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2006-10-17
O jornalista paraense Lúcio Flávio Pinto* finaliza o Especial sobre a Terra do Meio (PA) publicado pelo ISA com um artigo escrito especialmente para este fim. Ele aborda a tragédia vivida pela árvore mais valiosa da Amazônia, o mogno, e conta detalhes da operação montada pela empresa CR Almeida para tentar apoderar-se de uma grande quantidade da madeira-de-lei apreendida pelo governo. Lúcio Flávio já ganhou alguns prêmios Esso de jornalismo e é reconhecido como um dos principais defensores da floresta amazônica no País.

O engenheiro agrônomo Adalberto Veríssimo costuma dizer que Deus entregou diretamente ao homem as sementes de mogno. A hipótese procede. O mogno é uma árvore bonita de se ver na mata, destacando-se por seu porte esbelto, sua altura (de 30 a 40 metros) e sua cor. Impressiona tanto ou mais ainda quando se transforma num móvel ou num painel: é leve e ao mesmo tempo resistente, sólida e maleável, pode durar séculos, indiferentemente aos insetos e aos maus tratos do homem, e cativar por sua cor natural, melhor do que qualquer outra que o computador imaginar como sucedâneo ou alternativa.

Os presidentes dos Estados Unidos têm utilizado, há várias décadas, móveis de mogno na Casa Branca, em Washington. A marinha inglesa, uma das mais eficientes de todos os tempos, também se beneficiou das qualidades físicas e químicas da madeira. Qualquer autor de thriller sabe que, se descrever como sendo de mogno aquela escrivaninha sobre a qual o personagem se debruça, dar-lhe-á uma aparência de nobreza e solidez.

Em algumas décadas mais, entretanto, o mogno poderá se confinar ao terreno da ficção, aos museus e a poucos redutos de confinamento. É provável que Beto Veríssimo, um jovem agrônomo nordestino que se apaixonou pela floresta amazônica e não saiu mais de Belém, antes mesmo de se aposentar já terá dificuldades para localizar árvores de mogno nas suas constantes excursões pela mata nativa do Pará, o segundo Estado brasileiro em área desmatada e em índice de derrubadas da Amazônia, mesmo sendo o segundo mais extenso (perde apenas para o Amazonas), do tamanho da Colômbia, com seus 1,2 milhão de quilômetros quadrados.

Ouro verde
O mogno, a mais bela e mais valiosa madeira da Amazônia, região que concentra 56% das florestas tropicais do planeta, está acabando. Já acabou no sul do Pará, onde sua presença era de 5 a 10 vezes maior do que nas áreas onde a madeira está sendo agora caçada, cortada e vendida como se fosse ouro (na verdade, o ouro verde vale atualmente mais do que o ouro amarelo).

Beto fica feliz quando, nas suas excursões ao Acre, encontra uma árvore de mogno por hectare. Na área de influência de Rio Maria, no sul do Pará, a densidade podia chegar a 11 árvores por hectare. Hoje, mogno é conversa para boi pastar ou para choro nessa região. No princípio da sua ocupação, muito mogno deve ter sido destruído nas queimadas. O que os pioneiros queriam mesmo era formar pastagens para seu gado, incumbido de, ao menor custo (monetariamente falando), “amansar a terra”, na tal filosofia ditada pela pata bovina (em sentido literal e figurado).

Depois, quando a madeira foi usada como reforço de capital para a execução do empreendimento ainda prioritário, o “projeto agropecuário” subsidiado pelo governo federal, muito mogno foi extraído, mas à custa da destruição de muitas outras árvores de menor valor. Por um ou outro caminho, dos anos 60 aos 80, o vale do Araguaia-Tocantins, na busca de um “modelo de ocupação” da nova fronteira do país, destruiu uma fabulosa mina de madeira. Ainda há alguma iniciativa de plantio da árvore, mas quem a conhece intimamente descrê dos resultados. Como na longa farra da Sudam, extinta em 2002 sob um mar lodoso de corrupção, é mais uma placa para agradar inglês.

Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), ao qual Veríssimo pertence, entre 1971 e 2001 o Brasil produziu aproximadamente 5,7 milhões de metros cúbicos serrados de mogno. Pelo menos quatro milhões foram exportados, uns 75% do total para os Estados Unidos e a Inglaterra. Essa exploração representou algo bem perto de 4 bilhões de dólares em faturamento, considerando-se o preço médio histórico, de US$ 700 o metro cúbico. Atualmente, os valores variam entre US$ 1,6 mil o m3, no mercado interno, e US$ 2,5 mil, no exterior, segundo a tabela do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Beneficiado, porém, cada m3 pode ir parar em US$ 8 mil. Ouro passa a ser produto de segunda grandeza nessa pauta de valores.

Caso de polícia
A febre do mogno é uma variedade vegetal da obsessão que provocou as incríveis ondas de garimpagem. Por serem mais convencionais, epopéias como a de Serra Pelada atraíram mais atenção – e espanto – da opinião pública. O que está acontecendo em tão pouco tempo com o mogno, uma das mais valiosas madeiras da história da humanidade, tem significado ainda mais profundo do que a maioria dos booms auríferos. Só não tem o mesmo impacto.

Só não tinha, aliás. Quatro anos atrás, a TV Globo exibiu para todo País as imagens e as informações sobre o que foi classificado como “a maior apreensão de madeira da história do Brasil”. Provavelmente por ser neófita no assunto, a Globo não sustentou a reportagem com informações checadas ou corretas, mas as imagens – falando por mil palavras – supriram essa deficiência.

Ao seu modo, a televisão desempenhou mais satisfatoriamente uma função que milhares de artigos escritos até então não conseguiram: provocar o interesse da opinião pública para um drama muito grave, que começou e poderá se consumar antes que a geração de Beto Veríssimo encerre seu período de vida ativa. Seremos contemporâneos da extinção do mogno, impotentes para reverter o mal que temos causado, a partir de uma presumível dádiva divina, na forma das sementes dessa árvore excepcional?

Em escala menor de utilização, os parentes do mesmo gênero da árvore brasileira na América Central e Caribe já não existem mais. A pressão sobre as últimas concentrações, na Amazônia latino-americana, mas, sobretudo, na área predominante do Brasil, se tornou um autêntico caso de polícia. Os extratores de mogno se multiplicaram e sua audácia resultou em imagens patéticas, como as enormes jangadas, formadas por milhares de toras de madeira, que a TV Globo captou e que já se tornaram rotineiras na área mais rica depois (e já bem abaixo) do Araguaia, a da Terra do Meio, entre os rios Xingu e Iriri, no Pará. Rotineiras porque não provocaram o choque de, três décadas antes, em plena ditadura, com as cenas de caminhões saindo da mata com meia dúzia de toras, autêntica sangria vegetal. Agora, a sensibilidade parece embotada, apesar da democracia vigente.

O Ibama diz ter apreendido na espetaculosa operação madeira no valor de R$ 300 milhões. Não disse o número de toras ou a quantidade de metros cúbicos. Em qualquer hipótese, o valor era tratado aos milhares. A esmagadora maioria dessas árvores foi extraída dentro de reservas indígenas, principalmente na dos famosos Kayapós. Não mais por meio de invasão das reservas: agora, com a ajuda dos próprios índios. O que eles provavelmente ganharam com sua colaboração representa 150 vezes menos do que faturou o agente comercial, na ponta da linha de intermediações que vai da jungle à metrópole.

Os índios alegam, em sua defesa, que não têm outra fonte de renda com a ruína da Fundação Nacional do Índio (Funai) e a evaporação da política indigenista pública, que se desmancha no ar como restos de uma categoria primitiva a ser colocada sob a lápide da história, no entendimento de um sociólogo da modernização (e com poder de transformar em fatos suas idéias, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em cujo mandato ocorreram os maiores abates de mogno). E que precisam se vestir, comer e beber – em amplo sentido neste último item.

