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2006-10-23
Na última terça-feira (17/10), Deusarina Correia, 51 anos, acordou cedo e partiu de Belém rumo a São Paulo vestida com sua melhor roupa, chapinha no cabelo e acompanhada de seu advogado. Tratava-se de uma viagem de negócios. Dali a algumas horas ela se reuniria com executivos da Natura, uma empresa que fatura R$ 3,2 bilhões, para assinar um acordo que pode mudar definitivamente o rumo da associação que preside, a Ver as Ervas. A associação vende cerca de R$ 20 mil por dia em perfumes, xampus e sabonetes na famosa feira do Ver-o-Peso, na capital paraense.

Após meses de duras negociações, a Natura concordou em repassar um porcentual sobre as vendas de produtos à base de priprioca, cumaru e breu branco para a associação. “A Natura reconheceu a feira de Ver-o-Peso como provedor do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. O conhecimento serviu como um atalho para a Natura”, diz Marcos Egydio Martins, diretor de sustentabilidade da Natura. “A Natura está num terreno onde a legislação ainda é nebulosa. Esse é o primeiro acordo do gênero no País.”

A história entre a companhia e a associação é antiga. Começou há cinco anos, quando pesquisadores da Natura visitaram a feira de Belém. Na ocasião, gravaram longos depoimentos com seis vendedoras de ervas. Cada uma delas recebeu R$ 500 para ceder o direito de uso de imagem. Na época, elas acharam que se tratava de um vídeo. Mas a Natura estava buscando fontes de inspiração no Brasil todo para desenvolvimento de novos produtos.

Dois anos mais tarde, uma das vendedoras foi convidada pela Natura para participar do lançamento do perfume e da água de banho de breu branco, uma das ervas vendidas na feira. Até aí, não havia imbróglio algum entre as partes.

A briga começou no ano passado, quando a OAB de Belém procurou a associação e falou sobre os direitos que ela tinha. “Nós ficamos bravos com a Natura”, lembra Deusa, como é mais conhecida. “Aí fomos investigar nossos direitos.”

A associação não chegou a mover um processo contra a Natura. “O Ministério Público do Pará iniciou investigação e recomendou acordo entre as partes, até por iniciativa da Natura e da associação”, explica Eugênio Pantoja, advogado da associação que teve os honorários pagos pela Natura, como manda a Lei da Biodiversidade.

O valor da negociação é guardado a sete chaves. Os advogados usaram como referência um acordo anterior entre a Natura e 32 famílias da comunidade de Iratapuru, no Amapá. No ano passado, chegou-se à conclusão que a Natura repassaria um percentual de 0,5% sobre as vendas dos produtos com breu branco. Nesse caso, a negociação era mais simples, pois o pagamento era pelo patrimônio genético, e não pelo conhecimento tradicional. A comunidade fornecia matéria-prima para a Natura.

Esse é um acordo estratégico para a companhia. Boa parte dos seus produtos já usa matéria-prima da biodiversidade brasileira. E a tendência é que toda a linha da Natura use algum ingrediente do gênero no futuro. “Não fomos bonzinhos. É uma filosofia de ganha-ganha. Nós precisamos desse conhecimento e eles precisam do nosso apoio”, diz Martins. “A Natura temia abrir precedente e ter uma fila de gente cobrando pelo conhecimento, o que inviabilizaria nosso negócio.”

Com a solução encontrada, a empresa quer agora repartir benefícios para outros fornecedores da linha Ekos, uma das campeãs de venda. O número de fornecedores beneficiados pode chegar a vinte.

Aulas de inglês
Além do repasse de um porcentual sobre as vendas, a Natura também propôs a criação de um fundo para ajudar a associação a ser auto-sustentável. O dinheiro será usado para compra de equipamentos e de uma sede para a associação. Os associados também terão aula de inglês e de francês para atenderem melhor os clientes estrangeiros. “Hoje, o beneficiamento dos produtos é feito em várias casas. Com uma sede, a gente vai organizar melhor a produção e gastar menos com transporte”, diz Deusa. “As erveiras têm a tradição dos nossos pais. Agora vai entrar a técnica.”

A associação Ver as Ervas tem 102 trabalhadores e 80 barracas na feira do Ver-o-Peso. É um negócio que passa de pai para filho. Apenas quatro famílias controlam a venda. Quase todos são parentes entre si. A barraca de Deusa - que aprendeu a fazer perfumes aos nove anos - chega a faturar R$ 300 por dia.
(Por Patrícia Cançado, O Estado de S. Paulo, 20/10/2006)
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