Movimentos selam compromisso em defesa do São Francisco
2006-10-17
Três dias de debates, mobilizações e atos marcaram a retomada da articulação popular contra a transposição do Rio São Francisco, culminando no dia 6/10 passado, com uma caminhada guiada por um alegórico surubim, de cerca de 50 metros, que, saindo da ilha de Assunção, território pernambucano dos índios Truká, atravessou a ponte e percorreu avenidas asfaltadas e ruazinhas de barro, ladeadas por casebres, de Cabrobó (Pe), para aportar na beira do Rio, onde os manifestantes celebraram o compromisso de defender a “verdadeira revitalização” do Velho Chico.
Muitos selaram o compromisso se benzendo, molhando os pés e o rosto, outros mergulhando na água refrescante e repetindo com a jovem Cecília, da nação Tumbalalá, de Abaré (Ba): “Não te vi nascer, mas soube das tuas lendas. Não te vi crescer, mas soube das tuas histórias. O canto daqui nasceu e cresceu em mim, porque muitos falaram com tal zelo e mistério que o Rio corre em mim”. Antes disto, por volta das 16h, acompanharam a leitura do Estatuto do São Francisco, de João Filho, distribuído pelo Fórum Permanente em Defesa do São Francisco-Ba. Naquela hora, a 200 km dali, de Juazeiro (Ba) partia carreata para o comício de Petrolina (Pe), em apoio ao presidente Lula, que abraçou com vigor o projeto de transposição de FHC.
Marcos viraram cinza
O surubim, que volteou por Cabrobó, já tinha guiado manifestação em Paulo Afonso (Ba), no 4 de outubro, celebrando os 505 anos da descoberta do Opará, (“rio-mar”, dos índios), pelo português Américo Vespúcio. O protesto dos pescadores, indígenas, quilombolas, pequenos agricultores e ambientalistas iniciado na “Prainha”, na margem do Rio, que também marcou um ano da greve de fome do Bispo da Diocese de Barra (BA), frei Luiz Cappio, contra a transposição, foi encerrado em frente ao escritório da Codevasf, com a queima de cerca de 50 marcos da obra arrancados da área por ribeirinhos.
Na mesma data, D. Luiz, que ganhou fama internacional com o jejum de 11 dias, também comemorou aniversário (60 anos). Em meio às congratulações por sua luta pela revitalização do Rio, advertiu os futuros governantes sobre a necessidade de ouvir as populações contrárias à obra, que continua suspensa por liminares do Supremo Tribunal Federal, obtidas em ação conjunta dos Ministérios Públicos e organizações não-governamentais da Bahia e de Sergipe. A greve realizada de 26 de setembro a 6 de outubro do ano passado, em Cabrobó, abriu caminho para o diálogo e contribuiu para paralisar o projeto. Para o ex-ministro de Articulação Política do Governo Federal e governador eleito da Bahia, Jaques Wagner, que negociou o fim da greve, D. Luiz mandou mensagem especial, lembrando que agora ele não é mais ministro do Presidente Lula, mas governador eleito “e a Bahia tem se posicionado contra a transposição do Rio”.
Superando divergências
A situação política acabou gerando a única polêmica de peso do Acampamento de Formação do Baixo e Sub-Médio São Francisco organizado pela CPP, APOINME, MPA, IRPAA, MST e outras entidades, reunindo centenas de pessoas em Assunção, nos dias 5 e 6. Analistas da conjuntura apontaram o voto em Lula no segundo turno, como a melhor opção para os movimentos sociais e populares. Lideranças reagiram. Vozes indígenas reclamaram respeito à autonomia dos segmentos presentes, na compreensão de que o assunto não estava na pauta do encontro.
Em vez de fazer avaliação eleitoral, o cacique Truká, Aurivan dos Santos Barros (Neguinho), preferiu fazer uma análise da postura dos movimentos sociais e populares: “Independente de quem ganhar, se Lula ou o outro, temos de nos preparar, pois vem chumbo grosso. Não existe outro caminho e não podemos criar falsas esperanças. Ou os movimentos, os comitês de bacias, se unem para falarmos, todos, a mesma língua, ou então pode cada um se aquietar e deixar levar essa água”. Reforçando a posição dos Truká e de outras nações, o jovem Marcus Sabaru, lider dos Tingui-Botó (Alagoas), foi incisivo: “viemos de tão longe pra tentar convencer que fulano ou sicrano é o melhor, fazendo papel de cabo eleitoral? Não?. Então vamos deixar que cada um decida o seu voto. O importante é saber que, ganhe quem ganhar, a gente vai estar preparado para ir contra o projeto.”