Com muitas boas razões pode-se construir uma tragédia, como a do mogno. Ninguém vai para o inferno, mas nem assim o mal deixa de se consumar. Gênio, Dante colocou mais gente no purgatório do que no inferno e no paraíso da sua Divina Comédia. A ocupação da Amazônia se ajusta muito bem nesse enredo.

Controle internacional
Contra a posição do Brasil, o mogno foi incluído no anexo II da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna (Cites). Isto significa que a exploração e a comercialização da espécie estão sujeitas ao controle não apenas do governo nacional, mas também dos outros países que integram o colegiado, de exportadores e importadores, com a aplicação das normas existentes a respeito.

O governo brasileiro, o mais interessado no assunto, por ser o Brasil o maior produtor e vendedor de mogno no mundo, considerou dispensável apertar o controle sobre a espécie, que, na próxima abordagem, pode passar para o Anexo I, das espécies em extinção. Garante que tem feito tudo que é possível para acabar com a exploração ilegal e predatória da madeira, o que não é verdade, ainda que mereça ser reconhecido o decidido esforço oficial a respeito. Ou a intenção, dantescamente falando.

Enquanto o Ibama e a Polícia Federal aprendem milhares de toras de mogno transportadas em jangadas pelo rio Xingu (a grande avenida aquática para a qual essas lúgubres embarcações convergem de todos os pontos de drenagem da bacia que possuem a espécie às suas margens), acredita-se que no sul do país, com destaque para São Paulo, haja outros milhares de metros cúbicos estocados e em beneficiamento. É madeira em ponto de bala para seguir para o exterior, se possível (com ganhos melhores), ou ter comercialização interna, se os mecanismos de controle de embarque internacional estiverem realmente azeitados e o contrabando for inviável.

O esforço interno, portanto, já não é mais suficiente. Ou não é o bastante a tempo de poder dar conta da selvageria da predação da espécie, em função do preço e da exaustão de outras fontes de abastecimento do ouro verde. Um controle internacional efetivo seria a última chance de sobrevivência para o mogno?

Muitos nem querem fazer essa pergunta, mas ela precisa ser formulada e, acima de tudo, necessita de uma resposta eficaz e urgente. O debate se intensificou depois que a senadora acreana Marina Silva assumiu o Ministério do Meio Ambiente. Sua indicação foi saudada ao mesmo tempo com entusiasmo e preocupação, como uma enorme vitória e uma inquietante dúvida.

Marina tentou transformar em política federal a experiência que se tornou a razão da sua vida e a explicação para o seu sucesso, tanto no seu Acre natal quanto nas praças mundiais que a tomaram como aliada e parceira. Não foi exatamente por acaso que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva deixou para confirmar em Washington uma indicação que já se tinha como certa no Brasil, quando assumiu o governo, há quatro anos.

O governador do Acre, Jorge Viana, conterrâneo e correligionário da futura ministra, observou que a decisão de Lula de confirmar Marina como ministra nos Estados Unidos tinha um simbolismo muito grande: foi justamente nos EUA que o sindicalista Chico Mendes se fortaleceu politicamente para lutar em favor do desenvolvimento sustentável do Acre e da Amazônia.

Essa aliança teve um resultado inegavelmente positivo: projetou mundialmente o antigo seringalista, criando eco para sua pregação em defesa do uso preferencial da floresta na Amazônia, e de um uso múltiplo, não apenas pelas formas convencionais, como a produção de madeira sólida. É esse entendimento que está por trás da “Florestania”, uma concepção de desenvolvimento distinta da que se encontra em vigor ou predomina, embora então – como ainda – difusa e vaporosa.

Essa aliança superestimou o significado de experiências localizadas e de difícil disseminação, ignorando as especificidades do Acre. No Estado da ministra o uso dos recursos naturais é mais “sustentável” do que nas demais unidades federativas da região, mas o Acre continua a ser também o mais pobre da Amazônia, mesmo partindo para o terceiro governo seguido do PT.

