EUA mudarão política de clima, diz Gore
2006-10-19
Político convertido em ambientalista convertido em estrela de cinema, Albert Gore Jr., 58, ex-vice-presidente (democrata) dos EUA, admitiu ontem em São Paulo que teria tido problemas para ratificar o Protocolo de Kyoto caso tivesse ganho a Casa Branca em 2000. O acordo internacional contra o efeito estufa vinha sendo mantido em banho-maria pela administração Clinton, com resistência do Senado, e foi rejeitado de vez por George W. Bush em 2001, levantando o planeta contra os Estados Unidos.
"A verdade é que teria sido difícil para mim ou para qualquer presidente, numa época em que a imprensa ainda dizia em metade de suas reportagens que o problema poderia nem ser real", disse Gore.
O americano esteve no Brasil para participar de um evento na Câmara Americana de Comércio e promover o livro "Uma Verdade Inconveniente", cujo filme homônimo, sobre o efeito estufa, está causando furor em seu país.
Leia abaixo a entrevista concedida por Gore à Folha.
Folha - O mundo todo se reúne no mês que vem em Nairóbi para debater uma extensão do Protocolo de Kyoto. O sr. acha que nós ainda deveríamos perseguir um tratado global contra o efeito estufa, sendo que Kyoto se mostrou pouco eficaz e as emissões subiram muito nas últimas décadas?
Al Gore - Eu vejo de outra maneira. Acho que o Protocolo de Kyoto teve, sim, um efeito positivo, porque o problema teria piorado muito mais rapidamente sem ele. E a principal razão pela qual Kyoto não teve um efeito mais positivo foi porque os EUA não se juntaram ao tratado. Quando se juntarem, vai haver um mercado fechado para emissões de carbono, e o mercado vai operar com muito mais eficiência. Há muitos aspectos da solução para a crise climática que só podem ser atacados por um tratado global. A colaboração entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento, por exemplo, só poode ser feita através de um tratado global como Kyoto. Se não houvesse um tratado, poderia haver vantagens para países que trapaceassem nas regras adotadas por todos. As negociações em Nairóbi acontecerão numa época em que os EUA ainda estão recuados. Mas eu tenho boa notícias: os EUA estão começando a mudar e em breve mudarão dramaticamente. Qualquer que seja o partido eleito em 2008, os EUA terão uma nova política. Nosso maior Estado, a Califórnia, já abraçou Kyoto. Trezentas e dezenove cidades americanas já abraçaram Kyoto. Muitos líderes conservadores e religiosos e emrpesários se separaram do presidente Bush nessa questão, e nós agora estamos às vésperas de uma grande mudança na política americana. O próximo tratado não será só uma extensão de Kyoto; terá medidas mais duras. E lembre-se: Kyoto só passa a valer em 2008. Então é cedo demais para dizer que ele não foi eficaz.
Folha - O sr. acha que essa inclinação dos republicanos à "esquerda" no tema mudança climática foi uma conseqüência acidental da administração Bush?
Gore - Bem, se aconteceu, certamente foi acidental! (Risos) Em política sempre há um pêndulo balançando da esquerda para a direita, e sempre que as pessoas percebem que o pêndulo foi longe demais para a direita elas o puxam de volta. E eu acho que muitos republicanos estão sentindo esse puxão agora. E, daqui a três semanas, os democratas provavelmente retomarão o controle da Câmara de Representantes.
Folha - Em 1998, a administração Clinton-Gore assinou o acordo de Kyoto, mas nunca conseguiu fazer o Senado ratificá-lo. O que nos leva a crer que, caso o sr. tivesse ganho a Casa Branca em 2000, os EUA teriam ratificado Kyoto?
Gore - Eu gosto de pensar que, ao eleger o tema a prioridade máxima, eu teria persuadido o Senado a ratificar. Mas a verdade é que teria sido difícil para mim ou para qualquer presidente, numa época em que a imprensa ainda dizia em metade de suas reportagens que o problema poderia nem ser real.
Folha - A ministra Marina Silva apresentou hoje ao sr. a proposta brasileira de um fundo voluntário para combater as emissões do desmatamento tropical. O sr. apóia a proposta? Haveria dinheiro para um fundo desses?
Gore - Acho que a proposta é muito imaginativa e interessante. Prometi a ela que iria estudá-la com cuidado e dar a ela uma resposta sobre se a proposta conseguiria ou não apoio suficiente nos países industrializados. Vou estudá-la. Eu acho que há um desejo crescente de países e corporações para adotar medidas significativas, incluindo o apoio a medidas para reduzir desmatamento.
Folha - Os países pobres, como o Brasil e a China, devem adotar metas obrigatórias de redução de emissões?
Gore - Desde o fim da 2ª Guerra, todo tratado global tem a mesma arquitetura: os países ricos vão primeiro, demonstram seu compromisso e abrem o caminho. Num segundo estágio, os países em desenvolvimento se juntam e aceitam obrigações. Hoje estamos ainda na primeira fase, portanto acho prematuro alguém nos EUA dizer que os países em desenvolvimento deveriam aceitar metas e obrigações.
