A iniciativa da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza anunciada no início deste mês, de pagar R$ 12 milhões nos próximos dez anos aos proprietários de terras onde estão mananciais da Grande São Paulo, para impedir que eles contribuam com a deterioração da região, quebra um paradigma na discussão sobre preservação do meio ambiente: na ausência de conscientização por parte da sociedade e do governo, um processo que exige longo tempo de maturação por envolver mudança de hábitos e prioridades, é preciso fixar um valor monetário para a prestação de serviços ambientais. Dessa forma, quem cuida para que a natureza siga seu curso e seja minimamente impactada pela ação humana merece ser recompensado financeiramente. O dono de lotes se transforma em guardião de terras que em algum momento pode inclusive ter ajudado a prejudicar, com loteamentos clandestinos, por exemplo.
"É a primeira vez que pagamos pela prestação de serviços ambientais, que é uma prática nova no mundo todo", diz Maria de Lourdes Nunes, diretora executiva da Fundação O Boticário, mantida pela indústria paranaense de cosméticos. O pagamento por serviços ambientais (PSA) é um sistema de remuneração pelos cuidados com águas, florestas, clima e biodiversidade, capazes de garantir o perfeito funcionamento do ecossistema. O mercado de créditos de carbono - que consiste na obtenção de títulos a partir da redução de gases de efeito estufa, que podem ser comercializados com governos, bolsas ou companhias de países "em débito" com a atmosfera - é o modelo mais comum desse sistema.
No caso do PSA da fundação, o prêmio a cada um dos proprietários deve variar entre R$ 4 mil e R$ 50 mil ao ano, valor que será definido com base em 20 variáveis, que irão compor o índice de valoração do manancial, segundo Maria de Lourdes. "Vamos considerar aspectos como o ciclo hidrológico e o uso e ocupação do solo", diz a executiva. Na última quarta-feira, ela formalizou a parceria com a Secretaria Municipal de Verde e Meio Ambiente e a Subprefeitura de Parelheiros (SP), para a implantação do projeto, que também conta com o apoio da Sabesp, da instituição sem fins lucrativos Artemísia e das coordenadorias das Áreas de Proteção Ambiental (APAs) de Capivari-Monos e Bororé-Colônia.
Dos R$ 12 milhões previstos, metade deve vir da fundação, e a outra metade de empresários. O pagamento para o proprietário será anual, liberado a partir do monitoramento da preservação.
Para organizações do terceiro setor, a atitude da fundação abre novos caminhos para o desenvolvimento sustentável. "Agora existe um incentivo real para a preservação, que faz com que os proprietários tenham uma postura completamente diferente", diz a arquiteta e urbanista Marussia Whately, coordenadora do programa mananciais do Instituto Socioambiental (ISA).
A iniciativa da fundação, segundo Marussia, coloca o Brasil em sintonia com o que existe de mais moderno em programas de preservação ambiental no mundo. A engenheira agrônoma Maria Lúcia Ramos Bellenzani, chefe da APA Capivari-Monos, ligada à secretaria municipal de meio-ambiente, tem a mesma opinião. "É uma estratégia que nunca havia sido tentada antes e que pode ajudar a minimizar o impacto causado pela ocupação dos mananciais, um processo que não tem mais como ser revertido", diz Maria Lúcia, referindo-se à alta densidade populacional na área atendida pelo projeto, onde estão bairros paulistanos como Jardim Ângela e Grajaú.
O contato da fundação com a realidade dos mananciais da metrópole deu-se por meio da Artemísia, uma instituição sem fins lucrativos voltada ao desenvolvimento humano, que atende pessoas físicas e jurídicas. O casal de terapeutas da Artemísia Dick e Rosa Schoenmaker já havia começado a discutir a necessidade de conservação ambiental com outras entidades locais, mas a questão só tomou fôlego depois que alguns executivos do Boticário, atendidos pela Artemísia, souberam do projeto. "A fundação superou as nossas expectativas e hoje temos a esperança de que esse crescimento desenfreado será contido", diz Rosa. Hoje, Artemísia, Sabesp e APAs apóiam o programa.
A primeira fase do Oásis fará a seleção das propriedades, numa área de 2,5 mil hectares envolvendo a bacia do Guarapiranga e as APAs de Capirvari-Monos e de Bororé-Colônia. Nesta região, zona sul de São Paulo, estão os municípios de Embu-Guaçu e Itapecerica da Serra, e parte de Embu, São Lourenço da Serra e Cotia. O local concentra um dos últimos remanescentes da Mata Atlântica, floresta tropical que tem a maior biodiversidade por hectare do planeta.
A delimitação da região, concentrada na represa de Guarapiranga, foi feita após três anos de estudos. "Todo o abastecimento de água é crítico na Grande São Paulo, mas Guarapiranga está na UTI", diz Maria de Lourdes. Situada na zona sul da capital, a represa recebe os rios Embu-Mirim, Embu-Guaçu, Santa Rita, Vermelho, Ribeirão Itaim, Capivari e Parelheiros, formando o segundo maior produtor de água da Sabesp na Grande São Paulo (só perde para o Cantareira).
Quanto maior a escassez de água, mais longe a Sabesp precisa ir buscá-la, aumentando assim os custos de produção.
Em Guarapiranga, eles subiram nada menos que 135% entre os anos de 1998 e 2003. No caso da represa - responsável por um volume de 14 mil litros de água por segundo, voltada ao abastecimento de 3,8 milhões de pessoas nas zonas sul e sudoeste -, o encarecimento não se deu por causa da distância, mas da qualidade da água, seriamente comprometida com a ocupação desordenada das suas margens. Para se ter uma idéia, em cinco anos, entre 1989 e 1996, as áreas urbanizadas ao seu redor cresceram mais de 50% e a represa perdeu 15% da sua vegetação nativa.
(Daniele do Nascimento Madureira,
Valor Online, 24/10/2006)