previsões estivessem certas, o Brasil hoje só teria índios genéricos, reduzidos não só em número, mas a uma identidade difusa, em processo de branqueamento. Era nisso que se acreditava até os anos 70. A pergunta era: ainda existem índios no Brasil? Até quando? Nos últimos anos, a questão virou pelo avesso: além de algumas etnias viverem uma espécie de baby-boom, há um número crescente de brasileiros declarando-se indígenas: são os emergentes. De algum modo, ser índio torna-se mais bacana a cada ano.

Do índio genérico ao índio emergente, a conturbada convivência do Estado com os índios tem sido contada há 25 anos pela mais completa obra de referência sobre o tema. Povos Indígenas no Brasil será lançado na terça-feira, em Brasília. Editado a cada cinco anos, o Pibão, como é chamado na intimidade, é produzido pelo Instituto Socioambiental (ISA), a mais respeitada organização do setor no país. São 866 páginas, 178 artigos, centenas de notícias, 36 mapas e 200 imagens de fotógrafos brasileiros e estrangeiros.

"Quem é índio?" A questão mais polêmica do momento é o tema de um dos capítulos. A necessidade de formular a pergunta revela uma mudança radical na situação indígena. "No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é", provoca o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. "Nosso problema era fazer com que o ainda é índio do senso comum não significasse uma etapa a ser vencida até o invejável estado de branco ou civilizado", afirma Castro. "Agora, ao contrário, todo mundo quer ser índio, dizemos, intrigados e orgulhosos."

A história do Pibão começou em 1971, quando os povos indígenas sobreviviam no território da invisibilidade. E a idéia de índios emergentes seria considerada uma viagem de ácido. Um grupo de jovens cientistas sociais da Universidade de São Paulo (USP) compareceu à reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e ouviu "um brado de alerta". "Os militares haviam anunciado o plano de integração nacional na Amazônia, com uma série de obras para preencher o vazio demográfico. Era o tal do integrar para não entregar", diz Beto Ricardo, secretário-executivo do ISA. "Mas era um falso vazio. A Amazônia estava ocupada por povos indígenas."

Em busca de estatísticas, o grupo descobriu que o último levantamento abrangente havia sido feito por Darcy Ribeiro nos anos 50. Os trabalhos posteriores eram fragmentados, já que a maioria dos antropólogos havia rompido com o Estado na ditadura militar. A imagem é literal: com um caderno de capa dura, do tipo abecedário, e mapas do IBGE, Beto Ricardo conta que foram registrando a lápis as notícias sobre os índios relatadas por antropólogos, missionários, fotógrafos, jornalistas e agentes de saúde.

Quem se aventurasse pelos cafundós do país era intimado a preencher uma ficha com as informações coletadas pelo caminho. Conseguiram montar uma rede de quase 2 mil pessoas que despachavam suas descobertas por carta. "O cara escrevia, à mão: Olha, tou aqui no rio tal e tem índio aqui”, conta Ricardo. "Esse projeto era considerado criminoso pelos militares, então alugamos uma caixa postal em São Paulo. Para buscar as cartas sem ser presos, criamos um esquema de segurança."

Foi com esses métodos de guerrilha que surgiu o primeiro Pibão, editado pelo Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi), em 1980. E mais tarde pelo ISA, fundado em 1994 por esse grupo de socioambientalistas. O país descobriu, então, que havia um número bem maior de índios do que imaginava. "Muitas etnias não haviam desaparecido. Mas se mimetizaram como estratégia de sobrevivência. Com o apoio de antropólogos e missionários, começaram a emergir da invisibilidade", diz Ricardo. Em 1970, pelos números oficiais do Acre, por exemplo, não existia nenhum povo indígena. Zero. O décimo volume do Pibão, agora elaborado com toda a tecnologia disponível, revela a existência de 14 etnias naquele Estado. O primeiro volume mapeava 69 povos no Brasil. O décimo registra 225, falando 180 línguas. E evidências de que existam 46 grupos isolados. Mas, apesar do crescimento da população indígena - seja por elevadas taxas de fecundidade, recuperação de identidade ou autodeclaração -, há casos de extinção iminente: 12 etnias têm apenas entre cinco e 40 remanescentes.

No primeiro mandato do governo Lula, período de análise dessa edição do Pibão, a má gestão da saúde tem ameaçado a sobrevivência de etnias. "O dinheiro saiu de Brasília, mas não chegou aos índios. Do Monte Caburaí ao Chuí, é caos total com o aumento de doenças. O governo fez alianças com as elites regionais e houve loteamento político dos cargos da Funasa", diz o antropólogo Rogério do Pateo. Os guajajaras, no Maranhão, denunciaram que entre janeiro e março de 2005 sete crianças morreram por falta de assistência. Ao longo do ano passado, eles mantiveram um secretário de Saúde municipal como refém e interromperam o fornecimento de energia elétrica de uma cidade protestando contra a falta de médicos e remédios. "Se não houver uma mudança radical no segundo mandato, o governo Lula vai acumular a acusação de ter contribuído para a extinção de povos indígenas no Brasil", afirma Ricardo.

Nas últimas décadas, os índios emergiram da invisibilidade, conquistaram direitos na Constituição e têm terras demarcadas. Foram descobertos pelo mundo pop e, depois do cantor Sting nos anos 80, hoje é Gisele Bündchen quem pede para vestir a camiseta da campanha Y Icatu Xingu. Mas os peixes aparecem boiando nos rios e os pássaros têm o curso do vôo extinto no céu. O cocar impresso na lombada do livro resume o impasse atual: em vez de penas de araras, canudinhos de plástico. É uma reação dos caiapós à proibição da Funai, em 2004, de vender artesanato com matérias-primas originadas de animais silvestres. "O Brasil é campeão mundial de desmatamento e de aves em extinção", diz Ricardo. "Mas a arte plumária indígena é exibida no exterior como símbolo da identidade nacional."

Quando os caiapós do Xingu precisam fazer um cocar de plástico, esse é um problema que atinge quem é - e quem não é - índio. O ISA provou que o índice de desmatamento em terras indígenas é de 1,14%: fora das áreas de proteção é de 18,96%. "A questão indígena é estratégica em qualquer cenário de futuro. Porque não é que a conta vai chegar. Ela já chegou", diz Beto Ricardo. "Os mais pessimistas dizem que é irreversível. Nós estamos empenhados numa agenda positiva para adiar o fim do mundo. E os índios são aliados importantes."
(Por Eliane Brum, Revista Época, 06/11/2006)
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG75677-6014-442,00.html

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