Brava mulher do mais recôndito sertão amazônico, a ministra tentou cumprir seu papel de abrir todas as portas ao debate e arejar todos os ambientes com perguntas que buscam resposta e um autor atrás do seu grande enredo: a salvação da madeira que Deus legou aos homens e os homens, demasiadamente humanos, estão destruindo numa velocidade digna de inferno.

Terra do Meio
O lócus principal dessa tragédia é uma área na margem direita do rio Amazonas, entre dois dos seus principais afluentes, o Xingu e o Tapajós, bem no centro dessa metade do Estado do Pará, cercada por frentes de expansão por suas laterais leste e oeste, tendo como referência grandes eixos rodoviários. É a “Terra do Meio”, um reduto de floresta nativa com a maior densidade de mogno existente na Amazônia.

Foi esse o cenário, em novembro de 2002, para uma cinematográfica operação de guerra – a maior de todas – em defesa dessa árvore valiosa, comandada pelo Greenpeace e o Ibama, com a cobertura da Polícia Federal, que diz muito sobre as características e perspectivas desse enredo dramático. Ao alcance de lentes de câmeras de televisão e de vídeo, agentes federais, trajando roupas de camuflagem e portando metralhadoras, desciam de helicópteros em movimento para apreender toras de madeira estocadas em áreas de armazenamento conhecidas como esplanadas, na beira do rio, prontas para serem transportadas em jangadas. Feito o registro da ação salvadora, todos foram embora com a certeza da missão cumprida.

Semanas depois, sem o décor hollywoodiano anterior, uma cena parecida se repetiu. Desta vez, quem comandava as ações era o próprio então ministro do meio ambiente, José Carlos Carvalho. Ele viajou direto de Brasília num avião da FAB, levando consigo o presidente do Ibama, Rômulo Barreto Melo, além de fiscais e agentes federais (sintomaticamente, não requisitou pessoal local, de Altamira e Santarém: só usou servidores deslocados da capital federal). Informado de que as operações anteriores, além de inúteis, serviam para regularizar madeira extraída ilegalmente, o ministro quis agir de surpresa e com o controle total dos seus atos. Pretendia passar tudo a limpo para que as ervas daninhas não voltassem a crescer, como sempre acontecia.

No ano seguinte, depois que o cenário para as cenas de guerra ecológica explícita se desfez e todos voltaram às suas distantes rotinas, na área permaneceu em plena atividade o principal personagem, embora invisível: a Construtora C. R. Almeida. Foi ela que se antecipou aos emissários do governo e do Greenpeace, reunindo informações e juntando madeira de diversa procedência, em condições de ser localizada e “apreendida” pelos agentes do governo, para, logo em seguida, ser colocada sob o controle de um “fiel depositário”. E foi ela quem indicou essa pessoa, a quem foi delegada a guarda de aproximadamente 20 mil metros cúbicos de mogno, no valor de 60 milhões de reais. E foi ainda quem lhe deu as ordens para gerir o patrimônio resultante da apreensão.

Enredo típico de uma velha fábula: a raposa cuidando do galinheiro. A Construtora C. R. Almeida, através de extensões e intermediários, é acusada, por todos os órgãos das administrações federal e estadual relacionados aos setores fundiário e florestal, além de policial, de estar tentando se apropriar ilicitamente de uma área que pode chegar a sete milhões de hectares, embora esse território (maior do que a ilha de Marajó, que seria o 21ª mais extenso Estado brasileiro) integre o patrimônio público na forma de reservas indígenas, reservas florestais, núcleos de colonização e zona militar.