Revitalização, sem imposição
Após dois dias de discussões na ilha de Assunção, de onde se projeta sair o canal condutor da água para Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, os participantes saíram convencidos que, na realidade, a transposição é um projeto que atende aos interesses do Ceará. Ali, o então governador Ciro Gomes projetou os canais e açudes, que aguardam a água do Velho Chico para irrigar os negócios da agro-exportação (camarão, flores, frutas). Agora espera a construção da transnordestina, que cortará todo o Estado recolhendo a produção a ser exportada pelo Porto do Pecém, deslanchando um projeto de desenvolvimento predatório, que, ao contrário da propaganda enganosa, não levará água para quem tem sede. Como ilustrou o coordenador nacional da CPT, Roberto Malvezzi, para a produção de um quilo de camarão em cativeiro calcula-se um consumo de 50 a 60 mil metros de água. Por isto, o Ceará vai precisar de muita água e já tem açudes e canais prontos, só esperando a obra para alavancar mega-projetos voltados para a exportação. Por isto, o ex-ministro tenta impor, a qualquer custo, o projeto que destina 70% da água para irrigação e apenas 4% para a população difusa.
O resultado das discussões sobre o projeto popular para a Bacia saofranciscana será enviado ao presidente Lula e ao candidato eleito no segundo turno. Entre outros pontos, o documento defende: o uso manejado e democrático da água, para evitar transpor; programa de revitalização pensado com as comunidades, e não imposto; atenção especial para o Baixo e Sub-Médio, que mais sofrem as conseqüências das barragens; reforma agrária e agrícola apropriada; agroecologia; convivência com o Semi-árido e com o Cerrado; preservação da Caatinga; água para consumo humano, animal e para a produção; autonomia, com demarcação e ampliação dos territórios indígenas; isenção de cobrança da água para comunidades tradicionais e pequenos usuários; recuperação das lagoas marginais; não à tilapicultura e à carcinicultura; redução das tarifas de energia para a população; educação ambiental formal e informal, contextualizada e continuada; novas fontes de energia, sem barragens, sem hidroelétricas, nem usinas nucleares.
Afinando propostas e ações
As divergências pontuadas ao vir à tona o segundo turno, não impediram a convergência final de posições e a disposição dos movimentos sociais e populares lutarem, conjuntamente, contra a transposição. As atividades realizadas durante a semana passada em vários Estados da Bacia, reafirmaram esta posição e a necessidade de unificação das ações futuras. Marcus Sabaru apontou como “o único ponto negativo a tentativa de pessoas se aproveitaram do movimento para defender qual candidato seria melhor pra nossa luta. Nosso movimento tem que entender que, vença quem vencer, temos que estar prontos pra continuar a luta. Discordei das pessoas usarem o microfone para tentar influenciar outros e também da distribuição de bottons e panfletos em defesa de uma candidatura”.
No encontro paralelo que reuniu, em Cabrobó, os Truká, Tumbalalá, Pankararu, Ororubá, Xucuru-Kariri, Pankarará, Xocó, Atkun, Tingui-Botó, Tuxá, Kariri-Xocó, essas nações afinaram o pensamento e reiteraram, mais uma vez, a decisão de estar juntos nesta luta, independente de atitudes como a que ocorreu no Acampamento. Na avaliação de Neguinho, as coisas começam a tomar o rumo certo. “Desde a greve de fome, D. Luiz disse: “radicalizem”. De que forma? Usando o espaço da Democracia, ocupando o espaço que há na Justiça, chamando a atenção internacional e, mais ainda, articulando os movimentos sociais e populares”. Para ele, os movimentos estão tomando a direção indicada pelos índios há muito tempo. “O caminho para se barrar a transposição é Brasília. O Ministério da Integração, o Meio Ambiente, o Congresso e a Presidência da República estão lá. Sabemos que por ter ficado tudo parado este ano, com certeza os defensores da transposição voltarão bem fortalecidos, e nós temos que estar da mesma forma: prontos para a luta”, concluiu.
(Por Zoraide Vilasboas, EcoDebate, 16/10/2006)
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