Nesta primavera de 2006, o milagre se repete pela 52ª vez. Os livros, muitos milhares deles,
estão
florindo a Rua da Praia, a Praça da Alfândega, a Sete de Setembro, a grande alameda das
palmeiras
imperiais que nos leva ao porto. A partir dali, depois de cuidadosa travessia da Siqueira
Campos e
da Mauá, chegamos ao Teatro Sancho Pança e demais espaços da literatura infantil e juvenil.
No dia da inauguração da Feira, como seu patrono, recordei o tempo em que éramos realmente
porto-alegrenses. Quando estudantes, se faltava dinheiro para a matinê ou para o futebol, a
gente
passeava pelo cais.
Lembro quando descobri o pôr-do-sol sobre o Guaíba e tive que admitir que dourava os meus
olhos tão
lindamente como o de Alegrete.
Depois, nos separaram do porto, dos seus navios, dos pescadores de caniço, com um muro de
proteção
contra as enchentes. Sempre os muros separando o povo de seus desejos, desde a Muralha da
China até
o que Bush está fazendo na fronteira do México. Porto Alegre ficou protegida das enchentes
(tomara!),
mas o Centro perdeu muito da sua poesia.
Desde o cinqüentenário, em 2004, a Feira do Livro nos devolve, ao menos por 17 dias, a
condição de
porto-alegrenses. Mas também aumenta nossa responsabilidade em relação ao Guaíba, seu delta
tombado
como patrimônio ecológico e os rios que nele deságuam. Entre eles, o Rio dos Sinos, onde
milhões de
peixes estão morrendo asfixiados.
Somos tão ricos em escritores no Rio Grande do Sul, que mal terminamos de comemorar o
centenário de
nascimento de Erico Verissimo, começou o de Mario Quintana. E no mesmo ano em que nasceu
Mario,
1906, nasceu em São Leopoldo o escritor Viana Moog, que nos deixou, entre outras obras
famosas,
Bandeirantes e Pioneiros, Uma Jangada para Ulisses e Um Rio Imita o Reno.
E vocês sabem que rio é esse? Exatamente o Rio dos Sinos, um rio doente de poluição, cujos
peixes
assassinados estão chegando até o cais do porto, local onde a Feira do Livro quer educar os
nossos
jovens e as nossas crianças.
Como vamos contar a eles aquela história do rapaz que subiu em uma árvore na frente da
Faculdade de
Direito, para que ela tivesse o direito de viver? Como vamos recordar as lições do nosso
saudoso
Lutzenberger e de Mozart Pereira Soares? Será que vamos ter que juntar todos os livros da
Feira que
defendem a ecologia e lançá-los no rio?
(Por Alcy Cheuiche, escritor e patrono da 52ª Feira do Livro de Porto Alegre,
Zero
Hora, 04/11/2006)