Mesmo com contradições entre seus integrantes, o governo da Argentina atende a
reclamação de moradores e produtores da província de San Juan, que é contrária ao
projeto binacional de exploração aurífera na fronteira com o Chile por causa do risco
de contaminação que representa. O projeto está suspenso.
O presidente Néstor Kirchner viajou este mês a San Juan e pediu “que a mineração seja
desenvolvida, mas com respeito ambiental”, uma declaração que entusiasmou ativistas
locais que foram recebidos pela secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável, Romina Picolotti, por mais de duas horas, em Buenos Aires.
“Picolotti está nos ajudando, temos seu incentivo para continuarmos resistindo”, disse
à IPS Andrés Molinara, da organização de moradores Autoconvocados de Calingasta em
Defesa do Meio Ambiente. Calingasta é um departamento de San Juan, vizinho ao
megaprojeto e onde há outras dez minas ativas.
A iniciativa da canadense Barrick Gold Corporation implica explorar uma das maiores
fontes de ouro intocadas do mundo, com 17,5 milhões de onças (600 mil toneladas) de
reservas estimadas, localizada 150 quilômetros a sudeste de Vallenar, na terceira
região chilena de Atacama e 300 quilômetros a noroeste de San Juan, capital da
província de mesmo nome.
Embora o ouro esteja concentrado do lado chileno, a Argentina seria mais afetada pela
contaminação com o cianureto que será usado na extração, segundo especialistas. Em
Pascua Lama, o consórcio canadense prevê investir US$ 1,5 bilhão, quantia que, apesar
de ser um projeto compartilhado com o Chile, o coloca entre os mais importantes da
Argentina. Trata-se de uma cifra que triplica seu desembolso para a implementação de
Veladero, outra jazida de ouro da mesma empresa também em San Juan.
De acordo com a companhia, a mina binacional permitirá extrair por ano 750 mil onças de
ouro e 30 milhões de onças de prata, uma riqueza que justificaria montar o acampamento
a cerca de 4,6 mil metros acima do nível do mar na cordilheira dos Andes. Mesmo com
críticas de ambientalistas e produtores agrícolas, o projeto foi aprovado pela Comissão
Regional de Meio Ambiente de Atacama, no Chile, com a condição de não serem removidas
as geleiras existentes na zona de exploração, Toro I, Toro II e Esperanza, que a empresa
sugeriu remover.
Mas a Comissão Interdisciplinar de Avaliação Ambiental de Mineração de San Juan, que
deveria ter se pronunciado em setembro, pediu uma prorrogação. Nesse prazo, a Defensoria
do Povo da Nação advertiu que a Barrick Gold e outras empresas mineiras estariam
oferecendo “presentes” a hospitais e escolas da região para conseguir adeptos. Por
outro lado, a vontade do governo Kirchner de intervir neste conflito existe, mas mais
tímida, fraca e contraditória do que a determinação que manifestou diante do Uruguai
para rechaçar a instalação de duas fábricas de celulose nesse país em um rimo
limítrofe entre ambos.
Picolotti, antes de assumir o cargo no governo, era diretora do não-governamental
Centro de Direitos Humanos e Meio Ambiente e foi eleita este ano com representante
legal dos moradores de Gualeguaychú, a cidade da província de Entre Ríos que rejeita a
construção dessa fábrica do outro lado do Rio Uruguai por entender que será prejudicial
ao ambiente. Já como funcionária do governo, Picolotti se declarou contrária à mineração
que utiliza cianureto, e se reuniu com legisladores para pedir a revisão do respectivo
código porque, a seu ver, está feito como uma roupa sob medida para as empresas.
“A comissão parlamentar que deve aprovar o projeto de Pascua Lama não merece nossa
confiança”, afirmou Molinara. Para os moradores, a mina se constituirá em “um país novo
entre Argentina e Chile, onde perderemos toda soberania”. Referiu-se ao temor de que se
repitam fatos como os de Veladero, o outro projeto da Barrick Gold em San Juan. Em suas
proximidades, a circulação pela estrada nacional ao Parque Nacional San Guillermo é
interrompida por uma guarita de segurança da companhia. “Para entrar temos de seguir por
caminhos alternativo”, disse, indignado.
Além disso, a organização Mães Jachaleras, da localidade de Jacha, a 200 quilômetros de
Veladero, denunciou na Justiça local que o rio de mesmo nome que banha a cidade está
contaminado com arsênico, substância que fica suspensa no ar depois da explosão das
montanhas para a mineração e que, posteriormente, se deposita na água. Antes do início
da exploração de Veladero havia no rio apenas 69 miligramas de arsênico por litro,
agora, esse índice é de 260 mg/litro. Já na água de rede, diversos laboratórios
consultados pela entidade encontraram 120 mg/litro. “A secretária de Meio Ambiente,
que é advogada, nos recomendou pedir na Justiça de Jachal a intervenção de seu
escritório como parte interessada”, disse a organização.
Dessa forma, a entidade procura conseguir fundos para enviar amostras de água a um
laboratório que tenha equipamentos para detectar a presença de cianureto. Os moradores
prevêem pedir ao presidente Kirchner que anule as leis do setor e o Tratado de
Complementação Mineira argentino-chileno de 1997. “Sabemos que é difícil, mas temos
esperanças. Queremos continuar morando aqui, mas a Barrick Gold vai destruir tudo sem
o controle de ninguém”, alertou Molinara.
Em conversa com a IPS, o embaixador Raúl Estrada Oyuela, diretor de Assuntos Ambientais
da chancelaria argentina, disse que a província de San Juan “deve fazer um estudo de
impacto ambiental” do projeto. “O que existe é um informe técnico de 1,8 mil páginas
sem um julgamento sobre o impacto”, acrescentou. Para o diplomata, a única avaliação
foi a feita pelo lado chileno, e ali se afirma que o prejuízo será maior para a
Argentina, sobretudo em relação ao manejo do cianureto utilizado para separar o metal
da rocha. “No informe não se explica o motivo de a empresa usar cianureto para extrair
ouro, em lugar da centrifugação, que é uma tecnologia menos contaminante”, disse Oyuela.
O embaixador, que enviou uma nota ao chanceler Jorge Taiana sobre o assunto, considerou
que, embora os recursos naturais sejam de cada província, o governo nacional tem
atribuições sobre o meio ambiente e questões relacionadas com o Tratado de Complementação
Mineira assinado pelos dois países. Entretanto, também admitiu que o governo nacional
“não tem uma estratégia” diante deste problema. Enquanto a Secretaria de Meio Ambiente
e a chancelariam freiam o projeto, este, desde o Ministério do Planejamento Federal, do
qual depende a Secretaria de Mineração, é incentivado.
Está semana, funcionários da área de mineração de todas as províncias, integrantes do
Conselho Federal Mineiro, se reuniram em San Juan para apoiar o projeto depois de se
conhecer a posição de Oyuela e Picolotti, que deteve o pronunciamento definitivo da
comissão parlamentar. Dessa reunião participaram o governador de San Juan, José Luís
Gioja, e o secretário de Mineração da Nação, Jorge Mayoral, ambos defensores dos
empreendimentos. Para Oyuela, “Não é que agora exista uma intenção do governo nacional
de deter o projeto Pascua Lama, mas é evidente que existe uma intenção em atrasar a
decisão de aprová-lo como está”.
(Por Marcela Valente, IPS/Envolverde, disponível em
Ecoagência, 24/10/2006)