Há 10 anos, o Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e o Ministério Público Federal tentam cancelar registros imobiliários que a empresa conseguiu fazer no cartório da comarca de Altamira, contando para isso com a conivência de serventuários e magistrados. É o maior golpe imobiliário do país, segundo O Livro Branco da Grilagem, editado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

Utilizando o poder que montou em todo o vale do Xingu a partir de uma grande base em Altamira, onde colocou advogados em tempo integral e gerentes com recursos para mobilizar pessoal, e periodicamente com a cobertura da Polícia Civil e da Polícia Militar, a C. R. Almeida pode estar não só praticando a maior de todas as grilagens do Brasil, com possibilidade ainda de legalizá-la, apesar da resistência oficial, mas também tentou armar um golpe inteligente para consumar um dos maiores desvios de madeira de que se tem notícia. E ainda posando de ambientalista, ao lado do Greenpeace e do Ibama.

Operação ministerial
Tudo começou em setembro de 2002. As madeireiras estavam cortando mogno em volta da Terra do Meio, não respeitando nem as reservas indígenas. Os personagens dessa nova investida eram os de sempre. À frente, Osmar Alves Ferreira, apelidado de “o rei do mogno” e apresentado à mídia como a grande (e quase a única) ameaça à preservação da valiosa espécie vegetal.

De fato, usando como fachada alguns projetos de manejo florestal completamente ilegais, Osmar comandava um grupo que tem sido o maior cortador de mogno da região. Mas sua atuação é apenas local. Ele tira a árvore da mata e a coloca num ponto de coleta. A partir daí entram em cena personagens muito mais graúdos, que tratam da colocação da madeira no mercado internacional, a um preço final várias vezes multiplicado em relação aos valores que constituem o universo de domínio de Osmar e sua troupe (ou grupos concorrentes). Mas este ator principal não se expõe: atua nos bastidores.

Depois que os cortadores locais de madeira derrubaram as árvores no meio da mata e arrastaram-nas para próximo do primeiro curso d´água, que desemboca no Iriri e, em seguida, na via principal, o Xingu, através do qual as toras amarradas chegam a Altamira, os advogados da C. R. Almeida propuseram uma ação de interdito proibitório, alegando que as madeireiras estavam invadindo suas terras (que dizem pertencer à empreiteira graças a uma decisão do Tribunal de Justiça do Pará, que reformou sentença contrária aos interesses da empresa dada pelo juiz Torquato de Alencar). O objetivo: imobilizar todos os concorrentes pela via judicial para só a C. R. Almeida, livre e desembaraçada, com o monopólio da iniciativa, poder continuar a agir.

O juiz de Altamira , Jackson Sodré Ferraz, concedeu o pedido. De posse da ordem judicial, os advogados requisitaram tropa da Policia Militar para cumprir a medida. A empresa, naturalmente, deu as “condições necessárias” para que a policia agisse. Assumiu todas as despesas da operação: a gratificação de cada militar e o custeio semanal de transporte aéreo e fluvial, além da alimentação da tropa.

Mais ainda: a empresa recebeu a prerrogativa de indicar o fiel depositário da madeira e equipamentos apreendidos: o comerciante Wandeir dos Reis Costa, ex-madeireiro de Altamira. Com essa retaguarda, começou a operação de juntar a madeira que estava espalhada nas esplanadas, embora alguns observadores desconfiassem que praticamente não havia madeira na área que a C. R. Almeida alegava lhe pertencer.

Tranqüilamente, a empresa começou a fazer a madeira que estava perto do rio e atada descer até chegar a Ururuará, o primeiro ponto de apoio, e ser levada para terra. As toras foram imediatamente transferidas para a serraria de Cláudio Valle, vereador de Altamira. Lentamente, a madeira começou a ser cortada. Outra parte do estoque iria para a serraria de um irmão do fiel depositário.

Em Brasília, o ministro do meio ambiente recebeu um relato dessa história, que deixava mal o governo e instituições que se declaram defensoras do meio ambiente, no mínimo na condição de inocentes úteis nas mãos de espertos manipuladores. Surpreso e preocupado, o ministro decidiu que uma checagem para valer exigia três requisitos: surpresa, rapidez e participação de personagens distanciados da cena local. Por isso, partiu direto de Brasília com toda a sua equipe para verificar pessoalmente as informações que lhe foram transmitidas.

