Os próximos dias serão agitados em Rondônia. Mais de três mil pessoas são esperadas em Porto Velho, no sábado, para a audiência pública sobre as usinas hidrelétricas do rio Madeira - entre elas ambientalistas da WWF, Greenpeace e Amigos da Terra. No evento, além da discussão do Estudo de Impacto Ambiental aprovado pelo Ibama, será apresentado algo inédito na trajetória de grandes obras analisadas pelo crivo ambiental - o estudo de 32 especialistas de áreas diversas, alguns com fama internacional, que avaliaram o impacto da megaobra no ecossistema, na rotina das populações locais, na vida do rio, na saúde pública e até nos vestígios arqueológicos da região.
A obra da vez da União, mencionada nos debates eleitorais tanto pelo presidente Lula como por Geraldo Alckmin, é polêmica mesmo antes de sair do papel. O EIA-Rima bateu no Ibama quatro vezes em 15 meses, entre idas e vindas de pedidos de complementação técnica, até sua aprovação, em setembro. O próprio presidente Lula pediu aceleração no processo.
O complexo das usinas do Madeira, um projeto de US$ 20 bilhões assinado pela estatal de energia Furnas e pela construtora Odebrecht, é pioneiro em vários pontos. Os lagos das duas usinas de Santo Antônio e Jirau não são ciclópicos como os de Balbina ou Itaipu, são "reservatórios a fio d´água", dizem os empreendedores - ponto positivo na análise dos ambientalistas. Mas as usinas de Santo Antônio e Jirau são o embrião de uma hidrovia que prevê mais duas hidrelétricas, uma na Bolívia e outra binacional - o que dá arrepios nos ecologistas que imaginam a Amazônia ainda mais pressionada pelas culturas de soja. "O importante seria analisar o projeto como um todo, com a hidrovia, e não aos pedaços", diz o norte-americano Philip Fearnside, uma das maiores autoridades científicas mundiais quando o assunto é Amazônia. Fearnside, há 30 anos na região, fica baseado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, o INPA, de Manaus, e foi um dos especialistas convidados a analisar o EIA-Rima do Madeira.
O pedido para a realização destes estudos partiu do Ministério Público de Rondônia. "Esta é uma obra que não tem igual na região. Queríamos reunir um grupo de estudiosos com renome internacional para que olhassem o projeto com olhar amazônico", explica Ivo Benitez, subprocurador-geral de Justiça do Ministério Público do Estado de Rondônia.
Em junho, o órgão assinou um termo de compromisso ambiental com o consórcio Furnas-Odebrecht, que custearia os estudos. Uma consultoria de São Paulo, a Cobrape, ficou responsável pela coordenação dos trabalhos. Na sexta-feira passada, 800 páginas de análises produzidas pelos especialistas foram apresentadas ao Ministério Público de Rondônia. "Tenho observado que, em grandes empreendimentos como este, o licenciamento não sai fácil", diz Benitez. "E se não fizéssemos assim, teríamos que entrar com uma ação civil pública a toda hora", assume.
Segundo ele, a iniciativa não atropela os técnicos do Ibama, a quem oficialmente cabe estudar e aprovar ou não projetos do gênero. "Não tem nenhum problema se o Ibama tem um olhar e nós, outro. As questões ambientais não são exclusivas", diz Benitez. O "olhar" dos técnicos contratados pode ser bem crítico ao projeto, mas o subprocurador-geral informa que não há "nenhum item que inviabilize a obra." O que há é uma razoável lista de "medidas mitigadoras" aos impactos ambientais.
Entre os técnicos convidados a analisarem os impactos das usinas do Madeira há botânicos do Museu Emílio Goeldi, do Pará, estudiosos de infraestrutura urbana e recursos hídricos de São Paulo, arqueólogos e especialistas em saúde pública de Brasília e Rondônia, e até o especialista em peixes Michael Golding, da Flórida. "Tudo neste projeto é único e superlativo", diz Francisco José Silveira Pereira, coordenador técnico dos estudos na Cobrape. "A nossa grande preocupação em um empreendimento como este é que os beneficiários são o Sul e o Sudeste, mas os impactos vão ficar aqui conosco."
Um dos pontos de angústia, por exemplo, é que na região a malária é endêmica, as obras vão exigir 20 mil operários e a infra-estrutura de saúde é precária. Este contingente populacional vai inchar Porto Velho, cidade onde a coleta de esgoto alcança apenas 3% das casas.
Fearnside, que estudou a questão pelos ecossistemas, diz que "há vários tipos de problemas". Um deles é o ciclo de vida dos grandes bagres que vivem no rio, e migram da foz até quase as cabeceiras, no Peru e Bolívia. "Com as barragens, não poderão fazer isso", diz ele. O EIA-Rima prevê um corredor para facilitar o caminho dos peixes. "Mas é algo nunca testado antes", ressalva Fearnside. Os peixes são importante fonte de alimento e renda para as povoações locais.
Outra preocupação é consequência de uma característica singular do Madeira, um dos rios que mais carrega sedimentos na bacia amazônica. "Quando o rio entrar no reservatório de Jirau, o sedimento que está sendo transportado vai para o fundo do lago. Este monte de sedimentos vai continuar se acumulando e, obviamente, vai inundar mais pedaços de terra", avisa o cientista. "Pode até criar um problema internacional", diz. Existe o temor que a água inunde território boliviano. "Eu diria que o projeto das usinas do Madeira precisa de mais estudos", sugere Fearnside.
(Por Daniela Chiaretti,
Valor Econômico, 06/11/2006