Folha - O sr. escreveu uma vez numa introdução a "Silent Spring", de Rachel Carson [livro de 1962 que levou ao banimento do DDT e outros pesticidas nos EUA], que aquele era um dos raros livros que mudaram a sociedade. O sr. tinha esse objetivo na cabeça quando produziu "Uma Verdade Inconveniente"?
Gore - Não era um objetivo no sentido abstrato. Eu venho tentando comunicar essa mensagem há 30 anos, e minha ambição era cumprir essa meta. Não quero que as pessoas coloquem o livro e o filme num pedestal por eles mesmos, mas porque eu tentei várias vezes comunicar essa mensagem, e se eu conseguir quebrar a barreira, é isso o que importa.
Folha - Por que foi preciso um político para comunicar uma mensagem que os ambientalistas tentam comunicar há mais de duas décadas? O ambientalismo falhou aqui?
Gore - Não. Acho que eles tinham um papel diferente. Não poderia se esperar de nenhum dos ambientalistas comunicar esse assunto num nível global. Mesmo assim, alguns deles o fizeram, e com eficácia. Muito do material que eu incluí no filme foi desenvolvido por grupos ambientalistas.
Folha - É mais fácil em 2006 espalhar a mensagem através da resistência de empresas e do Congresso dos EUA do que era na década de 1960?
Gore - Rachel Carson enfrentou uma oposição e uma resistência enormes. Em alguns aspectos, ela teve muito mais dificuldades que nós, que temos acesso a todo tipo de meio de comunicação. Acho que não estamos nem perto de onde precisamos estar, mas se tive algum sucesso, eu o atribuo ao fato de que tenho um aliado poderoso: a realidade.
Folha - O sr. já foi chamado para testemunhar perante o Senado Americano, como fez o escritor Michael Crichton [cujo romance "Estado de Medo" nega o aquecimento global]?
Gore - Não. Fui convidado a testemunhar perante a Câmara dos Representantes há seis meses, mas não pude ir. Michael Crichton... (pausa) O conselheiro de Bush. A única coisa que é preciso saber sobre Michael é que ele é um escritor de ficção científica. Seu último livro é sobre conferencistas homicidas. Assunto até agora não-reconhecido como uma crise.
Folha - O sr. fala que é neutro em carbono. Sua família vendeu as ações que tinha da empresa de petróleo Occidental?
Gore - Eu nunca tive ações da Occodental Petroleum. Meu pai tinha, porque ele foi diretor da empresa depois de deixar a política. Quando ele morreu, pedi ao executor de seu inventário que vendesse as ações. Isso aconteceu há seis anos.
Folha - As empresas de petróleo pregam hoje o fim da dependência do óleo e o investimento em energias alternativas _mas, na prática, ainda se travam guerras pelo óleo do Oriente Médio. O que é preciso para acelerar essa transição?
Gore - A Idade da Pedra não acabou por falta de pedras. E a Era do Petróleo não vai acabar por falta de petróleo. Acabará quando nós decidimos mudar para algo melhor, mais eficiente, mais lucrativo, mais limpo e mais sustentável. E isso é conservação de energia, energia solar, eólica, de ondas e tudo o que está sendo desenvolvido. A escolha não é deles, é nossa. E os EUA deveriam seguir o exemplo do Brasil e desenvolver o etanol.
Folha - Não estamos empurrando rápido demais o andor do etanol? Ele produziu um desastre ambiental na mata atlântica...
Gore - A mata atlântica foi destruída muito antes do programa do álcool. Mas é verdade que houve conseqüências ambientais, como é verdade também que novas pesquisas apontam uma promessa do etanol de celulose, que não tem o mesmo impacto. De qualquer forma, a principal crise que devemos administrar é a climática. Substituir os combustíveis fósseis deve ser a prioridade máxima da civilização.
Folha - Como o sr. vê a cena eleitoral de 2008 nos EUA. Quem será o candidato liberal? Schwarzenegger?
Gore - (risos) É cedo para dizer. Tenho certeza de que muitos americanos gostariam que ele não fosse inelegível [por ser nascido na Áustria], mas uma das razões para sua popularidade cada vez maior é que ele, mesmo sendo republicano, está atacando o aquecimento global. Isso me dá esperança de que outros republicanos farão o mesmo.
Folha - O sr. tem conversado com Schwarzenegger sobre o assunto?
Gore - Sim. Arnold viu meu filme em junho, e disse: (Gore imita o sotaque do governador) "Acho que vou me livrar do meu Hummer" [picape]. Depois, numa noite de autógrafos, ele comentou o impacto que o filme tivera sobre ele e sobre as mudanças que ele começou a fazer na Califórnia. Fico grato, porque algumas vezes a Califórnia sinaliza uma mudança na esfera dos Estados à qual o governo federal não consegue resistir.
Folha - E ele vendeu o Hummer?
Gore - Acho que sim!
(Por Cláudio Ângelo, 18/10/2006)
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ciencia/ult306u15379.shtml