Do aeroporto de Altamira, o ministro foi diretamente para a serraria de Cláudio Valle apreender a madeira. Surpresos, os atores das velhas encenações perceberam que José Carlos Carvalho chegara com um roteiro bem traçado de toda a história. Imediatamente ele determinou que 1.800 toras de mogno, no valor de R$ 15 milhões, fossem novamente apreendidas. Mandou que fossem também apreendidos as máquinas e equipamentos que encontrou na Fazenda Juvilândia, onde a madeira se encontrava, incluindo dois aviões, 28 caminhões, dois tratores de grande porte, uma balsa e 10 carros. Desautorizou o fiel depositário. E prometeu remover os agentes do Ibama de Altamira. Admitiu que a conivência pudesse ser ainda mais ampla.

O inédito desempenho da principal autoridade pública do setor no cenário do maior saque florestal do país deixou atrás de si um rastro de protestos e promessas de reação. As coisas não deveriam voltar a ser como antes, depois que a comitiva de José Carvalho se foi. Os interesses que se mantinham ocultos foram revelados e contrariados. No entanto, apesar das conquistas e vitórias, é pouco provável que a extração clandestina de mogno, com todo o seu rico e poderoso comércio paralelo, tenha sido finalmente interrompida.

Só com a madeira apreendida e identificada, o negócio sustado pela operação ministerial envolvia aproximadamente R$ 100 milhões. Quando o crime atinge essa dimensão, combatê-lo de verdade requer como ponto de partida o que o Ministério do Meio Ambiente começou a fazer há quatro anos. O ponto de chegada, entretanto, ainda está bem distante. O mogno resistirá até lá? Ou, sua dizimação servirá de atestado de óbito para a Terra do Meio, que deixará de ser um maciço remanescente de floresta cercado de estradas devastadoras por todos os lados?

N.E.: parte da madeira apreendida pelo Ibama foi doada a organizações não-governamentais e ao movimento social paraenses para criação de um fundo destinado ao financiamento de projetos de proteção ambiental, manejo florestal comunitário e ações de desenvolvimento sustentável e inclusão social. O Fundo Dema hoje é gerenciado pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), pela Fundação Viver, Produzir e Preservar (FVPP) e pela Prelazia do Xingu. O nome do fundo foi dado em homenagem ao apelido de Ademir Alfeu Fredericci, líder do movimento popular da região da rodovia Transamazônica no Pará, assassinado em 25 de agosto de 2001 por lutar contra grileiros e madeireiras ilegais em defesa de agricultores familiares e trabalhadores rurais.

*Como editor do Jornal Pessoal, quinzenário que edita em Belém do Pará há 19 anos, Lúcio Flávio Pinto foi condenado, no ano passado, pelo juiz interino da 4ª vara cível do fórum local, a indenizar o empresário Cecílio do Rego Almeida por chamá-lo de "pirata fundiário". A 3ª Câmara Cível Isolada do Tribunal de Justiça do Estado manteve a condenação, considerando a expressão ofensiva. O jornalista também foi processado oito vezes por causa de matérias que escreveu sobre a grilagem: quatro vezes por dois desembargadores que deram sentenças favoráveis a Cecílio Almeida (João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte), outra vez pelo empresário e duas vezes pelo madeireiro Wandeir dos Reis Costa, nomeado pela justiça fiel depositário da madeira apreendida. O Ministério do Meio Ambiente tentou desconstituí-lo, sem conseguir. Os registros imobiliários fraudulentos foram bloqueados pela Corregedoria de Justiça, que demitiu as escrivães responsáveis pelo cartório de imóveis de Altamira. Mas C. R. Almeida continua a ser o homem mais poderoso da Terra do Meio.
(ISA – Instituto Socioambiental, 16/10/2006)
http://www.socioambiental.org/noticias/nsa/detalhe?id=2338

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